Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Quinta-feira, 21 foi aniversário de Brasília - e sinto que devo falar alguma coisa a favor dela. É notável o esforço que a classe política tem feito para prejudicar a imagem da cidade. Para o senso comum, afinal, Brasília não passa de um covil de ladrões. Mas, apesar de tudo, existe vida fora do Congresso. E ela também é feita por gente que ganha pouco, que leva duas horas para chegar ao trabalho, que anda em ônibus da pré-história, e que morre esperando atendimento nos hospitais.
São pessoas que também se entusiasmam com o futebol - assim como em São Bento, boa parte torce para times do Rio. Estão sujeitas às mesmas paixões que nós, e também se revoltam contra o governo. Há algumas diferenças, no entanto: em Brasília, a ordem natural da vida é a seguinte: nascer, crescer, reproduzir, passar num concurso público e morrer. Pode se imaginar o desespero que o cancelamento dos concursos públicos em 2011 causou na cidade.
E todos são obrigados a aprender rapidamente noções de matemática e geografia - do contrário, dificilmente encontrariam algum endereço, pois as ruas não passam de letras, números e pontos cardeais. Existe ainda essa mania de criar siglas. Eu mesmo moro na SHIGS. É um nome impronunciável, e ninguém sabe o que significa - o último "s" é "sul". Existem até siglas com letras que remetem a outras siglas. "Brasília", no fundo, deve ser alguma sigla também.
Legião Urbana
Morando aqui, é possível entender todas as referências geográficas nas músicas da Legião Urbana. Morei por dois meses em Ceilândia. Foi lá, em frente ao lote 14, que João de Santo Cristo e Jeremias marcaram aquele terrível duelo. Antes de chegar lá, é preciso passar por Taguatinga, onde João cortava madeira, aprendiz de carpinteiro, ganhava cem mil por mês.
João fez amigos e frequentava a Asa Norte. Eu moro na Asa Sul - lá onde outro João, o João Roberto, era o maioral - ele tinha um Opala metálico azul e era o rei dos pegas. Por lá passa um ônibus que vai para Sobradinho. Lá fica a curva do Diabo, onde aconteceu o maior pega que existiu - só deu pra ouvir foi aquela explosão, e os pedaços do Opala azul de Johnny pelo chão.
Existe ainda o Parque da Cidade. Foi lá que o Eduardo e a Mônica se encontraram - a Mônica de moto e o Eduardo, de camelo. E existem aquelas músicas que não citam absolutamente nada da cidade, mas que mesmo assim podem ser sentidas sem grande dificuldade por aqui: também em Brasília, afinal, amar ao próximo é tão demodé...
Estações
Muito se fala que só existem duas estações em Brasília - a das chuvas, que vai de outubro a abril, e a da seca, de abril a outubro. E o ano inteiro faz um calor tão grande que, desde que estou aqui, nunca usei sequer uma camisa de manga comprida. Pode parecer incrível a um são-bentense afirmar que em Brasília as pessoas não sabem o que significa geada.
Mas sou capaz de jurar que na semana passada eu vi o outono. O sol não estava tão quente, havia sombras, um vento suave, e folhas caindo das árvores. Foi algo tão rápido, e parecia tão impossível que julguei ter visto mal. Em pouco tempo, esqueci o assunto e voltei aos meus compromissos - essas coisas aborrecidas que afetam pessoas do Brasil todo.
Saudações!