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ANVISA X Classe médica

Terça, 08 de março de 2011

 

Formei-me médico em um ambiente político e cultural onde as decisões sobre o diagnóstico e tratamento farmacológico dos pacientes era prerrogativa da classe médica, que por sua vez, baseava-se na literatura científica, na cultura do meio, nas experiências vividas e relatadas, e no interesse de cada paciente, onde suas particularidades compunham a "cesta" de dados usados para se estabelecer os critérios de riscos e benefícios.

O desenvolvimento e divulgação da medicina baseada em evidências trouxe um novo paradigma para a prática médica, ressalvando-se as faltas e excessos interpretativos que induziram muitos a erros, sendo o exemplo clássico o do estudo DIG (1995), que terminou por desmoralizar a digoxina como ferramenta terapêutica trazendo imensos prejuízos a quem dela necessitava.

O fato foi tão grave que,  no congresso do American College of Cardiology de 1999, ao qual estive presente, realizou-se uma plenária com talvez 2000 cardiologistas de diversos países para um "realinhamento" do conhecimento sobre aquele que é um fármaco utilizado há séculos no tratamento da insuficiência cardíaca. Sim, a ciência também pode produzir mal-entendidos, além do conhecimento, e apenas o ambiente do livre pensar e o da busca incessante da verdade pode ser o norte da prática médica e da saúde pública.

O passar dos anos trouxe ao nosso contexto a ANVISA, órgão regulamentador e fiscalizador de insumos médicos, sanitários e de qualquer coisa que possa interferir na saúde dos brasileiros. Desde então, diversas intervenções desta agência, pressupostamente a serviço da segurança das atividades relacionadas à saúde, revelaram um temperamento por demais agressivo, posto que estabeleceram normas e vedações que interferem diretamente na prática médica sem o devido debate com nossas classes profissional e científica, e sem a supostamente devida coerência com outras práticas estabelecidas.

Medicamentos foram retirados do mercado com critérios de segurança que não deixariam muitos dos mais vendidos medicamentos atuais nas prateleiras das farmácias. Proibições foram impostas às farmácias de manipulação, exatamente nos tópicos onde elas tinham o melhor potencial de atendimento às necessidades personalizadas de pacientes. Dificuldades intermináveis no registro de novos medicamentos já aprovados em outros continentes retardaram a sua aplicação no paciente brasileiro. E a mais recente, a tentativa desastrada de banir todos os anorexígenos (inibidores do apetite) do mercado, tomada com base em "evidências científicas de que os riscos são maiores que os benefícios".

A audiência pública realizada no último dia 23 de fevereiro foi marcada por um tensionamento inédito entre a classe médica e o órgão, justamente pelo fato de que  a ANVISA não revelou à sociedade os tais dados de risco, aparentemente só a eles acessíveis, pois que são desconhecidas das respectivas sociedades de endocrinologia e metabolismo, entre outras. Em uma postura reveladora, a ANVISA postergou, sine die, a publicação da estrondosa resolução.

O episódio pode ser interpretado como uma confissão de burocratas, que pretendem estabelecer verdades absolutas a partir de si mesmos, governar a prática médica e apropriar-se espuriamente de um conhecimento para o qual mostram não ter a devida e necessária competência. A prática médica não pode ser confundida com ciência médica. Esta última, é a instância produtora de conhecimentos; a primeira, utiliza os conhecimentos na prática clínica, que só pode ter como pretensão a produção de uma verdade individual e inalienável, que é a do paciente.

Os riscos calculados em condições controladas por certos estudos científicos muitas vezes não refletem a situação do indivíduo. Ainda que assim fosse, chegaríamos então ao ponto fundamental deste texto: Pode a ANVISA interferir em caráter absoluto sobre o desejo dos pacientes, sobre a decisão de seus médicos, confrontando um conhecimento acumulado em décadas de experiência? A responder sim, estaremos transferindo a um órgão não representativo da sociedade a capacidade de usurpar de suas funções precípuas, ao invadir o território legislativo, científico, o da prática médica, e o da intimidade da pessoa humana.

 O debate aqui colocado é imensamente maior que o aparente, estamos tratando sim de direitos fundamentais. Uma vez ultrapassado este limite, se a sociedade assim permitir, a procuração estará passada aos burocratas, permitindo-os a regular virtualmente qualquer aspecto da vida e suas relações com a saúde. Sairemos do campo do debate científico e do amadurecimento democrático para retroceder ao paternalismo autoritário ou ao mundo obscuro dos dogmas petrificados. Vamos ter que escolher.

Contribuição do médico Nelson Nisenbaum, residente em São Paulo. Email: nelsongn@gmail.com



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