Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Escrevi a coluna da semana passada antes que a loucura tomasse conta de todo o noticiário. O atirador de Realengo mostrou, afinal, que estava longe de ser uma pessoa normal. Somos atingidos porque não esperamos que coisas assim aconteçam com quem mal começou a viver. A televisão, sabendo disso, explora o caso até a última gota - sentem saudades dos casos Isabella e Eloá.
E por isso traçam perfis de todas as crianças mortas, e buscam saber quais eram as suas histórias, e quais os sonhos que tinham, para que todo mundo fique ainda mais chocado ao perceber que tudo foi interrompido para sempre. É curioso que nessa semana eu quis escrever sobre um velho, e não uma criança. Um velho que viveu muito, mas que também foi interrompido antes de terminar.
Um velho de chapéu
Eu fazia aulas de inglês na Barão do Rio Branco. Da janela do segundo andar, podíamos observar o movimento da rua. De tanto olhar para fora, notamos a estranha figura de um homem muito idoso e bastante magro. Usava um óculos fora de moda, e um chapéu do tempo em que se usava chapéu. Caminhava com a dificuldade natural de quem já havia passado dos 80 anos.
De vez em quando, ele encontrava algum conhecido na calçada. Conversavam por algum tempo, e então o velhinho continuava caminhando, sem suspeitar que era observado. Por um momento, esquecíamos dele e voltávamos a prestar atenção na aula. One little, two little, three little indians. Depois de enrolarmos a língua por algum tempo na pronúncia, alguém anunciava com espanto:
- Lá vem o velhinho de novo!
Como um relógio
E, de fato, lá vinha ele de novo, caminhando na mesma direção que antes. Isso nos levou a acreditar que ele andava em círculos. Dobrava a Barão do Rio Branco, subia a Felipe Schmidt e então virava no Calçadão, ou provavelmente na Jorge Lacerda. Passava pela frente da prefeitura, alcançava a praça e de lá recomeçava. Essa descoberta nos divertiu bastante.
Era possível saber o horário simplesmente por avistar o velhinho, tão pontuais eram as suas voltas no quarteirão. Creio que, na época, eu não tinha muita ideia de quem era ele. Para nós era apenas um senhor estranho e engraçado que dava voltas à toa, provavelmente por não ter coisa melhor para fazer em casa. Pois era o historiador Alexandre Pfeiffer.
Isso explicava muita coisa: Pfeiffer conhecia a história daquele quarteirão e da cidade como ninguém. Viu aquelas ruas se transformarem e os prédios virarem aquilo que são hoje. Sua caminhada, provavelmente, era um mergulho em si mesmo e no passado daquela cidade que amava. Eram coisas que na época a gente não conseguia entender.
Projetos
Apesar da idade avançada, sempre ouvi falar que Pfeiffer estava cheio de planos. Que não parava de pensar em projetos, e queria escrever mais livros. "É por isso que ele não morre", cheguei a ouvir. Era uma ousadia tremenda que continuasse a ter planos, quando o natural era ficar em casa esperando a morte. Pois foi assim, cheio de coisas para fazer, que o velhinho se despediu da vida.
"De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza que seria interrompido antes de terminar"
(Fernando Sabino)