Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
O uruguaio Eduardo Galeano escreveu "As Veias Abertas da América Latina", um livro com duras verdades que o Hugo Chávez deu de presente para o Obama. Não faria mal aos dois que também lessem algumas verdades mais singelas escritas por Galeano no seu "O Livro dos Abraços". A começar pela introdução: "Recordar: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração". Não entendo nada de latim, mas acho bonito demais para ser mentira.
Arrastado para o passado
Dona Lúcia, a dona do quarto em que moro, esparramou um monte de fotos pelo chão - em pleno corredor. "Às vezes eu gosto de ficar olhando pra elas. Mas nem sempre. Lembro de tanta coisa...". Ela queria achar uma foto em especial, uma foto provando que, há algumas décadas, já havia sido uma aeromoça.
Tudo isso só porque eu havia comentado, por acaso, alguma coisa sobre o caos aéreo no final do ano. Foi eu falar isso e a dona Lúcia se lembrou do seu tempo. E logo muitas coisas começaram a passar de novo pelo seu coração. Sem muita escolha, vi-me arrastado para o passado de dona Lúcia.
Foram 25 anos na Vasp, voando por todo o Brasil, nunca aconteceu nada, mas tinha um piloto que teve cinco acidentes, e o pessoal chamava de Pé-de-cova, tinha o corpo cheio de platina, e ela gostava de trabalhar, e só saiu porque tinha um marido ciumento, e ele foi lá pedir a sua demissão, e ela teve sete maridos, e essa aqui na foto era a sua amiga mais nova, ela também voava, e o filho dela era drogado, um dia ela foi viajar e ele vendeu os móveis, e ela morreu de câncer, e ela não sabia o que havia acontecido com ele depois disso, e ela acha que já tomou meu tempo demais, e que eu devo ter alguma coisa pra fazer.
Em seguida, dona Lúcia pegou as fotos espalhadas pelo chão, colocou dentro da caixinha e se despediu. Quando contei essa história para uma amiga, ela se espantou com a minha paciência. "Eu não teria conseguido ficar ouvindo por tanto tempo assim". Foi um bom tempo mesmo, e aquelas coisas realmente não diziam respeito a mim. Mas seria uma injustiça impedir que aquelas emoções corressem soltas, livres, depois de tanto tempo guardadas. E, então, eu deixei que voltassem a passar pelo seu coração.
Pelo coração de são-bentenses
Donald Malschitzky anda entrevistando algumas pessoas. É muito bom que faça isso. Coisas também estão passando pelo coração de quem lê - por isso é natural que o livro faça sucesso. Já deixamos escapar muita gente que nunca teve oportunidade de falar o que sabia. E já deixamos de aprender muita coisa com o nosso desdém pela história dos outros.
A História
Certa vez entrevistei José Kalkbrenner Filho, antigo fotógrafo curitibano, e que ainda vive. Tivemos uma conversa agradável, cheia de risadas e acontecimentos dos anos 50. A entrevista havia sido um sucesso. Ele também me mostrou o seu estúdio e as suas preciosas máquinas fotográficas. Todo esse belo momento estaria devidamente registrado em um gravador, caso eu soubesse mexer nele: sem querer, eu apaguei toda a nossa conversa.
A História, essa com H maiúsculo, talvez seja isso mesmo: informações preciosas deixadas num gravador que nós não sabemos mexer - e que, num descuido, apagamos para sempre.
Saudações!