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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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O Perfume da Murta - INTRÓITO ao cap. II


 

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  INTRÓITO

 

 

 

“Fica sempre, um pouco de perfume
nas mãos que oferecem rosas
nas mãos que sabem ser generosas...”

(da música de Alberto Costa)

 

 

“Sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere...”

(de um quadrinho de parede que enriqueceu minha infância e minha vida)

(F.)

 

 

“Se eu tivesse apenas dois pães venderia um deles para

comprar jasmins: eles alimentariam a minha alma”.

(Khalil Gibran)

 

 

“O perfume da Murta torna meu céu muito mais azul.”

(F.)

 

I

Falta-me um pedaço.

Mas o que falta em mim não é um braço ou uma perna, nem mesmo um dedo. É um pedaço do meu coração. Um pedaço da minha alma.

Esse pedaço que me falta me faz tremer em dias de tempestade, mesmo que não esteja chovendo. São os dias de tempestade de minha vida.

Mas havia dias (talvez momentos) em que as nuvens se afastavam e o sol surgia radiante, matizando tudo de dourado, o dourado que deveria ser a vida de todos nós. Sempre.

Estacionara o carro. Estava trancando-o quando me senti paralisado por alguma sensação indefinida e totalmente inesperada.

Quando percebi o que era, incrédulo, o mundo pareceu parar.

Meu coração deu um pequeno salto com o perfume das flores da Murta e eu, encantado, disse a meu coração que deixasse de ser bobo.

A esperança emergiu tímida, mas aumentou até extravasar por meus olhos, esperança doce e açucarada, uma esperança que poderia ser traduzida como saudade, entendida talvez como “que-falta-você-me-faz”.

Alguém?

Alguéns!

No singular seria possivelmente uma vida. No plural raramente usado (mas nem por isso menos doloroso) seria possivelmente uma família.

Família no sentido de infância. De juventude. De adulto. De tudo.

Onde tudo começou a desmoronar e a se desagregar.

- Éramos sete – murmurei, com uma pontada de dor no coração, justamente onde me falta um pedaço.

- Não, continuamos sete – reconheci, aturdido.

No lugar de meu pai que se fora cedo demais, agora uma saudade.

Foi inevitável lembrar-me da frase de Caio Fernando Abreu:

“Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre se perdeu no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva.”

Ou quando o perfume da Murta se me faz presente.

 

II

Ela não conseguiu acompanhar-me até a porta, ficara como que paralisada no meio da sala.

E compreendi, de alguma forma, que foi porque ela não sabia se conseguiria.

Ou, talvez, o soubesse.

Enquanto eu fechava a porta com delicadeza, como se não quisesse partir (e não o queria, mas tinha), quase que com desespero guardei um último vislumbre de minha mãe.

Mas o sorriso doloroso que vira em seu rosto era cheio de orgulho, inesquecível, e apesar de tudo eu me aqueci em seu calor. Mesmo que meus olhos estivessem marejados de lágrimas impossíveis de serem evitadas e que eu procurava inutilmente conter.

- Não vá pegar minha gripe... — dissera ela pouco antes, recuando, uma forma de defesa, de disfarçar os sentimentos que não queria que transparecessem.

Eu ri. Comovido.

- Mentirosa... a senhora nem está gripada...

E a abracei assim mesmo. E a beijei com ternura no rosto molhado.

Então sai, a caminho de meu destino.

Mas não estou contando essa história por causa disso.

É porque essa foi a segunda vez que minha mãe chorou na minha frente.

Em vez de tentar bravamente conter tudo dentro de si, como sempre fizera.

Uma mala pequena. Grande demais para os poucos pertences. Pequena demais para levar tanta saudade.

Comecei a andar, a caminho da rodoviária.

O terreno vago ao lado de nossa casa me trouxe o perfume da Murta que nosso pai plantara no que chamávamos de jardim interno.

Um jardinzinho pequeno, dois bancos circulares, uma mesinha circular também de granitina com um buraco no centro onde a Murta florida se destacava. Dois pequenos canteiros. Um jardinzinho diminuto, mas pleno de significados.

O perfume da Murta me atingiu dolorosamente, como se também se despedisse daquele rapaz que partia para uma cidade distante em busca de seu futuro.

Passara no vestibular, agora era enfrentar cinco anos de distância, de saudade. Depois? Depois??? O que seria o depois?

Forcei-me a caminhar sem olhar para os lados.

Forcei-me a caminhar sem olhar principalmente para trás.

Lembrei-me da história da mulher de Lot, que se transformara numa estátua de sal quando olhara para trás, a despeito das recomendações em contrário.

Eu não precisava fazer isso, já havia me transformado numa estátua de sal sem ao menos olhar para trás. Como olhar para trás se trazia tudo dentro de mim?

Mas a imagem de minha mãe chorando me perseguia, era o que se fazia presente, aquela mãe que sonhava em ser uma mãe especial para a família, sem nunca se dar conta que era exatamente isso para o marido e os filhos.

Eu poderia lhe contar um segredo: essas mães não se encontram prontas.

A maioria de nós, mesmo que nunca o confessemos, sofre comendo os flocos de milho da propaganda na esperança de encontrar o anel mágico que pode estar na caixa, e que mude a vida de toda uma família.

Para que não haja necessidade de partidas.

Para que não haja necessidade de separações.

Para que não haja necessidade de lágrimas que muitas vezes nunca se exteriorizaram.

Mães de verdade podem não expressar em voz alta essa heresia mas elas, às vezes, inconfessadamente gostariam de ter escolhido para o café da manhã outra coisa que não aquele cereal que não acaba nunca, motivadas por uma propaganda enganosa. Ou tão poética que...

Ou nunca terem colocado um pacote deles em nossa mesa.

Mães de verdade temem que outras mães encontrem aquele anel mágico antes delas, enquanto elas vão continuar procurando e procurando e procurando durante séculos.

Fiquem tranquilas, mães de verdade.

O simples fato de vocês se preocuparem em ser boas mães significa que já o são. Mesmo que não se deem conta disso. Mesmo que achem que fracassaram. Como poderiam?

Uma manhã eu encontrei em meu cereal um pacotinho. Dentro, um anel.

Por um momento pareci explodir na esperança absurda e irrealizável de ter encontrado o anel mágico da propaganda fantasiosa.

Mas era apenas um anel de mentira.

No aro de metal amarelo uma pedrinha azul sintética qualquer.

Como não poderia deixar de ser.

E o segurei diante de meus olhos de menino, pensando o que deveria fazer com um anel que poderia ser tudo, menos mágico.

Que não iria mudar nada. Que não poderia mudar nada. Nunca.

Por um momento fugaz imaginei-me verdadeiramente com um anel mágico. O anel que poderia mudar toda uma vida. O anel que realizaria os sonhos mais insignificantes. E os mais grandiosos.

Mas era apenas um anel fantasia, nada mais que isso. Em minha pouca idade não saberia dizer se era um anel de deboche ou de incentivo.

Tipo: tente outra vez, quem sabe, na próxima...

E não deixe nunca de comprar os cereais de milho, o fabricante agradece.

Por um momento aterrador imaginei-me comendo aquele cereal por toda uma vida, perseguindo um anel mágico que nunca viria para meu dedo, que nunca mudaria minha vida e nem a dos que eu amava.

Imaginei-me com um daqueles enormes aquários feitos de vidro que deveria ter milhares de pequenos peixinhos vermelhos nadando eternamente em círculos, como se soubessem para onde ir, como se soubessem para onde estavam indo.

Só que o meu continha milhares de pequenos anéis fantasia.

Pensei simplesmente em jogar aquela coisa fora, mas, no último minuto, não consegui.

Era um pedacinho de minha infância guardada em um envelope de celofane.

Quantas chances eu ainda teria de me segurar a um pedaço de esperança?

Olhei para minha mãe e foi então que a vi chorando. Lágrimas corriam por

seu rosto e ela não fazia nada para tentar enxugá-las. Era quase como se não soubesse que elas estavam ali.

Mas como se soubesse o que eu estava pensando. Como se soubesse o que eu estava sentindo.

“- Sou eu quem é o forte, para que ninguém aqui o precise ser” – tentei convencer a mim mesmo.

Mas, como Atlas, em seguida pensei que seria bom, uma única vez, ter

alguém para suportar o peso do mundo de minha família sobre os ombros no meu lugar.

Por dois segundos inteiros, eu gostaria que pudesse ser assim.

Por dois segundos inteiros, eu gostaria de ser outra pessoa.

Mas sabia que não podia me dar a este luxo, nem como fantasia.

Nem por míseros dois segundos.

Como lera numa crônica de Artur da Távola: “Ser jovem é andar confiante como quem salta, se possível com as mãos dadas com o ar. É ter coragem de nascer a cada dia e embrulhar as fossas no celofane do não faz mal. É acreditar em frases, pessoas, mitos, forças, sons, é crer no que não vale a pena, mas ai da vida se não fosse isso.”

Só que não me sentia jovem.

Sentia-me precocemente adulto e responsável demais para isso.

E nem tinha como embrulhar as fossas no celofane do não faz mal.

Talvez... se usasse o celofane do anelzinho fantasia... talvez...

Qual... era muito pouco celofane para muita fossa.

Olhei para minha mãe, fingindo não ver as lágrimas dela. E como aquilo me doía...

Queria poder dizer alguma coisa que a consolasse, mas como fazer isso em tão pouca idade? Como dizer o que sentia, mesmo que não o soubesse transmutar em palavras:

- Olha, eu sei que o barco está furado e sei que a senhora também sabe, mas queria lhe dizer para não parar de remar, porque lhe ver remando me dá vontade de não querer parar de remar também...

Mas as palavras não saíam, não surgiam, e fiquei simplesmente girando o anel falso entre os dedos, sem saber se o dava para minha mãe, se o jogava longe, se...

Preferi ficar calado, mesmo porque nada tinha para dizer. Por mais que o quisesse. Por mais que o precisasse. Porém...

Em minha pouca idade já aprendera – pela maneira mais difícil – que a vida, apesar de bruta, pode ser meio mágica.

Dá algumas vezes para tirar um coelho da cartola.

E lá ia eu em minhas tentativas, às vezes meio cegas, às vezes meio burras, tentando acertar os passos.

Sem me preocupar se a próxima etapa seria o tombo ou o vôo...

- Filho... – chamou ela, voz baixinha, como se quisesse me consolar de alguma forma. Como se quisesse, de alguma maneira, desfazer a decepção do filho por nunca encontrar o tal anel mágico.

Ergui os olhos, sua voz havia lançado o já conhecido e radiante dardo de ternura direto em meu coração.

A despeito de tudo eu pisco, surpreso, e o sorriso mais lindo do mundo se esboça em meu rosto de menino. O sorriso que minha mãe sempre quisera, queria e iria querer ver em meu rosto. Sempre. Para sempre.

Olhei compenetrado para ela, tentando esconder a decepção. Lembrei-me das palavras de papai, referindo-se à nossa mãe:

“ – Só ela podia vestir bolinhas dos pés à cabeça... e continuar linda.”

Respirei fundo, tinha que consolar minha mãe.

Tentei sorrir para ela, mesmo que fosse um sorriso-de-não-faz-mal.

Um filho faz o que sua mãe precisa, mesmo quando isso parece ser mais difícil do que morrer.

De vez em quando aquele sorriso vem de dentro de mim e sobe à superfície.

Mas, quem sabe? Talvez eu estivesse errado. Talvez a vida de uma pessoa, de uma família, pudesse mesmo mudar em um instante.

Mesmo que não fosse um instante mágico.

Mesmo que nunca encontrasse o tal anel mágico em meio aos flocos de milho.

Nossa alma tem estranhas veredas.

O tempo faz a gente esquecer.

Há pessoas que esquecem depressa.

Outras apenas fingem que não se lembram mais.

(continua)



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