Karina Schovepper - Taísa Rodrigues - Roelton Maciel
Joinville - Os sentimentos de inconformidade e revolta eram nítidos nos olhos do pedreiro Valcedir dos Santos, de 38 anos, que perdeu a esposa na madrugada de desta segunda-feira. A dona de casa Benta Janaína Lamego, de 36 anos, morreu depois dois dias internada no Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, em Joinville, com dores abdominais, paralisia facial, fraqueza e boca seca. Deu entrada na tarde da sexta-feira, foi medicada e ficou em observação até a noite de domingo, sem que ninguém chegasse a um diagnóstico. A partir daí, foi encaminhada à ala psiquiátrica do hospital, onde morreu.
Ainda na segunda-feira, o secretário de Estado da Saúde, Dalmo Claro de Oliveira, anunciou por meio do microblog Twitter que a secretaria investigava a causa da morte da mulher. Benta, o marido e um amigo do casal passaram mal na quarta após ingerir uma mortadela comprada em um mercado perto da casa em que morava o casal, em Araquari. A dúvida da secretaria é se o embutido estava contaminado com uma neurotoxina que causa o botulismo, uma doença grave que precisa ser descoberta rapidamente para não causar a morte.
Segundo Valdecir, o casal percebeu que a mortadela tinha cheiro forte.
— Estava dentro da validade e achamos que não havia problema.
Na quinta de manhã, Benta e o marido foram ao Pronto-atendimento de Araquari com sintomas de intoxicação alimentar. Foram medicados e liberados.
Segundo o irmão dela, Hermes Lamego Jr., 32, Benta piorou na sexta. Não conseguia mais engolir nada, sentia falta de ar, boca seca e fraqueza. Hermes levou a irmã de novo ao PA de Araquari, onde novamente recebeu remédio e foi para casa.
Como continuou mal, a dona de casa foi transferida ao Regional, em Joinville, conta o marido.
— Ela não conseguia falar nem tomar água. Mesmo assim, médicos diziam que não era nada, que era coisa da cabeça dela. Vi minha mulher morrer e não pude fazer nada —, diz o pedreiro.
Benta ficou em observação até a noite de domingo, quando foi transferida para a ala psiquiátrica. O marido dela recebeu a notícia da morte por telefone, às 6 horas.
— Ficamos até a meia-noite tentando vê-la, mas depois que a transferiram não deixaram mais entrar no quarto. Então fomos para casa —, conta ele, que foi surpreendido com a declaração de óbito.
— Disseram que foi morte natural e que não fariam a autópsia.
Inconformado, o pedreiro foi até a Central de Polícia de Joinville registrar boletim de ocorrência e exigir autópsia no corpo encaminhado ao IML da cidade. À noite, ainda não havia sido entregue à família.
— Fiquei sozinho, com três filhos para criar —, desabafa Valdecir, amparado pelos três filhos – um menino de dois anos, e outras duas garotas, de 14 e 16 anos.
INTERNAÇÃO EM ALA PSIQUIÁTRICA
“A Notícia” teve acesso ao histórico de atendimento da paciente Benta Lamego, de 36 anos, que mostra os passos da equipe que a atendeu no Hospital Regional Hans Dieter Schmidt. O documento comprova que, após uma série de exames e de consultas por especialistas que não chegaram a um diagnóstico, a dona de casa acabou internada na ala psiquiátrica do hospital, onde morreu pouco mais de dois dias depois.
Às 14h25 de sexta-feira, Benta foi internada no Regional. Reclamava de dores abdominais e informou que teve vômito e diarréia, seguida de rouquidão, boca seca e falta de ar. Segundo o relatório, Benta passou por vários exames clínicos. Eles atestaram, de acordo com o registro, que ela tinha a mucosa da boca seca (um sintoma de botulismo). Mas os exames na garganta, raio-x do tórax e de sangue não revelaram problemas. Ela continuou em observação, no soro.
Como os sintomas persistiram, às 8h35 de sábado Benta foi atendida por um neurologista, que não constatou doenças neurológicas. À tarde, a dona de casa foi avaliada por um gastroentereologista, que também não achou o problema. Perto das 19 horas de sábado, a equipe avaliou a capacidade dela em engolir água. A dona de casa não conseguiu ingerir nada. Também é sinal da doença, que prejudica a capacidade de os músculos responderem aos nervos.
A última avaliação clínica foi às 8 horas de domingo. Ao meio-dia, Benta teria se mostrado agitada e foi sedada levemente. Transferida à ala psiquiátrica, foi atendida por um médico que prescreveu diversos remédios, boa parte sedativos (veja quadro ao lado). Havia ainda um remédio contra esquizofrenia.
A conclusão do psiquiatra foi de que Benta falava de forma arrastada, não se alimentava e não tomava água. "Molha a boca com os dedos ao invés de beber.” Ela foi encontrada morta por um enfermeiro às 3 horas de de segunda-feira.
DEMORA EM DIAGNÓSTICO SERÁ AVALIADA
O secretário do Estado da Saúde, Dalmo Claro de Oliveira (PMDB), conta ter recebido a informação de que Benta Lamego chegou ao Hospital Regional Hans Dieter Schmidt na sexta-feira, com diarreia, vômito, rouquidão e dificuldades para engolir. Ela foi colocada em observação e recebeu hidratação pela veia.
Segundo Dalmo, um gastroenterologista e um neurologista a avaliaram e não encontraram um diagnóstico. Benta teria continuado agitada e se queixando de dores. O secretário da Saúde afirma que a paciente foi avaliada por um psiquiatra apenas 48 horas depois.
O profissional teria recomendo que ela ficasse em observação na psiquiatria.
— A observação foi feita na ala psiquiátrica, mesmo. Infelizmente, houve dificuldade para se fazer o diagnóstico. Esse é o relato que tenho —, explica o secretário, que também é médico.
Ele afirma não saber se a dona de casa foi medicada na psiquiatria porque não teve acesso ao prontuário. Mas reconheceu haver calmantes na lista de remédios obtida por “A Notícia”.
— Isso não interfere. Com certeza não tem a ver com o desfecho. O problema é que não houve o diagnóstico precoce do botulismo.
Conforme o secretário, a dificuldade de se chegar ao diagnóstico será apurada numa avaliação do atendimento à paciente.
— Já antecipo que não trabalho com a hipótese de algum tratamento prejudicial. Só me parece que não houve o diagnóstico da doença. O que é um problema mesmo —, opina.
MARCA ORIENTADA A RETER RESTO DE LOTE
Uma análise preliminar da mortadela apontou a possível presença da bactéria causadora do botulismo. O teste foi feito no laboratório central da Secretaria do Estado da Saúde, em Florianópolis. A mesma amostra foi enviada pela secretaria ao Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, no sábado. O laboratório paulista tem tecnologia capaz de identificar a suposta bactérica com mais precisão. Não há prazo para que o resultado da análise seja divulgado. A resposta pode levar mais de uma semana.
Enquanto não há confirmação, a fabricante da marca Pena Branca, ligada à Seara e ao grupo Marfrig, foi orientada pela Vigilância Sanitária do Estado a reter todo o estoque da mortadela com toucinho fabricada no dia 17 de fevereiro. O lote havia sido entregue ao comércio pelos centros de distribuição de Canoas (RS) e Itajaí.
Ainda não há ordem de recolhimento para os produtos que já estão no mercado. Eles só devem ser retirados de circulação se a contaminação for confirmada. Mas o secretário do Estado da Saúde, Dalmo Claro de Oliveira, alerta para o risco de infecção.
Ele publicou mensagens de orientação, na tarde de segunda, na sua página pessoal no microblog Twitter.
— Publiquei lá porque sabia da divulgação. A rede social é muito forte nisso. Alertamos que aquela mortadela, daquela marca, ainda não deve ser consumida.
Além do fabricante, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Vigilância Sanitária do Rio Grande do Sul também já foram comunicadas pela Secretaria Estadual de Educação sobre a suspeita de contaminação. A informação ainda foi repassada às vigilâncias municipais de SC.
— É por cautela. Não podemos condenar o material nesse momento. Precisa de uma análise mais detalhada —, avisa Dalmo.
Por meio da assessoria de imprensa, a Seara informou que técnicos da empresa também retiraram uma amostra do produto em um ponto de venda para análise própria. O resultado da análise deve sair nesta quarta-feira. Até a noite de segunda-feira, o fabricante ainda fazia um levantamento para saber se há outros produtos do mesmo lote em estoque. Se houver, o material ficará retido em câmara fria até que as análises complementares sejam concluídas.
A empresa informou que desconhece outros possíveis casos de infecção. O grupo Marfrig é o segundo maior produtor de embutidos no País. Só a Seara tem mais de 30 distribuidores e cerca de 60 representantes exclusivos da marca no mercado nacional.