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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Casinha Pequenina Intróito e Cap .I


 

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INTRÓITO

 

Sei - você me diria - existem velhas fotografias em preto e branco, as bordas esgarçadas em pequenas ondas, algumas vincadas e outras até rasgadas como se fossem lembranças partidas, em meio a tantas outras igualmente antigas, perdidas num álbum amarelado pelo tempo.

Mas, quem se lembra delas?

Paisagens, homens e mulheres imobilizados num sorriso que o tempo perpetuou em algum momento que se desfez com o passar dos anos.

Sorrindo naquela certeza quimérica de que a vida seria boa, naquela confiança tão ilusória de que tudo daria certo. Ou, talvez, pela felicidade do momento, só por ele.

Mas não deu, não é mesmo?

Não como o queríamos, não é mesmo?

Não como precisava ser, não é mesmo?

Sei - você me diria - o tempo impõe seus extravios, confunde, cria lacunas, provoca esquecimentos, recordações tipo poderia-ter-sido.

Ou-será-que-talvez...

Sei, você me mostraria uma delas, me perguntaria uma delas.

Ali, bem ali, está alguém sorrido. Mas, quem é a pessoa que está a seu lado? Talvez outro parente? Talvez alguém que foi conhecido? Talvez alguém que continuou desconhecido? Esquecido?

Quem o sabe, agora, passado tanto, tanto tempo.

Sei - você me diria - o tempo vai apagando algumas partes, alguns todos, vai manchando e borrando algumas imagens, apagando algumas fotografias, mostrando incompletas lembranças teimosas.

Mas - por mais que você me diga, por mais que se esforce para dar uma justificativa - eu sei que também, de alguma forma inexplicável, tenho de preencher os vazios, realçar as recordações foscas e ilegíveis, para que eu possa rever minhas lembranças.

Então fico inventando traços e cores na minha folha de memórias quase em branco, que explicasse ou completasse o que não consigo ver.

Tentando inutilmente trazer, de alguma forma, o meu passado que quase desconheço para meu insustentável presente.

É, eu sei, eu deveria conhecer as pedras pontiagudas do caminho da vida. Eu deveria. Nós deveríamos, não é mesmo? Mas...

Pedras.

Perdas.

Por um instante paramos ambos de palmilhar as lembranças esquecidas e confusas das fotos antigas, diante do reconhecimento tão tardio. Não das fotos, não das recordações que não surgem, não de alguma coisa mais palpável.

Pedras.

Perdas.

Como a simples inversão descuidada (?) de duas letras podem mudar todo o sentido de uma simples palavra, todo o sentido de uma vida.

E, ao mesmo tempo, inconcebivelmente, se tornarem tão próximas, tão sinônimas.

Então eu me vejo diante de uma porta fechada, talvez a porta que encerra o que foi o meu quase desconhecido passado.

Após um momento de hesitação, ergo enfim meu braço e dou duas batidas leves, tão leves que parecem que eu não quero ser atendido.

Que eu tenho medo de ser atendido.

Mas a porta se abre lentamente.

Olho então, confuso, surpreso e esperançoso, para dentro de meu próprio coração.

 

I

Com breves intervalos o velho sino da igreja soava, e o eco que deixava atrás de si me faz sonhar com a alma de lembranças e com o tempo que escoa, como se fosse uma areia muito fina que me escapa entre os dedos.

Então o pequeno rádio começou apropriadamente – como se fosse um eco que reverberava distante – a tocar a música Inútil Paisagem:

Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem.
Pode ser
Que não venhas mais
Que não voltes nunca mais
De que servem as flores que nascem
Pelo caminho
Se o meu caminho
Sozinho é nada.

E fico me perguntando o que está errado naquela letra. Ou indefinido, como é a própria vida, tantas vezes a vida de cada um de nós.

Então eu me pego me indagando: - Quem pode ser que não voltará mais?

Sabe, até pode ser – para alguns desavisados – que o autor estivesse se referindo a alguma pessoa, talvez um amor perdido, sabe-se lá.

Ou alguém que ficou irreversivelmente ao longo de algum descaminho do passado. Ou alguma outra coisa assim. Qualquer coisa assim.

Mas, agora, diante daquelas fotografias amareladas pelo tempo, eu sei. Talvez quem não volte mais seja a possibilidade.

Uma? Só uma?

O trem que não existe mais apita lamentoso numa despedida na estação que também não existe mais. Ou talvez, o esteja fazendo numa das curvas do descaminho da minha vida, e parece-me ver minha própria solidão girar silenciosamente em meu coração, me atordoando mais um pouco.

Vejo-me pequeno, menor do que realmente era, quase inexistente, sentindo-me pequenininho dentro de um automóvel tão grande e esmagado por minhas aterradoras realidades que intuía, mas não compreendia.

Estrangulo um sussurro inumano, um lamento incompreensível, viro-me no banco e fico olhando o que deixo para trás, fico por um longo tempo olhando aquela casinha de sapê que se perde na primeira curva do caminho, minha avó chorando como se não desse conta que o estava fazendo, os tios e tias também tão pequenos que acenavam confusos parecendo não saber bem o que estava acontecendo.

Tudo ficando para trás, as pessoas ficando cada vez menores à medida que o carro se afasta, sem que eu soubesse se eles estavam festejando ou lamentando nossa partida.

Minha mão continua a acenar inutilmente para quem não vejo mais, não os tenho mais diante de meus olhos, não vejo mais seus acenos, não vejo mais a casinha de sapê de minha avó.

Então o automóvel, condutor de minha amargura, segue em frente, para frente, sempre em frente, o pouco que eu via se encolhendo, até que o cantinho da casinha de sapê desaparece de vez de meus olhos.

Sem dizer nada a ninguém, eu também estava me encolhendo naquele banco traseiro, meu coração apertado, pequenininho, dilacerado.

Por algum tempo ouço o quebrar das ondas na praia distante, que fica cada vez mais distante. Pensei que nunca mais a veria, por isso fiquei quietinho onde estava, a estrada engolindo a última mancha esverdeada da serra que me acenava também uma triste despedida ao fundo.

O carro ganha velocidade, mas continuo a olhar pela janelinha o que fica e ficou para trás.  Vejo a mata cerrada, praticamente intocada, as árvores indistintas uma das outras como se estivessem se abraçando e se consolando, agradecendo a Deus por realmente terem raízes que impossibilitavam coisas chamadas mudanças, que as tolhiam de saber o real significado da palavra adeus e suas variações tão dolorosas.

Vejo-as confundindo-se umas com as outras, envolvendo as vizinhas com seus galhos que se transformavam em braços em abraços férreos e inseparáveis, os cipós dos parasitas (agora simbiontes) assegurando que essa perpetualidade fosse duradoura, eterna, indissolúvel.

Vejo algumas bananeiras perdidas no verde rasteiro do capim-gordura que - agora eu o sabia – pareciam apenas que antes estavam tentado me prender naquele lugar para que eu nunca me afastasse dele, para que eu sempre ficasse ali, a minha terra.

Não vejo mais o que quero ver, não consigo ver mais o que quero ver, não tenho como ver mais o que quero ver.

Então, finalmente, me sento naquele banco grande demais e fecho os braços em torno de mim mesmo, como se me abraçasse a mim mesmo.

Então o passado me sorriu um sorriso grande como ele se tornara.

Uma imagem se sobrepõe às demais, se destaca às demais: minha avó materna sempre sorrindo daquela maneira bondosa e maravilhosa que só ela sabia sorrir, o grande chapéu de palha emoldurando seu rosto lindo e amoroso como se fosse o halo de uma santa.

E ela olhava para mim e ria, um riso-sorriso que ficou perdido no passado distante, me assegurando de alguma forma que ela nunca se esqueceria de mim, que ela sempre estaria me esperando, que aquela viagem era temporária, que eu iria voltar, ficar, que nunca mais haveriam outras partidas nem outras despedidas, nunca mais.

Mas a alegria em seu riso aos poucos se transformou num sorriso melancólico, comecei a ver em seus olhos agora marejados uma mágoa que ela procurava disfarçar inutilmente ao longo de toda uma vida, de toda a sua vida. Aquela vida que lhe trazia tudo e lhe levava também tudo, agregando um vazio infinito intransponível, incompreensível, cheio de saudades e perdas.

Então, no momento seguinte, minha avó não está mais lá, vejo-me sozinho diante da porta fechada de uma casinha de pau-a-pique coberta com sapê, lá no alto de uma grande pedra, abraçada e abrigada por infinitas árvores.

Vejo meus pezinhos procurando com cautela as pequenas pedras que serviam de degraus desencontrados que me levassem até ela, que me levavam até ela, que me levaram tantas vezes até ela.

Mas agora, incompreensivelmente, a porta está aberta, como se me esperasse, como se me convidasse a entrar, como se me dissesse entre-você-é-bem-vindo, entre-fique-aqui-é-o-seu-lugar.

Paro na soleira da porta e olho para o interior daquela casinha, olho para meu próprio interior.

Vejo uma pequena mesa de madeira rústica, bancos rústicos, uma pequena toalha florida, uma pequenina lamparina de querosene que não só atenuava um pouco o negror da noite escura, mas faziam todos ficar mais perto uns dos outros, um recado incompreensível de que deveriam estar sempre assim. Aninhados, protegidos das traições da vida.

Dou alguns passos, adentro uma saleta onde aguarda pacientemente o moedor de cana. A seu lado, junto à porta divisória, um aparador onde havia outra toalhinha alegre com estampa de flores, uma moringa de barro com água sempre fresca, uma grande caneca de alumínio.

Mais à frente, edificado sobre o chão de terra batida de toda a casa, o fogão à lenha. Meus olhos sobem e encontram o esfumaçado no alto, o esfumaçado contínuo provocado pela eterna queima de lenha, como se – agora – me dizendo que a nossa vida também podia se tornar tenebrosa.

Volto em meus passos. Nas paredes da sala algumas pequenas fotografias emolduradas em quadros simples das pessoas que eu amo, das pessoas que eram e foram e são a minha família.

Todas sérias, tristes, fitando aparentemente a estranheza do fotógrafo a que estavam desabituados, Mas – com certeza, e agora eu o sabia – na impossibilidade de sorrir para uma vida mais feliz que não tinham, que não poderiam ter, o futuro que nunca poderiam ter.

Agora parado, como se não soubesse mais para onde ir, volto-me para a pequena cozinha emoldurada por paredes de pau-a-pique, vejo vovó diante do fogão onde ela frigia as incertezas, dourava as esperanças, onde aquela maravilhosa mulher analfabeta escrevia nas chamas que bailavam alegremente a (im)possibilidade de um futuro melhor e mais feliz para todos, um futuro que pareceu chegar mas nunca realmente chegou. Para nenhum de nós, talvez.

Mas, agora, uma lua grande e dourada subiu aos céus. Como os quadros que agora não consigo ver mais na parede da sala escura, lá fora a lua grande e dourada subiu aos céus e está emoldurada por estrelas, infinitas estrelas.

Ao longe, inconcebível, muito ao longe, quase imperceptível, quase inaudível, o som de uma viola onde um caiçara indefinido afoga as suas mágoas, tentando trazer para perto de si e dos seus um pouquinho que fosse um pouco da arredia e desconhecida felicidade.

Fico de pé na porta de entrada, apoiado ao batente, como se ele me segurasse e protegesse da noite escura da qual não tenho medo, da qual aprendi a não ter medo.

Porque vovó nos juntava a todos no que ela chamava de seu terreiro, no que chamávamos de nosso terreiro, a pequenina porção de terra que existia defronte à casa.

Onde nos sentávamos olhando sem ver a mata agora mais escura, ouvindo sem ouvir as ondas que quebravam lá na praia distante.

Esperando. Esperando. Esperando. O que? Não o saíamos. Talvez alguma coisa que afastasse para sempre aquela desgraça que inconcebivelmente nos era tão feliz.

Infinitos vagalumes, milhares deles, se nos afigurando como se fossem as estrelas tão brilhantes e distantes que, por alguns momentos, houvessem descido lá dos céus só para alegrar um pouco que fosse nossas pobres vidas tão terrenas.

Vovó vinha até nós, deixava a lamparina acesa sobre o que seria o peitoril da janela caso ela tivesse um, a chama alta para nos ver melhor, para afastar os fantasmas de nossas vidas, para que a alegria e a vida mais feliz que ela nos almejava pudesse encontrar o caminho para nossa casa, para cada um de nós.

Então nos contava histórias-lembranças maravilhosas que só ela sabia.

(continua)



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