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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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O Perfume da Murta - Cap. III ao cap. IV



(continuação)

III

O perfume da Murta ficou para trás.

Não só ele.

Caminhava sem pressa, relutante, sem sentir o peso da malinha.

O que levava na alma era o que me pesava no coração, não deixava só o pé de Murta para trás.

Sorri, inevitavelmente, ao pensar (sabe-se lá porquê) de que minha vida parecia estar marcada indelevelmente por perfumes.

Qual seria o primeiro deles?

Sem dúvida, o da maresia. O cheiro da maré das praias de minha infância em Ubatuba.

Também em Ubatuba, um segundo perfume se fez sentir.

Nos riachos, nos pequenos filetes d’água, nos charcos, o aroma marcante e inesquecível das (também) flores brancas das Ciosas, mais conhecidas pelos não privilegiados como Lírio do Brejo.

Outros perfumes me atingem, cada um acenando alegremente para mim como se não se dessem conta do altíssimo preço que me estavam cobrando: a canja com alfavaca da avó materna, o bife frito da avó paterna, os pratos que a mãe fazia...

Perfume das flores das laranjeiras, o aroma adocicado da jaqueira carregada, o...

Ocorreu-me tardiamente: não seria o perfume da Murta a compensação pela inexistência da Ciosa fora do litoral?

A mãe gostava de Antúrios, Avencas e Orquídeas.

Todas – inexplicavelmente – sem perfume.

Bonitas, sem dúvida, mas sem perfumes que dessem boas vindas ou até logo.

Ela não gostava muito da Murta, achava que dava muito trabalho. Afinal, as delicadas flores eram muito efêmeras, caíam logo, tinham que ser varridas do chão.

Eu, como papai, amava o que a Natureza fazia.

Ambos víamos beleza – uma imensa e indescritível beleza – nas folhas secas e douradas caídas ao chão numa floresta. Que jamais teria a mesma poesia se o chão estivesse limpo, varrido, despojado.

Eu, como papai, gostava mesmo era da Murta.

Com seu perfume de que-bom-que-você-chegou.

Com seu perfume de que-bom-que-você-está-aqui.

Foi inevitável lembrar-me de meu piano. Que ficava junto à porta da sala que abria para o jardinzinho, trazendo o perfume das flores brancas para minha alma.

Meu piano.

Outra coisa que ficava para trás.

Nunca cheguei a ser um bom pianista.

Porque nunca conseguia tocar o que me ia na alma, só as partituras.

Como transmutar o perfume da Murta para um teclado?

Não exatamente o perfume, mas o que ele me fazia sentir, lembrar, sofrer, alegrar...

Impossível.

Talvez impossível.

Quem o sabe?

Quem o poderia saber?

Um dia o piano que ninguém mais tocava foi atacado por cupins. Ficou só uma recordação.

O mesmo piano que um dia, diante dele, vi minha mãe se ajoelhar no chão da sala, erguer as mãos em desesperada oração, e suplicar a Deus que não fosse preciso vendê-lo para que tivéssemos com que nos alimentar.

Com uma pontada lancinante de dor lembrei-me do tempo que papai ficou seriamente doente.

Seis meses internado.

Seis meses a família mentindo.

Que tudo estava bem... que tínhamos o que comer... que...

O hospital ficava na estrada, na cidade vizinha. Nos dias de visita, eu ia até lá de bicicleta, a despeito da distância. Não havia dinheiro para o ônibus.

O cansaço, a saudade, era compensada pelo sorriso feliz do pai quando o filho mais velho chegava na porta do quarto onde havia tantos leitos.

Aquele pai que colocava todos no primeiro lugar, colocando-se sempre num longínquo último lugar. Onde todos queríamos estar.  Com ele.

Eu via doença e sofrimento escondidos em todos os quartos. Ele, não. Ele

via possibilidades e promessas. Até no improvável.

O filho lhe sorria, fingia não notar o pai tão magro, sufocado num pijama grande demais para o que a doença o tornara.

O pai apresentava o garoto aos companheiros de infortúnio. Olhos brilhando de orgulho (bobo), de felicidade (boba), por aquele filho que ele tornava tão especial, que ele tornava tão especial.

A hora de visita passava rápida demais.

Eu me despedia, mas ficava a olhá-lo da porta como se não pudesse ir embora, dolorosamente, tentando não deixar aquilo transparecer em meu rosto, mas meus olhos me traíam, a expressão em meu rosto me traía.

Então ele se virava com um sorriso e depois pousava a mão sobre o coração para me dizer que sempre me guardaria ali enquanto estivesse fora de nossa casa.

Como se me dissesse, como se me quisesse dizer:

- É por pouco tempo, filho...

Mas era a hora de ir embora, a hora de adivinhar para onde ia o caminho que as lágrimas não deixavam ver.

Éramos sete.

É... éramos sete...

Somos sete...

 

IV

A vitrola era um móvel grande e bonito, ficava ao lado do piano. Muitos discos, músicas de bom gosto. A preferida de papai era Maria.

De vez em quando papai tomava sua Maria nos braços, forçava-a a rodopiar lentamente com ele no meio da sala, enquanto cantarolava:

“Maria, o seu nome principia, na palma da minha mão, e cabe bem direitinho, dentro do meu coração...”

A mãe reclamava, mas o brilho em seus olhos a desmentia.

“- Nega... – ele a chamava. E o modo como ele falava esta palavra era muito diferente de como muitos o diziam ofensivamente.

Era suave, profundo e infinito.

Agora, enquanto eu caminho lentamente (cada vez mais lentamente) para a rodoviária, penso em mamãe e papai e me dou conta de uma verdade.

Eles pertencem à espécie de seres humanos que possuem um só amor em toda a sua vida. Ou amam de verdade apenas uma vez.

Como bem expressou o mesmo Caio Fernando de Abreu anos depois:

“- No meio da conversa ela diz, de repente, que só gostou de verdade de um só homem. E eis que vai buscar lá entre papéis amassados, daqueles que esturricam o couro das bolsas, não um, mas três retratos dele que espalha, quais cartas de baralho, sobre a mesa.

E fala dele com a mistura de ternura, saudade e tristeza que assaltam as mulheres que não lograram viver com seu amor, casar com ele, ter seus filhos, viver em função dele e dela, unidos, pois esta é a verdadeira vontade e destinação dos que se amam: viver ao lado do verdadeiro amor.

Podem até deixar seu amor dormitar por anos e parecer serenado. Volta, porém, a qualquer apelo ou lembrança do nome dele, encontro fortuito na rua com um conhecido dos tempos do tempo do namoro, da vida em comum.

Como são comoventes e lindas na sua integridade bíblica as mulheres quando expressam para os demais (ou para si mesmas) o amor de suas vidas. Ou quando consultam, escondidas, os retratos guardados, recortes, flores secas, a memória úmida das lembranças em momentos de silêncio e solidão.

Abençoadas sejam, porque são, os homens e as mulheres que na passagem por esta vida receberam um dia de alguém, ou deram, um amor único, original, definitivo. Abençoados sejam e para todo o sempre. Como o amor que existe apesar de todas as ternas e dolorosas circunstâncias que não impedem a sua verdade.”

Papai havia prometido para mamãe, para nós, que estaria conosco para sempre. Mas a vida não deixou.

Daqui a mil anos eu ainda vou murmurar seu nome e vou me lembrar de todas as coisas que ele me fez, todas as vezes que me consolou, todas as vezes que me encorajou.

Na minha memória tão congestionada – e no meu coração tão cheio de marcas e poços profundos – papai ocupa um dos lugares mais bonitos.

Mas tem horas que eu me perco sem ele diante de mim, e a dolorosa realidade se impõe: ele está tão longe de mim...

Então meu coração grita: “-Não, ele está aqui dentro”.

Mas não consegue me consolar.

Um dia a gente aprende a conviver com uns.

E a sobreviver sem outros.

Mas isso é muito mais difícil, quase impossível.

Porque sempre posso vê-lo a me lembrar, com um sorriso bondoso:

– Nunca se esqueça...

Com voz sumida, pergunto:

– De quê?

– Entre outras coisas... de que nunca nos devemos levar meio a sério demais. E de que o riso pode curar todas as feridas.

(continua)



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