Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
Era como um cabo de guerra, uma batalha de forças opostas. Quando chegava a sua casa após um dia inteiro no trabalho, lá encontrava todos cabisbaixos olhando para aquele retangulozinho. Tratava assim aquele ser, retangulozinho.
O pai de família, chefe da casa, do sustento, o provedor, ninguém lhe dava atenção, mesmo quando batia propositalmente com força a porta da frente para anunciar a sua chegada. Nada fazia com que as pessoas virassem para ele e dessem um “boa noite”, um “oi papai”, um beijo carinhoso da esposa.
Tornara-se um dinossauro, um ser extinto, sentia. Havia sido trocado por aquele retangulozinho eletrônico.
Sentia-se desprezado. Pensava em Santos Dumont que fez o avião como meio para transportar as pessoas para lugares diversos, mas, que um dia a sua obra se transformara em arma de guerra. Lembrava que aquele “retangulozinho miserável”, às vezes usava esse adjetivo também, foi criado com propósito de unir distâncias, mas, agora segregava uma família. Era traição de mais aquela coisinha receber todo o afeto e ele ficar apenas com as sobras... Se bem que nem os farelos tinha mais.
Mais um dia no trabalho, a porta batida, e nada. Tornara-se um invisível, pensava.
Aquela noite foi difícil. Um sono picado, inconstante. Estava esgotado. Foi preciso tomar a atitude que lhe faltava. Furtou os aparelhos, os três celulares, dois de seus filhos, um da esposa. Afogou o primeiro até verificar que não reiniciava mais. O segundo morreu eletrocutado dentro do microondas que foi ligado em potência máxima por alguns minutos. O da esposa foi jogado do décimo primeiro andar, era como se livrar do amante. O crime perfeito. Cogitava.
Pronto! A paz reinaria novamente naquele lar. Imaginava as pessoas conversando na mesa de jantar. Um caloroso abraço de chegada. Perguntas do tipo, “oi, como foi o seu dia?” As crianças brigando novamente. A esposa reclamando do sapato deixado no meio da sala, das rachaduras que as batidas da porta causavam à parede. Seria como perceber o amor renascer. A paz... A paz recriaria a sua força causada pelos destroços que um dia aquele retangulozinho impetrou na vida daquela família.
Naquele dia acordou cedo como de costume. Tomou seu café da manhã e foi ao trabalho. Não via à hora de chegar em casa e ter da sua família a atenção que um dia foi trocada como uma estação passada ou uma peça de roupa suja.
Chegando a casa, apenas o silêncio. As cabeças não giraram para saudá-lo. Todos cabisbaixos. Bate a porta e nada. Deixa o sapato no meio da sala e nenhuma reclamação. Jantou sozinho naquele ambiente fúnebre. Todos estavam enlutados. Sentia-se um perdedor. Era o segundo colocado. Ninguém lhe dava a atenção.
Da família algumas lágrimas. Um dos filhos mais exaltado gritava “assassino, assassino...”
Meses depois teve uma parcial reconciliação com a introdução dos quatro novos retangulozinhos. Quatro, pois, o pai de família, chefe da casa, do sustento, o provedor, só conversa com os membros da família de maneira virtual. O que já é um pouco mais do que uma migalha.