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Obras Publicadas de Cléverson Israel Minikovsky

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Cléverson Israel Minikovsky


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A Liberdade na Trajetória Intelectual de Karl Marx

Terça, 30 de novembro de 1999

 

A LIBERDADE NA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE KARL MARX

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2000

 

AGRADECIMENTO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aos meus pais que me deram todo apoio financeiro para a realização desta monografia.  Ao Dr. Márcio Bolda da Silva que aceitou orientar meu trabalho. Ao Mestre Victor Hugo Mendes que me ajudou enormemente com o empréstimo de livros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DEDICATÓRIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aos meus mestres.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

AGRADECIMENTO................................................................................................................00

DEDICATÓRIA.......................................................................................................................00

SUMÁRIO................................................................................................................................00

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 00

1. A VIDA E AS OBRAS DE  MARX, AS TRÊS POSIÇÕES FUNDAMENTAIS  DA FILOSOFIA EM RELAÇÃO   A   LIBERDADE   HUMANA    E   A    PRODUÇÃO INTELECTUAL JUVENIL DO REFERIDO AUTOR, EM DETALHES.......................00            

1.1 BIOGRAFIA...................................................................................................................... 00

1.2 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 00

1.3 AS CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS................................................................................ 00

1.3.1 Os Defensores da Liberdade Humana: Aristóteles e Sartre............................................ 00

1.3.2 Os Deterministas.............................................................................................................. 00

1.3.3 A posição intermediária: A liberdade como tensão que comporta aspectos deterministas e indeterministas.................................................................................................................................................. 00

1.3.4 Os Céticos........................................................................................................................ 00

1.4 O JOVEM MARX.............................................................................................................. 38

1.4.1 A Tese de Doutoramento................................................................................................. 00

1.4.2 O Primeiro Artigo............................................................................................................ 00

1.4.3 A Crítica a Hegel e à Religião.......................................................................................... 00

1.4.4 A Questão Judaica........................................................................................................... 00

1.4.5 O Conceito de Alienação e a Questão da Liberdade....................................................... 00

1.4.6 O Poder das Idéias........................................................................................................... 00

1.4.7 Práxis e Liberdade........................................................................................................... 00

 

2 O MARX MADURO E A QUESTÃO DA LIBERDADE.............................................. 00

2.1 O MATERIALISMO HISTÓRICO E O DIAMAT......................................................... 00

2.2 FILOSOFIA DA MISÉRIA X MISÉRIA DA FILOSOFIA........................................... 00

2.3 PROTECIONISMO OU LIVRE-CAMBISMO?.............................................................. 00

2.4 FILOSOFIA, POLÍTICA E REVOLUÇÃO.................................................................... 00

2.5 TRABALHO X CAPITAL................................................................................................ 00

2.6 DE QUE MODO CHEGAREMOS A UMA SOCIEDADE LIVRE?............................. 00

2.7 OS ASSUNTOS DO DIA!................................................................................................ 00

2.8A “RODA DA HISTÓRIA” E A LIBERDADE.............................................................. 00

2.9 IMPRENSA:    ESPAÇO    DE    DENÚNCIA   DAS    ESTRUTURAS     SOCIAIS

      ESCRAVIZANTES........................................................................................................... 00

2.10 O MARX DESCONHECIDO!........................................................................................ 00

2.11 MARX E A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES......................................... 00

2.12 A   ESSÊNCIA,   O   ALCANCE  E  O PRESSUPOSTO DA EMANCIPAÇÃO DO

        PROLETARIADO........................................................................................................... 00

2.13 O SUPRA-SUMO DO PENSAMENTO MARXIANO................................................. 00

2.14 O MATERIALISMO HISTÓRICO E A PRODUÇÃO INTELECTUAL.................... 00

2.15 O CAMINHO PARA LIBERDADE: A DISSOLUÇÃO DO ESTADO BURGUÊS E A

        TOMADA DO PODER POLÍTICO PELAS CLASSES TRABALHADORAS.......... 00

2.16 AFINAL, O QUE QUEREM OS COMUNISTAS?....................................................... 00

CONCLUSÃO........................................................................................................................ 00

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 00

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 00

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO  

 

O presente trabalho representa o coroamento de um longo estudo monográfico e visa dar resposta a uma pergunta bastante específica: para Marx, o homem é livre ?

Pois bem. Sabemos que o filósofo assemelha-se muito mais àquele alpinista que enfrenta íngremes paredões de rocha para atingir o pico da montanha e poder contemplar paisagens de vastos horizontes, do que ao mágico que tira, instantaneamente, um coelho de sua cartola. Isto quer dizer que os sistemas filosóficos não são o reflexo de um “insight”, mas a descrição daquela paisagem que o filósofo contempla ao atingir o pináculo de sua trajetória intelectual. Ora, assim como o alpinista contempla diversas paisagens durante o percurso de sua árdua caminhada, porque olha para a mesma realidade, a planície que circunda a montanha, sob diversos ângulos, o mesmo acontece com o filósofo: à medida que vai chegando ao topo de sua visão de mundo, novos aspectos do real se lhe apresentam. Daqui, a necessidade de analisarmos toda a trajetória intelectual de Marx para chegarmos a uma compreensão adequada do seu conceito de homem e, afirmar, com relativa segurança, se, de acordo com sua visão, o ser humano é livre ou não-livre.

Nossa redação divide-se em duas partes destinadas, respectivamente, à análise da problemática da liberdade humana no “Jovem Marx” e no “Marx Maduro”. Enquanto o "Jovem Marx” concebe a liberdade como um dos principais atributos da essência humana, o “Marx Maduro” liberta-se de toda concepção essencialista de homem pois entende que o homem verdadeiramente livre não pode contar com uma existência cujo desígnio seja a concretização de uma essência (que previamente lhe foi dada por outrem).

Marx, observando a vida social, constata que não é a consciência do homem que constrói o seu ser, porém, seu cotidiano, sua vida em comunidade, que constrói  sua visão de mundo, seu modo de pensar. O ser humano, vindo ao mundo não está fadado a modelar sua existência em conformidade a um paradigma antropológico ideal, mas é capaz de construir livremente sua personalidade. É claro que o homem não constrói sua personalidade, voltado sobre si mesmo, tal como o Eu Absoluto de Hegel. O homem,  embora sendo livre, é condicionado pelas circunstâncias concretas de vida próprias da formação social, situada no espaço e no tempo, em que está inserido.

O materialismo dialético, cuja tese principal é a preponderância da totalidade (complexíssima trama de relações) sobre a particularidade e a singularidade, é conciliável com a liberdade individual ? O homem é construtor ou produto da história? Ou seja, o homem é capaz de livre-iniciativa? Não apenas estas questões, mas outras ainda mais espinhosas, como o refinamento e procedimento metodológico marxiano e sua conexão com a problemática da liberdade humana, serão abordadas neste trabalho.

Sem dúvida, trata-se de um trabalho muito atraente, sobretudo para aqueles que se interessam por uma temática bastante atual: o homem, quem é ele ?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO I

 

1   A VIDA E AS OBRAS DE MARX, AS TRÊS POSIÇÕES FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA EM RELAÇÃO À LIBERDADE HUMANA E A  PRODUÇÃO INTELECTUAL JUVENIL DO REFERIDO AUTOR, EM DETALHES

 

1.1  BIOGRAFIA

 

Karl Heinrich Marx nasceu na cidade alemã chamada Trier, em 05 de maio de 1818. O pai de Karl, o notório advogado Heinrich Marx, deixou a religião judia e se converteu ao protestantismo por causa das leis anti-semitas que imperavam na Renânia. Se não tomasse tal medida, perderia o emprego. Na verdade, o nome do pai de Karl era Heschel, mas foi germanizado. Em Trier havia pouco mais de 200 protestantes, quase todos os 15 mil habitantes da cidade eram católicos. É bem provável que Marx tenha falado tanto de alienação, influenciado pela sua experiência concreta de vida: descendente de judeu e protestante! O adolescente Marx devia se sentir um estranho, ao que tudo indica, em sua própria terra natal. Mas por que Heinrich não se converteu ao catolicismo? Porque o protestantismo era uma religião mais liberal. O pai de Karl era leitor assíduo dos filósofos iluministas e, politicamente, anti-monarquista.

Sabemos que Marx foi um grande historiador. Não poderíamos esperar outra coisa dele:

Sob o nome de Augusta Treverorum a cidade (Trier) foi considerada a Roma do Norte e serviu de quartel-general para os exércitos romanos mais poderosos. A Porta Nigra, em cujas sombras (literalmente) Marx cresceu, e a enorme basílica do quarto século eram monumentos permanentes da glória imperial de Trier. Na Idade Média a cidade foi a sede de um principado-arcebispado cujas terras se estendiam até Metz, Toul e Verdun; dizia-se que ela possuía mais igrejas do que qualquer outra cidade alemã do mesmo tamanho (MCLELLAN, 1990,14).

 

Outro dado extremamente revelador: durante as guerras napoleônicas a Renânia fora anexada à França. Isto explica duas coisas: a)a razão pela qual Marx se tornou um profundo estudioso da história francesa, sobretudo, da Revolução de 1789; b) a liberdade de pensamento e expressão que possibilitava a publicação de artigos bombásticos redigidos pelo jovem Marx. Mesmo depois da reincorporação da Renânia à Prússia, o ambiente de liberdade perdurou.

Eis um acontecimento político cuja repercussão econômico-social marcou Karl Marx profundamente.

Um descontentamento considerável seguiu-se à Incorporação da Renânia à Prússia em 1814. Trier tinha muito pouca indústria e seus habitantes eram principalmente funcionários, comerciantes e artesãos. Suas atividades estavam amplamente ligadas com os vinhedos cuja prosperidade, devido às uniões aduaneiras e competição externa, estava em declínio. O conseqüente desemprego e os altos preços causaram aumento de mendicância de prostituição e emigração; mais de um quarto da população da cidade subsistia inteiramente da caridade pública (Ibid.,14).

 

Vendo toda aquela miséria durante sua juventude, Marx tinha uma razão a mais para investigar as suas causas: “Os judeus na Renânia (...) eram freqüentemente  bodes expiatórios para a crescente pobreza dos camponeses...” (ibid., 18). Em O Capital Marx iria mostrar as causas reais do aumento da pobreza no seio da sociedade.

Aos 17 anos de idade Marx deixou o lar da família para entrar na universidade, em Bonn. Conforme a vontade de seu pai, ele se matriculou no curso de Direito. Como na Universidade de Bonn Marx escrevia muita poesia e estudava pouco, seu pai, em 1836 (um ano depois), o transferiu para Bonn. Em Bonn, Marx se dedicou ao estudo da História e da Filosofia. Tornou-se hegeliano mas, com o tempo, afastou-se gradativamente do pensamento do grande mestre. Em 1841 tornou-se doutor em Filosofia. O tema de sua tese foi Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Foi  defendida em Iena. Marx queria seguir carreira acadêmica para ter um rendimento fixo e poder casar com Jenny, sua noiva. Entrementes, sua carreira de professor foi condenada quando Bruno Bauer que foi expulso da Universidade pelo governo. Marx colocava a esperança de ter acesso ao mundo universitário.

Em busca de uma função que garantisse seu  sustento, o de Jenny e da futura família, Marx tornou-se editor do jornal Rheinische Zeitung (Gazeta Renana). Isto aconteceu em Colônia, em 1842. Aos 21 de janeiro do ano seguinte o Conselho de Ministros, seguindo ordens do rei, suprimiu o jornal. Tudo, por que Marx havia dirigido críticas ao governo prussiano que não se importava com os problemas sociais de então.

Desempregado, Marx aceita o convite de Arnold Ruge de ir para Paris e fundar uma revista chamada Deutsche-französische Jarbücher (Anais Franco-Alemães). Esta revista substituiria os extintos Rheinische Zeitung e o Deutsche Jahrbücher (Anais Alemães) ( o jornal de Ruge que também tinha sido fechado pelo governo ). Marx havia se casado pouco antes de viajar para Paris. As dificuldades financeiras pelas quais os cônjuges passariam, teriam início já na vida de recém-casados, na capital francesa. A razão disto é que os Deutsche-frazösische Jahrbücher não passaram da primeira edição. Marx, nesta época, já tinha abandonado o liberalismo, abraçando o socialismo. Sua posição política, além do quê, foi tonificada pelo encontro com os socialistas franceses (conheceu Proudhon). Ruge era um liberal contumaz ! Estas divergências ideológicas impossibilitaram o entendimento entre os dois editores. No primeiro-último número da revista, Marx contribuiu com dois longos artigos: A Questão Judaica e a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.

O sustento da família Marx, em Paris, provinha, antes de tudo, das contribuições dos amigos e dos parentes de Jenny. Em 1844, depois de intensos estudos de Economia Política, Marx escreveu os Manuscritos Econômico-Filosóficos. “No fim de agosto de 1844 Engels passou por Paris em sua viagem de volta para a Alemanha. Seu encontro histórico com Marx ocorreu aos 28 de agosto no Café de la Régence, um dos mais famosos cafés parisienses do tempo, que contava entre seus clientes Voltaire, Benjamin Franklin, Diderot, Grimm Luís Napoleão, Sainte-Beuve e Musset” (Ibid., 147).

No que diz respeito à Economia Política, Engels era filho de um fabricante inglês e tinha bastante conhecimento empírico das questões financeiras. Engels tinha escrito para o Deutsche-französich Jarbücher o artigo Esboço de uma Crítica da Economia Política. Marx qualificou o artigo de “genial”. No tangente aos pontos de vista filosóficos, não havia discordância alguma entre eles. Tanto isto é verdade, que até decidiram escrever juntos um panfleto criticando a filosofia  de Bruno Bauer e de seus seguidores. “Engels escreveu cerca de quinze páginas que ele imaginou ser sua metade do panfleto... Marx levou até o fim de novembro para redigir sua contribuição e (tipicamente) logo viu que o “panfleto” transformara-se num livro de quase 300 páginas...” (Ibid., 148). A obra, ironicamente intitulada de A Sagrada Família : crítica da  crítica crítica foi publicada em 1845. Bruno Bauer e seus discípulos que representavam a Sagrada Família do presépio que, eternamente imóvel,  contempla as maravilhas de Deus. Bauer queria transformar o mundo através da crítica das idéias. Esquecia, portanto, que a mudança social deveria acontecer, em primeiro lugar, no âmbito do material, do concreto. Como “criticar” era moda, um dos alunos de Bauer escreveu uma réplica intitulando sua obra de (que piada!) Crítica da Crítica da Crítica Crítica (Cf. MCLELLAN, 1990, 148).

Logo após o desaparecimento do Deutsche-frazösische Jarbücher Ruge começou a escrever para um periódico cuja publicação era bissemanal. O periódico chamava-se Vörwarts e tinha sido recentemente fundado por F. C. Bernays, um Jovem jornalista que tinha fugido de Baden por causa da perseguição política. Marx tratou de refutar as argumentações de Ruge imediatamente, escrevendo para o mesmo jornal. Regularmente, Marx passou a contribuir para o Vörwarts. Suas críticas ao governo eram, no mínimo, extremamente violentas. “Antes de A Sagrada Família ter sido publicada Marx teve que deixar Paris. O governo prussiano se tornava  cada vez mais insistente em seus lamentos a respeito do Vörwarts e decretou uma ordem de expulsão do país de seus dirigentes, incluindo Marx, Heine e Ruge” (MCLELLAN, 1990, 151).

Marx foi, juntamente com a sua família, para Bruxelas. “Bruxelas seria o lar de Marx pelos próximos três anos” (Ibid., 152). Por que Marx não escolheu outro país ? “A Bélgica era uma espécie de abrigo político para refugiados, pois ela gozava de maior liberdade de expressão do que qualquer outro país no continente europeu” (Ibid., 152). Dessa forma, “os anos em Bruxelas foram provavelmente os mais felizes que a família Marx passou. Havia uma confortável fonte de renda proveniente da venda dos móveis e roupas de cama em Paris e dos 1.500 francos adiantados que Marx recebeu pelo seu livro a ser publicado” (Ibid., 153).

Nos Manuscritos de Paris (outro nome para aquilo que mais comumente é conhecido como Manuscritos Econômico-Filosóficos ou Manuscritos Econômicos e Filosóficos) e n’ A Sagrada Família Marx elogia Feuerbach pelo seu “humanismo real”. Em Bruxelas aconteceria uma verdadeira revolução intelectual na vida de Marx. Embora ele sempre tivesse insistido neste ponto, seria apenas nas Teses sobre Feuerbach que Marx colocaria, de maneira explícita, ênfase na dimensão prática, ativa da vida humana. A idéia central das onze teses é a práxis: união entre o pensar e o agir, entre a teoria e a prática. “Para Marx, em 1843, (...) Feuerbach era “o” filósofo” (Ibid., 82). Nas Teses sobre Feuerbach Marx criticaria o materialismo naturalístico e estático de Feuerbach. Marx queria acabar com a mentalidade filosófica que punha uma linha divisória entre a dimensão ativa do ser humano, ideal e social e a dimensão  passiva que era associada ao natural, ao material. Marx pretendia superar uma mentalidade secular que, em última instância, tinha suas raízes no cartesianismo. Marx pressupunha, destarte,  um materialismo dinâmico que levasse em conta o caráter social das relações que os seres humanos estabeleciam (estabelecem) entre si. O mundo das idéias não constitui uma realidade alheia, separada do mundo material, ao contrário, é imanente a ele.

Marx queria formular uma nova economia e uma nova filosofia que fossem a base sólida de uma teoria socialista superior. Chegou, perseguindo verdades científicas e filosóficas que confirmassem seus pontos de vista políticos, a resultados totalmente opostos a que a Economia Política e a Filosofia tinham chegado antes dele. Antes, porém, de lançar-se ao trabalho de construção da nova teoria socialista, Marx julgou importante refutar as teorias precedentes opostas. Parta tanto, contou com a ajuda de seu amigo Friedrich Engels. Engels viajou para Bruxelas especialmente para colaborar com Marx no ajuste de contas com suas consciências filosóficas anteriores. “A Sagrada Família não realizara isto: ela fora escrita antes de Marx ter desenvolvido sua abordagem sistematicamente materialista da história” (Ibid., 158).

O trabalho de Karl Marx e Friedrich Engels foi, basicamente, uma crítica a três  filósofos : a Ludwig Andreas Feuerbach, a Bruno Bauer e a Max Stirner. “A parte de A Ideologia Alemã mais importante é de longe a seção inacabada sobre Feuerbach” (Ibid., 159). Nela, os dois autores expõem sua inovadora metodologia de pesquisa científica no campo das ciências sociais, o Materialismo Histórico:

 

A produção das idéias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As representações , o pensamento, comércio intelectual dos homens aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, na das leis, da moral, da religião, da metafísica etc., de todo um povo. São os homens que produzem suas representações, suas idéias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são  condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e amplas formas que estas podem tomar. A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real (MARX; ENGELS, 1998, 18-9).

 

Marx  e Engels lutaram muito para conseguir publicar a obra, mas tudo foi em vão. Todos os editores consultados se recusaram a publicá-la porque ela era muito radical. Algum tempo depois Marx escreveu ; “abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos de muito bom grado pois já tínhamos atingido nosso principal objetivo : a compreensão de nós mesmos” (MARX apud MCLELLAN, 1990, 167).

Em 1846 Proudhon publicou sua obra Filosofia da Miséria. Marx um ano mais tarde revidou a obra supra citada com uma outra intitulada : Miséria da Filosofia. Marx queria dizer que Proudhon fizera da Filosofia uma miséria. No prólogo de sua obra Marx escreve : “O Sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser um mau economista, porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser um mau filósofo, porque passa por ser um dos mais vigorosos economistas franceses. Nós, na qualidade de alemão e de economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro” (MARX, 1985, 35).

Depois da publicação da obra de Marx, Proudhon rompeu sua amizade com o filósofo-economista alemão.

Em Bruxelas, Marx e Engels participavam das reuniões dos movimentos operários e ingressaram na Liga Comunista (antes, esta organização chamava-se Liga dos Justos). A organização que cobria praticamente todo o continente europeu decidiu realizar um congresso em Londres entre 2 e 9 de junho de 1847. “No final do congresso Marx e Engels receberam a incumbência de redigir um manifesto para tornar públicas as doutrinas da Liga” (MCLELLAN, 1990, 193). Assim nasceu O Manifesto do Partido Comunista. “Apesar de aparecerem os nomes dos dois na página-título e a persistente pressuposição da autoria conjunta, o escrito atual d’ O Manifesto  Comunista foi feito exclusivamente por Marx ” (Ibid., 196). Engels, para sermos precisos, havia traçado um esboço para o manifesto em  forma de 25 perguntas e respostas. Todavia, Marx não tirou muito proveito deste questionário que levava o título de Princípios do Comunismo.

Marx, por esta época, dava cursos sobre salário para a Associação Educacional dos Trabalhadores Alemães (havia muitos alemães, franceses, italianos e outros grupos de estrangeiros organizados e, Bruxelas). As palestras proferidas por Marx foram publicadas sob a forma de livro e a obra foi intitulada Trabalho Assalariado e Capital.

De 1947-9 a Europa assistiu a uma série de revoluções operárias nos principais países do continente. Os governos destes países estavam, pois, assustados e, como nunca, desconfiados de todas as organizações trabalhadoras e de seus líderes. No início de 1848 Marx recebeu 6.000 Francos de sua mãe, pois há tempo que ele lhe pedia ao menos uma parte de sua herança adiantada. O governo belga ficou sabendo da herança de Marx e pensou que ele “patrocinaria” uma revolução, na capital, com este dinheiro.

 

“Aos 3 de março Marx recebeu uma ordem, assinada pelo rei, de sair da Bélgica dentro de vinte e quatro horas. No mesmo dia ele recebeu uma resposta a seu pedido para cancelar a ordem anterior de expulsão:

Bravo e leal Marx,

O solo da República Francesa é um lugar de refúgio para todos os amigos da liberdade. A Tirania baniu você, a França libre abre suas portas a você e a todos os que lutam pela santa causa, pela fraternal causa de todos os povos. Todo funcionário do governo francês deve interpretar sua missão neste sentido. Salut et Fraternité. Ferdinand Elocon Membro do Governo Provisório” (MCLELLAN, 1990, 206).

 

Evidentemente, Marx mudou-se para a França. Por causa da mudança de Marx transferiram a sede do CC (Comitê Central) da Liga dos Comunistas de Bruxelas para Paris. Mal transferiram a sede da Liga dos Comunistas de Bruxelas para Paris e ela foi dissolvida. Por duas razões: a) Havia divergências doutrinárias e ideológicas que não apenas empecilhavam, mas até mesmo impossibilitavam a funcionalidade e a organização interna da Liga; b) O Governo Provisório dava liberdade total de propaganda política, não era preciso mais fazer segredo das idéias dos trabalhadores. Marx considerou, por conseguinte, supérflua a existência da Liga . 1

Durante a Segunda estadia de Marx em Paris, ele não fez outra coisa senão cuidar dos assuntos da Liga e de outras questões práticas que eram do interesse dos trabalhadores Aproximadamente um ano depois de estar residindo pela Segunda vez em paris, o foco da revolução não estava nem na França, nem na Inglaterra : Estava na sua terra natal. Como Marx estava munido de um passaporte que lhe dava permissão para ficar em Paris apenas um ano, ele não hesitou, retornou à pátria.

Chegando em Colônia, Marx fundou a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana). O jornal visava alcançar duas metas bastante definidas. Como primeira, “o Neue Rheinische Zeitung não pregava uma república socialista nem sequer uma exclusivamente de trabalhadores. O programa era voto universal, eleições diretas, a abolição de todos os direitos e obrigações feudais, o estabelecimento de um sistema bancário estatal e responsabilidade estatal no caso de desemprego”(Ibid., 15).

A Segunda meta da “plataforma do Neue Rheinische Zeitung era uma guerra revolucionária contra a Rússia” (Ibid., 219).

Resumindo : Marx queria alavancar a roda da história, agilizar o engendramento dos fatos políticos, para que faltasse menos tempo para acabar com a pré-história humana (aquela breve fase que antecede a duradoura civilização comunista).A primeira medida visava destruir os resquícios feudais na sociedade alemã, facilitando a revolução burguesa, pré-condição da revolução proletária. A Segunda medida objetivava libertar a Europa de um monstro (a Rússia teocrática, rural e reacionária) que freava o curso dos acontecimentos sociais e políticos.

Se Marx pode voltar para a Alemanha e fundar um jornal radical, foi porque o governo teve que abrandar a censura diante das revoluções populares. Não obstante, a crítica de Marx era demasiadamente mordaz e provocante. Eis o resultado da atividade jornalística de Marx em Colônia: “No dia 16 ele recebeu a ordem de deixar o solo prussiano dentro de vinte e quatro horas ‘por causa de sua vergonhosa violação da Hospitalidade.’ Todos os outros editores do Neue Rheinische Zeitung também foram expulsos ou ameaçados com prisão. O jornal não podia continuar. O último número apareceu aos 18 de maio, impresso em vermelho” (Ibid., 238).

Além de terem sido vendidos 20 mil exemplares do “Número Vermelho”, muitos dos quais foram revendidos por um preço dez vezes superior ao preço normal. Algumas pessoas colocaram o “Número Vermelho” em molduras refinadas para que o jornal servisse como símbolo de luta, de militância político-social (Cf. MCLELLAN, 1990.239).

Marx deixou Colônia aos 19 de maio de 1849 e depois passou alguns dias em Frankfurt, Baden e Bingen. Aos 2 de junho partiu para Paris. No começo de julho Jenny e os filhos juntaram-se ao Mouro (apelido familiar de Karl Marx). Pela terceira vez Marx é expulso de Paris: aos 19 de julho Marx é avisado  pela polícia que deveria deixar o país dentro de 24 horas (não era exatamente a França que se recusava em acolher Marx, era o continente).

No dia 24 de agosto de 1849 Marx pisou o solo insular, onde firmaria residência até o último de seus dias. Jenny chegou à  Inglaterra no dia 17 do mês seguinte com seus três filhos e mais um que deveria vir ao mundo dentro de três semanas “como notou Weerth, Marx tinha quatro nações em sua família, tendo cada filho seu nascido num país diferente” (Ibid., 244).

Na Inglaterra, a família Marx passou por terríveis momentos de miséria. Não fosse a excepcional boa-vontade de Engels que gastava mais com a família Marx do que consigo próprio, Jenny von Westphalen, procedente de uma família de classe média-alta e conhecida como “a rainha dos bailes”, teria que mendicar para garantir sua própria subsistência e a dos filhos. Infelizmente, o economista Marx era um péssimo administrador das finanças domésticas. As dívidas de Marx cresceram de tal modo que Engels teve que vender, para socorrer o amigo, a sua parte da firma Ermen e Engels, em Manchester, na qual trabalhou durante vinte anos.

A esposa de Marx nos dá um depoimento de como era a vida de sua família em Londres, numa das cartas que ela remeteu a Weidemeyer, um amigo da família.

 

Vou escrever-lhe apenas um dia daquela vida, exatamente como era, e você verá que poucos imigrantes, talvez tenham passado por algo semelhante. Como amas de leite são muito caras, eu mesma decidi alimentar meu filho apesar das contínuas e terríveis dores no peito e nas costas. Mas o pobre anjinho sugava com tanta inquietação e ansiedade que estava sempre indisposto e sofria horrivelmente noite e dia. Desde que viera ao mundo ele não dormira uma única noite, duas ou três horas no máximo e isto raramente. Recentemente ele tivera convulsões violentas, também, e esteve entre a vida e a morte. Em seu sofrimento ele sugava tão forte que meu peito ficava irritado e a pele rachava, e o sangue muitas vezes entrava em sua boquinha trêmula. Eu estava sentada com ele como naquele dia em que chegou nossa senhoria (credora). Nós lhe tínhamos pago 250 táleres durante o inverno e tínhamos concordado em futuramente dar o dinheiro não a ela mas ao senhorio dela, que tinha uma ordem do administrador contra ela. Ela negou o acordo e exigiu as cinco libras que nós ainda lhe devíamos. Como não tínhamos o dinheiro na ocasião (...) dois oficiais de justiça vieram e seqüestraram todas as minhas posses – lençóis, camas, roupas – tudo,  até o berço do meu pobre filho e os melhores brinquedos de minhas filhas, que ficaram lá chorando amargamente. Eles ameaçaram levar tudo em duas horas. Tive que ficar no chão limpo com meus filhos congelando e meu peito ruim. Nosso amigo Schramm foi depressa à cidade levar-nos ajuda. Ele tomou um táxi mas os cavalos saíram em disparada e ele pulou para fora e foi trazido de volta sangrando para casa, onde eu estava chorando com meus pobres filhos tremendo de frio.

Tive que abandonar a casa no dia seguinte. Estava frio, chovendo e escuro. Meu marido procurou acomodação para nós. Quando ele mencionava os quatro filhos, ninguém nos queria aceitar. Finalmente um amigo nos ajudou, pagamos nosso aluguel e vendi às pressas minhas camas todas para pagar o farmacêutico, o padeiro, o açougueiro e o leiteiro que, alarmados à vista da confiscação, repentinamente me cercaram com suas contas. As camas que tínhamos vendido foram retiradas e colocadas numa carroça. O que estava acontecendo ? Era bem após o pôr do sol. Nós estávamos infringindo a lei inglesa. O senhorio acorreu a nós com dois policiais, afirmando que podia haver algum pertence dele entre as coisas e que nós queríamos sair do país. Em menos de cinco minutos havia duzentas ou trezentas pessoas rodando nossa porta – toda a ralé de Chelsea (WSTPHALEN apud MCLELLAN, 1990. 244-5).

 

Dificuldades financeiras à parte, prosseguiremos dizendo que, devido à censura, Marx sentiu necessidade de reorganizar a Liga na Alemanha, mesmo estando na Inglaterra. Em janeiro de 1850 Marx remeteu uma carta a Röser, o futuro presidente do grupo de Colônia. Marx e Engels, em março enviaram a seus conterrâneos uma mensagem que teria a finalidade de nortear sua atividade política. (A vantagem de Marx residir na Grã-Bretanha é que podia entrar em contato com Engels muito mais facilmente). 2

Poderia se perguntar o seguinte : O que seria este Comitê Central ? Simples : O Comitê Central era o conjunto daquelas pessoas que estavam à frente da Liga como, por exemplo, presidente, vice-presidente, secretário, tesoureiro, etc. Ora, Marx não havia dissolvido a Liga em sua Segunda estadia em Paris ? É verdade. Acontece que, mesmo depois de dissolvida, a Liga, na Inglaterra, continuou funcionando.

Em março de 1850 Marx fundou um jornal chamado Neue Rheinische Zeitung – Politisch-Oekonomische Revue que teria a mesma linha, ou melhor, seria continuidade do Neue Rheinische Zeitung. O editor do jornal era Schuberth que alterava o texto sem consultar Marx, demorava mandar informações sobre a venda do jornal (ele era vendido na Alemanha) e era mau pagador. Por esta série de motivos o jornal não sobreviveu nem um ano. Marx escreveu para o Revue vários artigos sobre as revoluções que sucederam na França no período de 1848-50. Engels, mais tarde, publicou estes artigos sob forma de livro, intitulando a obra As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850.

No final de 1851 Luís Napoleão tomou o poder na França como imperador, consolidando assim a reação que se seguira à revolução de 1848. Marx imediatamente compôs uma série de artigos que foram publicados por seu amigo Weydemeyer, num jornal de vida curta em Nova Iorque, sob o título O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte” (MCLELLAN, 1990, 261).

Brumário era o segundo mês do calendário republicano. No dia 18 do brumário (9 de novembro) de 1799 Napoleão III, filho de Luís Bonaparte (irmão de Napoleão I), seguiu o exemplo do tio em dezembro de 1851 : deu o golpe de Estado e, por coincidência, dissolveu a Assembléia parlamentar. Marx, portanto, fez uma ironia mordaz quando, para se referir ao golpe de Estado de Napoleão III, fala em “o 18 brumário de (Charles-) Luís (Napoleão) Bonaparte”. Eis o início da obra de Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar : a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1848-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio” (MARX, 1974, 335).

Em 1852 Marx escreveu vários artigos para jornal norte-americano New York Herald Tribune.

Em 1853 Marx teve que se livrar de uma série de acusações do governo prussiano (este foi o resultado do intercâmbio que mantinha com sua terra natal). No fim do processo movido contra os comunistas de Colônia vários foram absolvidos, alguns condenados há vários anos de prisão e, outros, exilados. Marx também foi absolvido. A maioria das acusações fundamentavam-se em documentos forjados, em atas e cartas falsificadas. Sobre o episódio Marx decidiu escrever um artigo que, como em outras vezes acabou se transformando num pequeno livro: Revelações sobre o Processo Comunista em Colônia.

Como sabemos, de 1853 a 1856 aconteceu a Guerra da Criméia. De um lado tínhamos Inglaterra e França (católicos) e de outro a Rússia (ortodoxos). Tratava-se de uma disputa pelos lugares sagrados da Turquia. No entanto, a “capa” religiosa da guerra não fazia outra coisa senão esconder  o interesse pelas coisas materiais. Na verdade, a Europa temia o domínio do czar sobre o continente. Tentando fazer uma abordagem da situação de guerra entre Europa e Rússia a partir do materialismo histórico, Marx escreveu a obra Palmerston e a Rússia em 1854.3

Em 1855 Marx escreveu cerca de cem artigos para o Neue Oder-Zeitung. Neste ano Engels escreveu o opúsculo Contribuição à História da Liga dos Comunistas como prefácio à terceira edição da Obra de Marx Revelações sobre o Processo Comunista em Colônia. O melhor qualificativo para a introdução engelsiana, quiçá, seja o termo “contextualizadora”.

Se na Alemanha Marx estava bastante inserido no movimento dos trabalhadores, o mesmo não aconteceu na Inglaterra. Marx estava cada vez mais isolado da política, embora fizesse um esforço contínuo para estar integrado nas organizações operárias. À medida que Marx ficava mais distante do ativismo político, em compensação, ficava mais próximo dos livros.

Marx tivera uma rixa bastante séria com o cartista Harney e não queria se envolver, por esta razão, com o periódico The people’s Paper, haja visto que seu editor era um tal de Jones, também cartista. Contudo, após insistentes pedidos de comparecimento para a festa de aniversário do periódico, Marx não levou em conta divergências ideológicas com os cartistas. No dia 14 de abril de 1856, o dia do aniversário do periódico, Marx pronunciou um discurso que acenava para o advento da libertação do proletariado e, consequentemente, de toda a humanidade.

Desde que chegou em Londres Marx passava horas na Biblioteca do Museu Britânico. Os primeiros resultado de seu trabalho, porém, sairiam apenas nos anos de 1857-8.

Em 1857 a crise econômica que Marx tanto predissera ocorreu de fato e o levou a uma tentativa frenética de concluir de algum modo seus estudos econômicos. A primeira menção disso na correspondência é numa carta a Engels em dezembro de 1857 onde ele diz : ‘Estou trabalhando loucamente noites inteiras numa síntese de meus estudos econômicos de modo que, antes do dilúvio, pelo menos terei o esboço claro’” (MCLELLAN, 1990, 310).

Marx acreditava : 1) que a revolução proletária seria precedida por uma grande crise econômica; 2) que a sua concretização seria eminente.

Assim como os primeiros cristãos acreditavam que a Parusia se concretizaria dentro de pouquíssimo tempo [”Em verdade vos digo, dos que aqui se acham, alguns há que não experimentarão a morte, enquanto não virem chegar o reino de Deus com poder” (Mc 9, 1).],  também  Marx estava contando os últimos dias  da pré-história da humanidade (Cf. MCLELLAN, 1990. 243). A respeito desta passagem bíblica Nietzsche,  em O Anticristo, afirma : “Bem mentido, leão ! ...” (NIETZSCHE, 1985, 87).

Motivado por suas convicções intelectuais que, segundo ele, refletiam o movimento histórico real, “Marx encheu seus cadernos de notas com longas passagens de cerca de oitenta autores e leu muito mais” (MCLELLAN,1990, 302).

O próprio Marx descreveu o Grundrisse como o resultado de quinze anos de pesquisa, ‘o melhor período de minha vida’” (Cf. GOULD apud CONILL, 1988, 102).

A tarefa de Marx consistia, depois deste imenso trabalho, em sistematizar seus estudos, colocar o conteúdo de suas anotações numa forma publicável. Em 1859 Marx concluiu a tarefa e publicou Para uma Crítica da Economia Política. A obra teve pouca repercussão. A vagarosa vendagem dos exemplares foi conseqüência da linguagem extremamente abstrata utilizada por Marx. A parte mais interessante da obra é  o seu prefácio que será analisado mais adiante.

Marx nunca abandonou totalmente sua vida política, mesmo nos seus últimos anos de vida na Inglaterra. Certa vez, num encontro cuja participação dos trabalhadores, do ponto de vista quantitativo, foi excelente, ele fez questão de desmascarar um senhor chamado Vogt. Vogt era dono de um jornal na Suíça. No seu órgão de imprensa Vogt dizia que a Alemanha sairia ganhando se a Áustria fosse perdedora na Guerra Franco-Austríaca (1859). Marx, educadamente, disse a verdade pura e simples durante seu comício: Vogt estava sendo pago por Bonaparte para fazer propaganda política em prol da França.

Para que possamos compreender a finalidade de Herr Vogt (= Senhor Vogt), obra escrita por Karl Marx, é indispensável que estejamos cientes do seguinte acontecimento: Humilhado, Vogt escreveu um livro “que estigmatizava Marx como falsificador e chantagista que vivia das contribuições do proletariado ao passo que respeitava apenas aristocratas de linhagem pura como seu cunhado Ferdinand von Westphalen. O livro vendeu toda a sua primeira impressão de 3.000 exemplares e entrou imediatamente numa Segunda edição” (MCLELLAN, 1990. 334).

Querendo defender seu caráter, Marx não tardou e produzir uma réplica : “Ele produziu depoimentos de esquerda, de direita e de centro, despachou ao menos cinqüenta cartas (somente a enviada a seu advogado em Berlim é de vinte páginas impressas)...” (Ibid., 334). Depois de ter gasto 100 libras para ter acesso a informações, documentos, materiais, etc... Marx conseguiu concluir a obra Herr Vogt (1860).4 5

Desde 1852 Marx já  escrevia para o New York Daily Tribune (as evidências levam a crer que o jornal New York Daily Tribune seja o mesmo que o New York Herald Tribune; houve, apenas, uma pequena alteração no nome do jornal). Porém, A Guerra Civil ( da Secessão, 1861-1865), em dado momento, tornou-se o assunto do dia e não deixava espaço para os artigos de Marx. Em 1862 Marx parou de escrever para o jornal. Ao todo foram publicados pelo Tribune 350 artigos de Marx, 125 de Engels e 12 em colaboração.

Todos os 487 foram publicados como se fossem da autoria exclusiva de Marx. É que quando Marx mudou-se para a Inglaterra não dominava muito bem a língua inglesa e teve que pedir para Engels redigir os artigos, embora fossem assinados por ele (Cf. Ibid., 307).

Desde 1862 a 1863 Marx se dedicou a sua obra Teorias da Mais-Valia: Trata-se de uma história crítica das doutrinas econômicas.

Indubitavelmente, um dos grandes feitos na vida política de Marx foi a criação da Internacional em 1864. A Internacional foi um sinal dado pelas classes trabalhadoras à Europa e, sem o mínimo exagero, ao mundo, de que sua situação não estava nada boa. “...o acontecimento que deu diretamente origem à fundação da internacional foi a insurreição polonesa em 1863” (Ibid., 385). Qual a diferença entre a antiga Liga Comunista e a Internacional ? Enquanto a Liga Comunista era uma das organizações do proletariado, a Internacional era “a” organização do proletariado. Como seu próprio nome deixa claro, a Internacional tinha a pretensão de eliminar sectarismos e nacionalismos no seu do movimento dos trabalhadores. A Internacional era muito mais eficiente que a Liga, pois estava sob influência direta de Marx e Engels, esto é, a organização estava calcada sobre uma sólida teoria, tinha clareza ideológica e contava com uma excelente análise de estrutura e conjuntura.

A internacional realizou vários congressos :

Primeiro: 1866: Congresso de Genebra (Suíça);

Segundo: 1867: Congresso de Lausanne (Suíça);

Terceiro: 1868: Congresso de Bruxelas (Bélgica);

Quarto:1869: Congresso de Basiléia (Suíça);

Quinto: 1870: Congresso de Mainz (Alemanha);

Sexto: 1871: Congresso de Londres (Inglaterra);

Sétimo: 1872: Congresso de Haia (Holanda).

Neste último Congresso Marx dissolveu a Internacional. Por duas razões: 1) o operariado europeu havia, em grande medida, perde a esperança nos comunistas após o fracasso da Comuna de Paris (1871) e precisava de tempo para se recuperar do choque; 2) Havia uma rixa muito forte entre marxistas e bakuninistas. (Seguidores de Mikhail Aleksandrovitch Bakunin, 1814-1876).

A II Internacional foi fundada em Paris, em 1889, pelos social-democratas e naufragou no início da Primeira Guerra mundial.

A III Internacional (Komintern) foi fundada por Lenin em 1919, em Moscou. Seu objetivo era a revolução comunista mundial sob liderança da U.R.S.S. Em 1943 Stalin dissolveu a III Internacional para manter de pé sua aliança com os países ocidentais. Capitalistas ocidentais e comunistas orientais uniram-se em nome da mesma causa: liquidar o nazi-fascismo. Liquidado o inimigo comum a aliança foi desfeita e iniciou-se a Guerra Fria. (Informações mais detalhadas sobre a história das Internacionais, vide, na bibliografia, HOBSBAWN).

 

O termo “marxista” designa tudo aquilo que se refere a Marx ou a algum pretenso continuador, atualizador, aprimorador, desdobrador de seu pensamento. Logo, as teorias de Friedrich Engels (1820-1895), Vladimir Ilitch Ulianov (psed., Lenin, 1870-1924), Antonio Gramsci (1891-1895), Ho Chi Minh (1890-1969), Mao Tse-Tung (1893-1976), Josep Broz (pseud., Tito, 1892-1980),Ernesto Guevara de la Serna (1928-1967), Fidel Castro (1926-    ) e do próprio Marx podem ser denominadas “marxistas”. Certas posições filosóficas, bem como certas concepções sobre ciência, religião, arte, política, sobre a cultura em geral, podem ser consideradas “marxistas”. Existe, até mesmo, uma vasta produção “marxista no âmbito das ciências econômicas. E, se não bastasse, toda uma literatura “marxista”. O termo “marxiano” (a) foi criado com o intuito de separar o pensamento de Marx do pensamento sobre Marx. O termo “marxista” engloba destarte, tudo aquilo qualificável de “marxiano”, sendo que a recíproca é falsa. O termo “marxiano” refere-se a um recorte daquela totalidade chamada “marxista”, quer dizer, alude, especificamente, aos escritos de Karl Marx, o pai da visão de mundo vermelha ou proletária.

Marx, em 1864, escreveu o Manifesto de Lançamento da Primeira Internacional e os Estatutos da Associação Internacional dos trabalhadores. Dedicou-se, outrossim, à composição do livro terceiro d’ O Capital.

Em 1865 publicou um opúsculo acessível justamente àquelas pessoas que precisavam tomar conhecimento do marxismo, os trabalhadores. Em Salário, Preço e Lucro Marx condensou os primeiros nove capítulos d’ O Capital que descrevem a gênese do capitalismo.6

Em 1866 redigiu o Programa para o I Congresso da Internacional que aconteceria em setembro do mesmo ano, em Genebra, como assinalamos acima.

Em 1867 Marx publicou o livro primeiro de sua obra máxima, O Capital. Marx fazia piada dizendo que a venda da obra não pagaria nem os charutos que ele fumou, enquanto a escrevia.

Mesmo  trabalhando como um escravo para a Internacional e estudando economia num ritmo fora do comum, Marx encontrava tempo para abordar questões prático-sociais e historiar criticamente grandes eventos políticos. Tanto isto é veraz que, em 1871, apareceu A Guerra Civil na França. 7

A Guerra Civil na França (...) foi a mais brilhante das polêmicas de Marx e teve um sucesso imediato... Teve três edições em dois meses, vendeu 8.000 cópias na segunda edição e foi traduzido (sic)  para a maioria das línguas Européias” (Ibid., 425).

A Guerra Civil na França é somente uma interpretação da Comuna: havia interpretações proudhonistas, blanquistas e anarquistas que eram tão justificadas como a de Marx na medida em que suas visões eram igualmente reveladoras da Comuna” (Ibid., 425).8

Para Marx, a década de 70 foi um período de recolhimento. Ainda recebia em sua casa os camaradas que lutavam pela causa do socialismo, porém, tinha muito mais contato com seus “amigos científicos”, como ele os chamava. “Seu temperamento também estava muito mais plácido e seu apetite por controvérsia pública consideravelmente arrefecido” (MCLELLAN, 1990, 437).

Em meados da década de 1870 Marx passou algum tempo ajudando Engels a escrever Anti-Düring que, por causa de  sua sistematização e clareza, tornar-se-ia o mais conhecido manual em círculos marxistas com uma circulação muito maior do que O Capital” (Ibid., 448).

No início da década de 70 havia dois partidos operários alemães que tinham alcançado um êxito nas eleições, sem precedentes. Eram os partidos que seguiam o socialismo de Eisenach e o de Lassale. Como ambos os partidos obtiveram praticamente o mesmo número de votos, seus dirigentes resolveram fundi-los num único, mais forte. “Um programa unido seria adotado em Gotha, uma pequena cidade da Alemanha central, em maio de 1875” (Ibid., 457).

Marx fez severas críticas ao programa, mostrando sua inconsistência teórica. Crítica ao Programa de Gotha (1875) é “um dos mais importantes escritos teóricos de Marx” (Ibid., 475). Geralmente, Marx é reprovado por ter desenvolvido uma teoria crítica do capitalismo sem se preocupar, como ele mesmo diz, em “dar receitas para os caldeirões do futuro”. Esta crítica é válida quando dirigida a Max Weber,  inapropriada, todavia, quando referida a Karl Marx. Em Crítica ao programa de Gotha, Marx delineia os traços gerais de uma sociedade socialista, de modo que, juntamente com O Manifesto Comunista, o opúsculo constitui um arrojado projeto para a construção de um novo modelo de sociedade.

Falemos, agora, das últimas influências intelectuais recebidas por Marx em sua senectude: Marx sempre tivera uma grande admiração pela obra de Darwin. Ele lera A Origem das Espécies em 1860, um ano após sua publicação, e escrevera imediatamente a Engels que ele continha “a base de História natural para nossa visão” (MCLELLAN, 1990. 449).

Um fragmento da carta: “Li todos os livros de Darwin, sobretudo aqueles relativos à seleção natural. Apesar de sua monotonia inglesa, é o livro que encerra o fundamento biológico de minha teoria sobre a luta de classes na história” (MARX apud CLARET, 1985, 60).

Lenin costumava definir o marxismo como síntese de tudo o que a humanidade havia produzido de melhor até o século XVIII : A Economia Política Inglesa, o socialismo utópico francês e a filosofia clássica alemã. Certamente, ele esqueceu de acrescentar a maior descoberta das ciências naturais, a evolução. Somente a dialética hegeliana é insuficiente para explicar o materialismo dialético e o materialismo histórico, é preciso considerar o evolucionismo darwiniano.

A propósito, estávamos falando das últimas influências sobre o pensamento marxiano. Pois bem, queríamos chegar justamente a este ponto: partindo do evolucionismo darwiniano Marx, gradativamente, vai se transformando num cientificista e, no fim de sua vida, num paradigmático positivista. Ele acompanhava de perto as descobertas realizadas pelas ciências naturais, sobretudo pela Química e pela Física. Nos seus últimos anos estudava assiduamente matemática e aprendeu russo para ter acesso aos textos originais. A Rússia era um país agrícola e seus economistas eram especialistas, por força das circunstâncias, em economia agrária. Todo este esforço, para poder compor a terceira parte do livro terceiro d’ O Capital que trata da agricultura.

Justiça seja feita: Além de Marx dominar o russo, como já foi apontado, falava com maestria o alemão (é óbvio), o francês, o inglês e, de quebra, ainda sabia italiano (era apaixonado por Dante Alighieri), latim e grego (todos os anos lia Ésquilo no original !). Diga-se de passagem, Engels não ficava para trás: “...diziam que ele gaguejava em vinte idiomas. ...Engels tinha apenas alguma dificuldade com o árabe, com suas quatro mil raízes verbais...” (HEILBRONER, 1996, 135).

No inverno de 1880-81 Marx  redigiu com grande cuidado uma centena de páginas de excertos do Sociedade Antiga de Morgan, excertos mais tarde usados por Engels 9 em seu Origem da Família” (MCLELLAN,1990, 450).

Em 1882 Marx foi para Argel cidade da Argélia, país do norte da África, sob recomendação médica. 10

Aos 17 de março de1883 Marx foi enterrado no cemitério de Highgate. Ainda hoje quem visitar a sepultura de Marx poderá ler, quem sabe, até ouvir, a conclamação “Proletários de todos os países, uni-vos !”, que está gravada na lápide.

“Resumindo seu desdém pela sociedade burguesa e seu internacionalismo, Marx morreu tanto sem testamento como sem pátria” (MCLELLAN, 1990, 478).

 

1.2  BIBLIOGRAFIA

 

Fizemos o máximo esforço para reunir o maior número possível dos títulos das obras de Marx. Eis o que encontramos:

1841: Diferença entre as Filosofias da Natureza em Demócrito e Epicuro (tese doutoral);

1842: Bemerkungen über die nueste preubische Zensurinstruktion (1° artigo de Marx);

1843: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel;

1844: Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel;

A Questão Judaica;

Manuscritos Econômico-Filosóficos;

A Sagrada Família (Com Engels);

1845: Teses sobre Feuerbach;

1846: A Ideologia Alemã;

1847: Miséria da Filosofia;

1848: Discurso sobre o Livre-Câmbio;

Manifesto Comunista (Com Engels ?);

Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha;

A Burguesia e a Contra-Revolução;

1849: Trabalho Assalariado e Capital;

1850: Mensagem do Comitê Central para a Liga dos Comunistas (Com Engels);

As Lutas de Classe na França de 1848-1850;

1852: O 18 Brumário de Luís Bonaparte;

Os Grandes Homens do Exílio;

1853: Punição Capital;

Revolução na China e na Europa;

O Domínio Britânico na Índia

Guerra na Birmânia;

Resultados Futuros do Domínio Britânico na Índia;

O processo Comunista de Colônia;

Palmerston;

O Cavaleiro da Consciência Nobre;

1854: Palmeston e a Rússia;

A Decadência da Autoridade Religiosa;

1856: Revolução na Espanha;

Revelações sobre a História Diplomática do Século XVIII;

Discurso Pronunciado na Festa de Aniversário do “People’s Paper”;

1857-8: Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie (Rohentwurf);

1859: Contribuição à Crítica da Economia Política

População, Crime e Pauperismo;

1860: Herr Vogt;

1862-3: Teorias da Mais-Valia (publicados em 1915);

1863-77: O Capital (Livro II: publicado por Engels em 1885);

1864: Manifesto de Lançamento da Primeira Internacional;

Estatutos da Associação Internacional dos trabalhadores;

O Capital (Livro III: publicado por Engels em 1894);

1865: Salário, preço e Lucro;

Sobre Proudhon;

1866: Programa para o I Congresso  da Internacional;

1867: O Capital (Livro I);

1870: Duas Declarações sobre a Guerra Franco-Prussiana;

1871: A Guerra Civil na França;

1872: Supostas Divisões  na Internacional;

Discurso no Congresso de Haia;

Discurso em Amsterdã;

1874: Estatismo e Anarquia de Bakunin;

1875: Crítica ao Programa de Gotha;

1880: Questionário;

Introdução ao Programa dos Trabalhadores Franceses;

Notas sobre Adolph Wagner;

1881: Notas sobre a Sociedade Primitiva de Morgan.

O “corpus aristotelicum” de Marx açambarca um número de obras maior do que as 57 que foram supra citadas. Os numerosos artigos e cartas que Marx redigiu compõem monumentais coletâneas. As obras engelsianas são uma espécie de complemento da teoria marxiana. Friedrich Engels, apesar de ter trabalhado durante 20 anos na Ermen e Engels oito horas por dia, também se deu ao luxo de produzir dezenas de obras. A editora alemã Dietz Verlag tentou editar todas as obras de Marx e Engels: “chegou a 41 volumes, mas permaneceu incompleta “ (BOTTOMORE, 1997, 410).

 

1.3  AS CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS

 

Em filosofia temos, basicamente, quatro concepções referentes à liberdade humana. Alguns pensadores defendem a liberdade  do ser humano. Outros afirmam que o homem é determinado, outros que ele é livre, não obstante, condicionado e, por fim, há os céticos.

Veremos os representantes precípuos de cada uma das correntes mencionadas acima:

 

1.3.1 Os Defensores da Liberdade Humana: Aristóteles  e Sartre

 

a)Aristóteles

Na Ética a Nicômaco Aristóteles de Estagira afirma a liberdade e, portanto, a responsabilidade do homem por suas atitudes: “...é irracional supor que um homem que age injustamente não deseja ser injusto, ou um homem que age concupiscentemente não deseje ser concupiscente” (ARISTÓTELES, 1996, 160).

Curioso é que o fundador da Escola Peripatética defendia a liberdade do homem em suas obras de ética mas, quando o assunto era política, o discurso tomava outro rumo. Eis o argumento que Aristóteles apresenta n’ A Política para justificar e suster o modo de produção escravagista:

...todos os que não têm nada melhor para nos oferecer do que o uso dos seus corpos e de seus membros são condenados pela natureza à escravidão. Para eles, é melhor servirem do que serem entregues a si mesmos. Numa palavra, é naturalmente escravo aquele que tem tão pouca alma e poucos meios que resolve depender de outrem. Tais são os que só têm instinto, vale dizer, que percebem muito bem a razão nos outros, mas que não fazem por si mesmos uso dela. Toda a diferença entre eles e os animais é que estes não participam de modo algum da razão, nem mesmo têm o sentimento dela e só obedecem a suas sensações. Ademais, o uso dos escravos e dos animais é mais ou menos o mesmo e tiram-se deles os mesmos serviços para as necessidades da vida.

A natureza, por assim dizer, imprimiu a liberdade e a servidão até nos hábitos corporais. Vemos corpos robustos talhados especialmente para carregar fardos e outro usos igualmente disciplinados, mas também mais esguios e incapazes de tais trabalhos, são bons apenas para a vida política, isto é, para os exercícios da paz e da guerra (ARISTÓTELES, 1998, 13-4).

 

Ideologias políticas à parte, Aristóteles posiciona-se favoravelmente à liberdade humana. Noutro escrito, lemos: “De uma maneira absoluta e simples temos que dizer que sempre agimos livre e voluntariamente quando estamos alheios a toda coação”(ARISTÓTELES, 1967, 1324).11

 

b) Jean-Paul Sartre

 

A liberdade humana não foi defendida apenas na Antigüidade. O “filósofo da liberdade”, se podemos usar a expressão, viveu no século passado. Foi o escritor, teatrólogo e jornalista francês Jean-Paul Sartre (1905-80). Sartre identificou a essência humana com a liberdade. Para caracterizarmos seu pensamento, citaremos um conhecido fragmento de O Existencialismo é um Humanismo (1946):

...o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer” (SARTRE, 1973, 15).

O homem está condenado a ser livre. Por que condenado ? Porque não criou a si próprio. Por quem foi criado ? Não foi por Deus. Se o homem fosse criado por Deus, se Deus existisse, então teria uma essência fixa. Não longe, constatamos através da experiência cotidiana que somos livres, que somos aquilo que projetamos ser. A experiência do dia-a-dia, portanto, refuta a idéia de uma essência fixa e, com ela, a idéia de Deus. Se Deus não existe, se a Providência Divina não existe, então somos nós quem conduzimos a história, somos nós os responsáveis por tudo. Se estamos sós, não é possível arranjarmos bodes expiatórios. Resumindo: não podemos arranjar desculpas.

 

1.3.2 Os Deterministas

 

Na história do pensamento ocidental surgiram várias correntes filosóficas deterministas. Entretanto, o determinismo tomou força a partir da filosofia cartesiana e do otimismo cientificista característico da modernidade. Querendo resolver o problema do psicodualismo da filosofia de René Descartes (1596-1650), Espinoza e Leibniz construíram sistemas deterministas. Os idealistas alemães e inclusive o maior deles, Hegel, herdaram o pensamento destes dois autores. Receberam deles as tendências teologizantes, panlogicistas, monistas e imanentistas. O holismo, a inexorabilidade do vir-a-ser e a preponderância da totalidade sobre cada uma das partes são outras características dos sistemas idealistas fortemente marcados pelas elucubrações teóricas dos dois pósteros de Descartes acima elencados.

Vejamos brevemente o pensamento de cada um dos referidos autores:

 

a)      Baruch de Espinoza

 

Baruch de Espinoza (1632-77) critica Descartes em sua obra-prima, A Ética 91677):

Descartes inclina-se bastante para esta opinião (de que podemos alterar o curso das coisas, isto é, de que o homem é livre). É que ele admite que a alma, ou seja, o espírito, está unida principalmente a uma parte do cérebro, esto é, “a glândula chamada pineal, por meio da qual a alma sente todos os movimentos que se produzem no corpo, assim como os objetos externos. Admite, ainda que a alma pode movê-la em vários sentidos só pelo fato de o querer (ESPINOZA, 1983, 277).

Por certo, eu não posso admirar-me suficientemente que um filósofo, que tinha determinado firmemente nada deduzir senão aquilo que percebesse clara e distintamente, e que tantas vezes censurava os escolásticos por eles terem querido explicar as coisas obscuras por qualidades ocultas, não posso admirar-me suficientemente que ele admita a hipótese mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que entende ele – por favor – pela união da alma com o corpo ? Que conceito claro e distinto tem ele – pergunto – de um pensamento estreitíssimamente unido a uma determinada parcelazinha de quantidade ? Quereria muito que ele tivesse explicado pela sua causa próxima esta união (Ibid., 278).

 

Baruch de Espinoza, no fundo, está criticando a idéia de autonomia da alma. Ele pretende mostrar que não adianta relutarmos contra a dinâmica do real porque nossa vontade individual é infinitamente limitada e, por conseguinte, impotente, quando posta em confronto com a engrenagem do cosmos. Espinoza vai mais longe: Afirma que fazemos parte desta engrenagem e que a idéia de vontade própria é uma ilusão. O que existe é a substância. Tudo o que existe é a mesma substância sob a forma de um determinado atributo. A natura naturans se exterioriza em natura naturata. O homem é parte da Segunda, porém, natura naturans e natura naturata são uma e mesma coisa. É a filosofia do comodismo, do conformismo. Trata-se da ética estóica fundada sobre uma ontologia cuja pretensão é de se apresentar como aperfeiçoamento do modelo cartesiano.

 

b)      Gottfried Wilhelm Leibniz

 

Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) também critica Descartes na Monadologia (1714). Analisando friamente o pensamento de ambos os autores, devemos admitir que o sistema de Leibniz é mais coeso do que o cartesiano. Vejamos a crítica de Leibniz:

Descartes reconheceu a impossibilidade de as almas transmitirem força aos corpos, porque há sempre a mesma quantidade de força na matéria. Acreditou, no entanto, na possibilidade de a alma mudar a direção dos corpos. A razão disto foi desconhecer-se no seu tempo a lei da natureza que garante também a conservação da mesma direção total na matéria. Se a conhecesse, cairia no meu sistema da Harmonia preestabelecida” (LEIBNIZ, 1974, 71).

Uma vez que Leibniz descarta a possibilidade de o espírito influir na matéria, não podemos dar outra explicação ao paralelismo dos fenômenos do espírito e do corpo do que supormos uma harmonia preestabelecida: Deus programou o mundo e o espírito como dois relógios perfeitissimamente sincronizados e, por isso, somos levados a crer que o espírito pode intervir na matéria e vice-versa. Trata-se de um determinismo absoluto.

 

c) Georg Wilhelm Friedrich Hegel

 

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) ministrou aulas sobre Estética na Universidade de Berlim de 1820 a 1829. O curso foi publicado por seus alunos entre 1837 a 1842 sob o título de Lições sobre Estética. Numa destas aulas Hegel afirma:

 

...o individual imediato é, antes de tudo, uma unidade encerrada em si mesma; como tal, delimita-se negativamente perante tudo que não é graças a este isolamento imediato que o condena a uma existência condicionada, é impelido, pela força da totalidade cuja realidade não reside nele, a contrair relações com o que ele não é até cair na dependência de coisas que lhe são alheios. Nesta imediateidade, a idéia realizou separadamente cada um dos seus aspectos, e o nexo das existências separadas, quer naturais quer espirituais, já só é firmado pela força  interna do conceito. Este nexo aparece, àquelas existências, como vindo de fora, como uma necessidade exterior imposta por múltiplos dependências recíprocas e pelo impulso que cada uma delas recebe de determinações necessárias entre indivíduos e forças na aparência independente no qual cada elemento ou é utilizado como um meio ao serviço de fins que lhe são estranhos ou carece ele próprio do que lhe é exterior para o utilizar como meio. E como de um modo geral, a idéia a que só se realiza no domínio da exterioridade, fica-se com a impressão de se assistir “a soltura da arbitrariedade e do acaso, da miséria e da pobreza espirituais”. O individual imediato vive no reino da não-liberdade (HEGEL, 1996, 162).

 

Para Hegel, a realidade é uma trama complexíssima de relações e tudo está em relação dialética com tudo. Não é possível compreender a totalidade sem se compreender primeiro o singular e, o contrário, é tão mais verdadeiro. O individual imediato não possui a mínima autonomia, dadas as incontáveis relações de dependência que mantém com fatores que lhe são externos. Para Hegel livre é o Espírito Absoluto que utiliza-se de meios, os individuais imediatos, para atingir seus fins.

Algumas passagens da Fenomenologia do Espírito corroboram o que acabamos de escrever: “...(A) substância indivisa da liberdade absoluta ascende ao trono do mundo sem que nenhum poder, qualquer que ele seja, possa opor-lhe resistência” (HEGEL, 1991, 344).12

Na mesma seção: “...nenhuma obra nem ato positivos podem produzir a liberdade universal; à dita liberdade só lhe resta o operar negativo; é somente a fúria do desaparecer” (Ibid., 346).13

Em poucas palavras: livre é apenas o Conceito Absoluto (também chamado Liberdade Absoluta) que coincide com o real. Todo recorte que fazemos do real não passa de uma extensão, de um prolongamento do Eu Absoluto, mantendo com ele uma relação semelhante àquela que existe entre uma folícula e o milenar tronco da Sequóia. A dependência do singular  em relação à totalidade é absoluta. Toda analogia é falha: A Sequóia depende da terra (minerais), da água e de substâncias gasosas para sobreviver ! O Espírito absoluto não depende de nada, tudo depende dele; E ainda: o Espírito Absoluto é inteligência, vontade, consciência e liberdade. É matéria também, mas não só. A matéria é exteriorização, a antítese do Espírito Absoluto.

Apenas o espírito absoluto tem vontade. Nenhum singular pode, por conseguinte, opor-lhe resistência que difira da passividade. O singular está privado de todo ato positivo.

Se não entendermos bem a função cumprida pela categoria “liberdade” no sistema hegeliano, não poderemos entender a proposta marxista de libertação. Daqui, a necessidade de explorarmos um pouco mais a “teoria da liberdade em Hegel” subjacente à sua monumental construção intelectiva.

Hegel explica a onipotência e onipresidência (o Conceito Absoluto preside a todas as relações, movimentos, contradições, tensões, das menores e mais simples até às maiores e mais complexas) do seguinte modo:

 

...(A) substância indivisa da liberdade absoluta ascende ao trono do mundo sem que nenhum poder, qualquer que seja, possa opor-lhe resistência. Com efeito, sendo na verdade a consciência o único elemento em que têm sua substância as essências ou as potências espirituais, se tem derrubado todo seu sistema organizado e mantido mediante a divisão em massas, da mesma forma como a consciência individual tem captado o objeto de tal modo que não tem outra essência que a mesma auto-consciência ou que é absolutamente o conceito. O que fazia do conceito um objeto que era sua diferenciação em massas subsistentes particulares; mas, ao converter-se o objeto em conceito, já não subsiste nada nele; a negatividade tem penetrado todos seus momentos. Entra na existência de modo que cada consciência singular se eleva da esfera que lhe havia sido assinalada e já não encontra nesta massa particularizada sua essência e sua obra, senão capta todas as massas como essências desta vontade e só pode realizar-se em um trabalho que é trabalho total. Nesta liberdade absoluta se tem cancelado, portanto, todos os estamentos sociais (grifo nosso) que são as essências espirituais nas quais se estrutura o todo; a consciência singular que pertencia a um desses membros e queria e operava nele tem superado suas fronteiras; seu fim é o fim universal, sua linguagem a lei universal e sua obra a obra universal (HEGEL, 1991, 344-5).14

 

A princípio Hegel afirma que o fim último do Espírito Absoluto é a liberdade e que esta liberdade vai se ampliando à medida em que se processa o desdobramento desse mesmo Espírito.

Conforme última parte de Princípios da Filosofia do Direito de Hegel: gradativamente, o Espírito Absoluto vai atingindo maior liberdade conforme perfaz a trajetória 1) Império do Oriente: apenas o monarca é livre; 2) Império Grego: o Estado já não sufoca totalmente a vida privada. Há uma casta de escravos responsável pela satisfação das necessidades sociais de primeiro grau; 3) Império Romano : a liberdade é estendida “a aristocracia; 4) Império Germânico: é a máxima manifestação do Espírito Absoluto [no tempo de Hegel]. Concretiza-se a democracia, o que equivale a liberdade para todos). A seguir, Hegel deixa claro que nenhum poder é capaz de conter este desarrolho. Por extensão, nem mesmo a burguesia ! Hegel explica que nenhum estado de coisas ou organização de idéias são estáveis, mesmo tendo sido produzidos pela consciência, haja visto que o engendramento do Eu Absoluto implica a derrubada de composições pretéritas. Numa linguagem mais acessível: nenhuma formação social é eterna, todas as sociedades são históricas, sujeitas à transitoriedade do devir dialético. O Eu Absoluto se exterioriza e retorna a si mesmo sob a forma de sociedades cada vez mais perfeitas. Nestas sociedades particulares o grau de consciência e liberdade é limitado, mas elas são substituídas por outras mais sofisticadas. As sociedades tendem para “a” sociedade universal em que todos os homens serão livres. O Espírito Absoluto sempre realiza o movimento de auto-superação que, basicamente, consiste na identificação de um particular e na posterior não-identificação com este mesmo. O Conceito Absoluto põe, contrapõe e, novamente, contradiz a contraposição. Torna-se difícil distinguir a mediação do fim. Toda sociedade é, concomitantemente, um fim em si mesma e um trampolim para uma formação social mais elevada. O Espírito Absoluto tende para o universal: Por isso, nenhuma sociedade particular, nenhum estamento social particular representará pináculo, o zênite do processo de auto-realização da vontade absoluta. A expressão suprema do Eu Absoluta será uma sociedade sem estamentos sociais, universal.

Marx identificou esta sociedade universal com a sociedade comunista. Todavia, Marx substituiu o Eu Absoluto de Hegel pelo desenvolvimento das forças produtivas. Para Marx, não é a cultura que se materializa em uma determinada forma de sociedade, economia, Estado, etc. Pelo contrário, a cultura espelha todas estas coisas. O pensamento deixa de ser o fio condutor da história para transformar-se em reflexo das condições concretas de vida. A economia substitui a cultura. N’ O Capital Marx escreveu que a dialética estava de cabeça para baixo e que se fazia mister colocá-la de pé. Deveras, se em Hegel temos um idealismo dialético, em Marx temos um materialismo dialético. A pergunta que fazemos é a seguinte: Marx, sendo um discípulo de Hegel, mesmo que bastante heterodoxo, também nega a liberdade para o individual imediato ?

Via de regra, os filósofos que afirmam a liberdade humana acentuam a dimensão da individualidade. Ora, este não é o caso de Hegel e Marx, ambos, por antonomásia, são os filósofos da totalidade.

Adiante mostraremos que Marx identifica o motor da história com a mudança econômica, com a revolução social-política, com a iniciativa do próprio homem. Marx jogará por terra a idéia de que uma entidade impessoal possa construir a história. Se o desenvolvimento das forças produtivas apareceu-nos (este verbo é empregado cautelosa e conscientemente. O aparecer não coincide com o ser. A manifestação de algo difere de sua realidade primária, voltada sobre si mesma.), até nossos dias, como o motor da história, isto aconteceu porque embora tivessem sido os próprios homens os responsáveis pelo aprimoramento dos meios de produção, eles desenvolveram as forças produtivas e alteraram, dessa maneira, o meio social em que viviam sem terem consciência disso. Toda revolução social, para Marx, encontra sua raiz na mudança estrutural da sociedade que, por sua vez, é resultado de uma alteração no modo como os indivíduos ganham sua vida. Este modo de ganhar a vida é conseqüência de um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas. Não adianta  querer dilacerar ou distorcer o pensamento de Marx dizendo que para ele o homem não é livre por estar submetido ao desenvolvimento das condições materiais. Quem conhece um pouco do pensamento de Marx sabe que, para ele, é o próprio homem quem cria as suas condições materiais. É claro que um nigeriano não criou as condições materiais da aldeia em que nasceu. Acontece que Marx não refere-se ao homem-indivíduo, e sim, ao homem-coletividade. O homem é extremamente condicionado pela atividade econômica e, sobretudo, pela mudança econômica. Acontece, porém, que  é o próprio homem quem trabalha, produz, consome e realiza trocas. Se a economia passa por alterações profundas que escapam ao controle do homem é porque o acúmulo de mudanças quantitativas, em certo momento, transforma-se em uma mudança qualitativa. O resultado de meu estudo monográfico, por exemplo, nem de longe se assemelha àquele que eu tinha em mente. Refiz várias vezes muitas das partes constituintes deste trabalho. Somando todas estas pequenas mudanças tenho, no final do processo, um trabalho estruturalmente distinto do inicial. Se pequenos projetos pessoais não são absolutamente controláveis, muito menos serão as transformações sociais. Marx pretende mostrar justamente isto: a deficiência das estruturas sociais, sua irracionalidade e incontrolabilidade. E o que Marx propõe ? O seguinte: uma sociedade planejada, racionalizada, planejada, controlável e, acima de tudo, justa (a justiça inclui igualdade entre todos e liberdade para todos).

Enquanto que em Hegel é o próprio Espírito Absoluto que evolui em consciência e liberdade engendrando sociedades cada vez mais elevadas, para Marx são os homens que cumprem esta função. O processo de racionalização da vida humana não é produto do esforço de um Espírito supremo que tudo açambarca. É verdade, sim, que os homens são colocados diante de situações não escolhidas por eles. É verdade que as forças produtivas são capazes de inibir ou aumentar a capacidade de intervenção do homem sobre o meio (natural e social) em que vive. Ainda assim, devemos levar em consideração que todo homem, nascido numa sociedade primitiva ou tecnologicamente avançada, herda condições materiais legadas por outros homens e não pelos deuses. O Homem é, pois, condicionado pelo próprio homem. Para Hegel, o Espírito Absoluto é condicionado somente por ele mesmo. Por conseguinte, o Espírito Absoluto goza de uma liberdade absoluta. Se um homem fosse condicionado apenas por ele mesmo, seria totalmente livre. Contudo, o homem é condicionado por outros homens e pela natureza. O Homem Único, que é o gênero humano, defronta-se, efetivamente, com apenas um obstáculo.

Um quadro sinótico simplifica as idéias desenvolvidas acima:

 

 

 

 

HOMEM

NATUREZA

 

Para Hegel

Heterônomo

Exteriorização do Espírito Absoluto

Mediação

Paciente

Depende do pensamento

Determinado

 

Para Marx

Autônomo

O homem saiu da natureza

Fim

Agente

O pensamento não pode prescindir da base material

Condicionado, porém, livre

 

A liberdade universal (...) se dissociaria em seus membros e se converteria precisamente em substância que é, estaria assim livre da individualidade singular e distribuiria às multidão dos indivíduos entre seus diversos membros. Mas o operar e o ser da personalidade se encontraria, deste modo, limitado a um ramo do todo, a uma espécie de operar e de ser; posta no elemento do ser, adquiriria a significação de algo determinado...” (HEGEL, 1991, 346).15

A diferença entre a filosofia de Hegel e a de Marx, neste aspecto, é gritante. Para Hegel, o Espírito Absoluto, buscando liberdade e universalidade, distribui a liberdade a todos os indivíduos da multidão. Para Marx, é a multidão quem conquista sua própria liberdade. Para fundamentar o que estamos dizendo, faremos a citação de um estrato d’ A Sagrada Família:A história não faz nada, ela ‘não possui enorme riqueza’, ela ‘não trava combates’! Ao contrário, é o homem, o homem real e vivo que faz tudo isso, possui tudo isso e conduz todos esses combates; não é, estejais certos disso, a ‘história’ que se serve do homem como meio para realizar – como se ela fosse uma pessoa à parte – seus próprios fins; ela é apenas a atividade do homem que busca seus próprios fins” (MARX; ENGELS,1987, 93).

Não existe uma pessoa à parte, um Espírito Absoluto, buscando seus próprios fins e que se utiliza dos homens. Não é a história a construtora, mas a construída. Por quem? Pelos homens !

Para Hegel, já vimos, “o operar e o ser da personalidade se encontra limitado a um ramo do todo, é algo determinado” (Cf. HEGEL, 1991,346). Sumamente importante é percebermos que, na perspectiva hegeliana, o homem é determinado a uma liberdade proporcional à desenvolução de Conceito Absoluto. Em Hegel, a libertação não é um esforço contínuo do ser humano ao longo de sua existência. A liberdade humana está encerrada no interior de uma realidade processual regulada por leis inexoráveis, absolutamente lógicas, irrevogáveis. As sociedades humanas e os indivíduos em particular são os indicadores do grau de liberdade, auto-conhecimento e autenticidade atingido pelo Eu Absoluto em dada etapa de seu desenvolvimento. A rigor, o homem, enquanto tal, não é livre. Ele não passa de um conjunto de relações, de uma simples e necessária mediação no infindável processo dialético. O homem pode ser considerado livre enquanto Espírito Absoluto, ou melhor, enquanto parte dele. O ser humano, para Hegel, está subsumido na mais radical heteronomia, incapaz de qualquer ato volitivo.

Sem perder de vista o fio condutor do trabalho aproveitaremos o espaço para algumas digressões. Antes de passarmos à exposição das teorias dos pensadores que procuram conciliar liberdade humana e determinismo e, antes de tomarmos contato com os argumentos dos céticos, nos deteremos sobre alguns pontos da concepção filosófico-política hegeliana. Tais pontos adquirem relevância à medida que Marx sobre eles se apoia para construir sua própria visão de mundo. A filosofia de Hegel foi extremamente útil para o filósofo de Trier não só por causa de sua contribuição primeira, a dialética, mas porque o induziu à elucidação de uma série de conceitos. Muitas categorias fundamentais da filosofia de Marx originaram-se de sua cabal oposição às teses de Hegel. É isto o que tentaremos mostrar a partir de agora.

Vejamos como Hegel encara o Estado:

 

A única obra e o único ato da liberdade universal é, portanto, a morte, e ademais uma morte que não tem nenhum âmbito interno nem complemento, pois o que se nega é o ponto incompleto do si mesmo absolutamente libre; e, portanto, a morte mais fria e mais insossa, sem outra significação que a de cortar uma cabeça de couve ou beber um gole de água. Na insulsez desta palavra consiste a sabedoria do governo, o entendimento da vontade universal, sua realização. O governo não é ele mesmo outra coisa senão o ponto que se fixa ou a individualidade da vontade universal. ...frente ao governo como a vontade universal real está somente a pura vontade irreal, a intenção (HEGEL, 1991, 347).16

 

Para Hegel, o Espírito Absoluto real, em contraposição ao ideal, muito mais rico que a sua exteriorização, é o Estado. O Estado representa a concretização da vontade universal. Nenhuma vontade particular consegue se opor ao Estado pois ele é síntese de inúmeras vontades. Por conseguinte, nenhum estamento social pode provocar a ruína do Estado. A parte, esta sim, é negada pelo todo e não o inverso. A palavra “morte” segundo Hegel, encerra a sabedoria do Estado: ninguém pode com ele, ele está acima de tudo e de todos

Por isso que o hegelianismo difundiu-se tão rapidamente, tornando-se o centro das discussões nos meios intelectualizados: ele contou com o apoio maciço do governo prussiano.

Como todo movimento necessário mas particular é negado pelo Majestoso Conceito Absoluto (a existência da folha é negada pelo outono), todo cidadão é, de certa forma, negado pelo Estado. Infere-se do pensamento de Hegel que o estado é onipresente e onipotente, ou seja, ele é o próprio “deus na Terra”. 17

Evidentemente, este deus nada tem a ver com o Deus divino, santo e transcendente da Escolástica. Trata-se de um deus secular, imanente e, quando necessário, cruel.

Para Hegel, destarte, o Estado sufoca a liberdade individual e nada se pode fazer para alterar esta realidade, pois ele não é uma instituição qualquer, mas encarna a vontade universal.

Em resumo: se para Hegel o Estado é a manifestação concreta, real, da liberdade absoluta do Conceito Absoluto, para Marx ele é um empecilho à libertação da sociedade humana em sua totalidade.

Para encerrarmos a “teoria da liberdade em Hegel”, analisaremos algumas das suas concepções fundamentais sobre direito e liberdade contidas em excertos chaves de sua obra Princípios da Filosofia do Direito. A primeira seção da obra trata da propriedade. Reproduzimos abaixo os dois parágrafos iniciais:

 

41 – A pessoa, para existir como Idéia, deve dar um domínio exterior à sua liberdade. Porque nesta primeira determinação, ainda inteiramente abstrata, a pessoa é a vontade infinita em si e para si; o que pode constituir o domínio de sua liberdade é algo distinto dela, e determina-se como o que é imediatamente diferente e separável de si.

42 – O que é imediatamente diferente do espírito livre, considerado em si, é a exterioridade em geral: uma coisa algo não livre, sem personalidade e sem direito (HEGEL, 1997, 72).

 

A pessoa realiza sua liberdade a partir do instante em que se apossa de algo distinto dela. Personalidade, direito e liberdade caracterizam o sujeito apropriante em oposição ao objeto apropriado. O objeto é paciente, não-livre  se e somente se consegue exteriorizar o domínio de sua liberdade sobre algo distinto de si mesmo. Liberdade e posse, em Hegel. São conceitos auto-implicantes.

No interior da nota que serve de complemento ao parágrafo 43, podemos ler:

 

Segundo uma cláusula injusta e imoral do direito romano, os filhos eram coisa para o pai, que assim tinha a posse jurídica deles, não obstante haver a relação objetiva da afeição (relação que, por certo, devia resultar enfraquecida por aquela injustiça). Ocorria nisto uma unificação dos dois caracteres, coisa, completamente antijurídica. O objeto do direito abstrato é a pessoa como tal; e, portanto o particular, que pertence à existência e ao domínio de sua liberdade, só é objeto deste direito como coisa separável e imediatamente diferente da pessoa, quer este caráter de objetividade imediata lhe pertença essencialmente quer o receba de um ato da vontade subjetiva (HEGEL, 1997, 73-4).

 

Hegel afirma que o homem é livre na medida em que se apossa de entes exteriores ao seu eu, esclarecendo, ao mesmo tempo, que o apropriado é impessoal, sem direito, passivo, enfim, um objeto e não um sujeito. Daí, a condenação à cláusula do direito romano que assegurava a propriedade do pai sobre os filhos. O que Hegel não percebe é que o direito sobre as coisas assegura, de certo modo, o direito sobre as pessoas. Aí está a contradição fundamental de sua filosofia do direito.

O mérito de Marx consiste, exatamente, no desvelamento desta contradição. Em suas obras Marx demonstra que a propriedade de alguns sobre os meios de produção, coarcta a liberdade da maioria dos indivíduos, no caso, privados da posse sobre “coisa(s) separável(eis) e imediatamente diferente(s) da (sua) pessoa”.

O que Hegel não vê e que Marx põe à luz do meio-dia é o seguinte: a propriedade privada, por um lado, confere liberdade absoluta, plenos poderes a um indivíduo sobre uma determinada realidade e, por outro, impede que todos os outros (indivíduos) interfiram, zelem, usufruam, tirem proveito desta mesma realidade. A propriedade privada é sempre, ao mesmo tempo, privante: exceto o possuidor do título de propriedade, ninguém tem direito ou liberdade de agir sobre ela (propriedade privada). Se sou o dono de uma propriedade repleta de cachoeiras e outra belezas naturais, tenho o direito de proibir que todos os outros indivíduos desfrutem destas maravilhas, embora tenham elas adquirido existência muito antes de nossa espécie. Hegel defende mais do que o direito à propriedade privada (uso), ele defende o direito de propriedade privada (posse). Como já vimos, este último direito, para o filósofo de Stuttgart, equivale à concretização da liberdade humana. Hegel tem ciência de que a propriedade privada põe sob si a noção de liberdades individuais compartimentadas, estanques, geometricamente separadas umas das outras. Todavia, não se dá conta de que na prática as liberdades individuais se entrelaçam, de que elas partilham as mesmas condições, de que elas necessitam umas das outras. Se Hegel tivesse considerado a propriedade privada de um ponto de vista menos abstrato e mais empírico, logo entenderia que ela restringe o campo de ação humana, fecha um leque de possibilidades aos componentes de uma dada formação social, pelo fato de reivindicar exclusividade ao seu titular. Se temos no mundo somente uma propriedade qualificável de privada, então, inevitavelmente, contamos com menos uma possibilidade. Uma alternativa, uma opção nos é negada. O que significa, pois, a propriedade privada em escala social ? Muito simples. Significa que temos diante de nós um mundo de não-possibilidades, de não-liberdade. Esta é a razão pela qual Marx aponta a abolição da propriedade privada e sua coletivização como solução para o problema da desigualdade social e para a falta de liberdade. Na praça, que não é de ninguém, nos sentimos iguais, livres, senhores de nós mesmos, resumindo, integrados à sociedade e não subsumidos a ela. Se fôssemos, a partir da perspectiva marxiana, obrigados a submeter a filosofia do direito de Hegel a uma apreciação crítica, emitiríamos o seguinte juízo: o problema fulcral desta teoria é que, por encarar abstratamente a propriedade privada como meio de realização da liberdade humana, lhe constrói uma elaborada apologética, quando, na prática, ela engendra uma organização social opressora.

Todo aquele que se dedica à filosofia já sabe que Hegel é um autor nem sempre claro, dando margem a uma série de interpretações. No esforço de tentar validar tudo o que dissemos a respeito de sua filosofia do direito, recorremos a mais um fragmento de sua obra, diga-se de passagem, o último citado. A nota ao parágrafo 45 de seu tratado diz o seguinte:

Ter uma propriedade aparece em relação à necessidade, caso esta seja colocada em primeiro plano, como um meio. Mas a verdadeira posse encontra-se noutro ponto de vista, o da liberdade, que na propriedade tem a sua primeira existência, o seu fim essencial para si” (HEGEL, 1997, 74-5).

Hegel, basicamente, diz duas coisas: 1) O ser humano precisa satisfazer inúmeras necessidades e por isso precisa da propriedade. À necessidade de abrigo corresponde, de acordo com o pensamento de Hegel, a propriedade domiciliar. A propriedade domiciliar, neste caso, aparece como um meio para satisfazer uma determinada necessidade, já dissemos, a necessidade de abrigo; 2) Para Hegel, esta forma de propriedade não é exatamente aquela que realiza a liberdade humana. A verdadeira posse não supõe a satisfação de necessidades, não responde a fim algum, mas doutro modo, é um fim em si mesma. Na visão de Hegel, portanto, o operário  não tem liberdade alguma, pois tudo o que ganha pelo seu trabalho serve para lhe assegurar o estritamente necessário. Todas as posses do trabalhador são meios para a manutenção da sua subsistência e de sua família. No engendramento do real, toda mediação é determinada pelo fim. Usando outros termos, os meios são momentos necessários para a concretização do fim. A liberdade situa-se, por conseguinte, no reino dos fins. Estes fins, entretanto, devem ser fins reais e não aparentes. Se faço economia para poder comprar uma bicicleta e, com ela, ir ao trabalho, então ela é um fim aparente. Não obstante, se envido os mesmos esforços para adquirir a tal bicicleta e praticar ciclismo nos finais de semana, então ela é um fim real. O grande mentor do idealismo alemão entende a liberdade humana, pelo que podemos extrair de suas obras, como a propriedade sobre o supérfluo, sobre o desnecessário. Marx, posteriormente, mostrará que a posse de alguns sobre o supérfluo acarreta a falta do necessário para outros. Mostrará que a afirmação da liberdade do sujeito tal como Hegel a compreende, necessariamente nega a liberdade dos outros indivíduos integrantes da mesma cadeia social.

O termo que expressar a idéia de interdependência, de inter-relação e complementariedade entre os indivíduos de uma dada formação social.

Nunca podemos perder de vista que, mesmo falando em realização da liberdade humana, Hegel a concebe como uma das formas de manifestação do onímodo Conceito Absoluto. Justamente porque este último, após sair de si mesmo, se reapropria daquilo que alienou tendo como mediação o ser humano, é que não há espaço para uma efetiva liberdade humana no sistema hegeliano. Quando o homem se apropria de algo exterior ao seu eu e concretiza sua liberdade, é o próprio Conceito Absoluto que toma posse de si mesmo. A distinção entre sujeito apropriante, livre, dotado de direito e objeto apropriado, não livre, sem direito, é puramente conceitual. Do ponto de vista metafísico, ambos os pólos da relação jurídica constituem a mesma, única, hermética e absoluta realidade, o Eu Absoluto.

Certamente, não precisaríamos ser tão prolixos para demonstrarmos que, em Hegel, a subsunção humana à trama de relações e ao devir dialético do Espírito Absoluto é total, que, em Hegel, o homem é vítima do mais terrível determinismo. Se explanamos o pensamento hegeliano mais detalhadamente que o pensamento de outros autores, não foi somente para demonstrarmos que para Hegel o homem é determinado, mas para podermos compreender a gênese da teoria marxiana.

A partir de agora, veremos a posição dos que tentam conciliar as duas correntes até aqui apresentadas. Esta terceira linha entende que a condição humana compõe-se de elementos deterministas e indeterministas.

 

1.3.3        A posição intermediária: A liberdade como tensão que comporta aspectos deterministas e indeterministas

 

a)      Paul Ricoeur

 

Ricoeur pretende conciliar voluntariedade e involuntariedade. Segundo Ricouer não podemos exaltar excessivamente a ética da responsabilidade, pois devemos levar em conta nossa condição corporal e terrestre. O filósofo francês descreve fenomenologicamente o agir humano dividindo-o em três etapas: a) decidir: a escolha e os motivos; b) atuar: a moção voluntária e os poderes; c) consentir: o consentimento e a necessidade. Consentir é converter a necessidade em liberdade.

 

b)      Erich Fromm

 

Para Fromm, a liberdade caracteriza a existência do ser humano. Quanto maior o grau de auto-consciência de sua independência, maior é o grau de sua significância.

A vida humana se edifica entrelaçada pelo jogo de duas tendências: a progressiva (assunção da liberdade) e a regressiva (o medo de ser livres).

Há liberdade “de” e liberdade “para”: são dois momentos dialéticos de uma só realidade. Exemplificando: Sou livre de (exercício da liberdade) estudar ou não para a prova (fim, ideal, direção, objetivo ).

 

1.3.4 Os Céticos

 

a)      David Hume

David Hume (1711-1776) é um pensador bastante arrojado. Demonstra, via epistemologia, que a questão da liberdade é insolúvel, enquanto incognoscível. Na Investigação acerca do Entendimento Humano (1748) ele se despoja da presunção típica dos filósofos e reconhece:

Não tenho a pretensão de ter dissipado ou removido todas as objeções sobre a teoria da necessidade e da liberdade” (HUME, 1996, 103).

Afortunada aquela filosofia que, consciente de sua temeridade ao espreitar estes mistérios sublimes deixa uma cena tão cheia de obscuridades e perplexidades e volta com modéstia adequada para seu verdadeiro domínio – o exame da vida cotidiana – onde encontrará suficientes dificuldades ao empreender suas investigações, sem lançar-se num oceano tão ilimitado de dúvidas, de incertezas e contradições” (Ibid., 106).

Como bom cético, Hume procura esquivar-se de discussões filosóficas de cunho metafísico. Considera a questão da liberdade humana intangível, supra-racional. Contudo, é preciso notar que Hume associa a categoria “necessidade” à de “causalidade”. Ora, um dos principais objetivos da filosofia de Hume é minar o conceito de causalidade e provar que, o que existe de fato, é tão somente contigüidade. Hume, com isto, não estaria querendo defender o princípio da liberdade humana? Apenas um néscio não seria capaz de fazer esta espécie de análise.

Ademais, vale lembrar que Hume era amicíssimo de Adam Smith (1723-1790), o fundador do liberalismo econômico, e de Rousseau (1712-1778).

 

a)      Immanuel Kant

 

O filósofo liberal Immanuel Kant (1724-1808) segue as pegadas de seu predecessor, David Hume, pois diz que a questão da liberdade é insolúvel, embora seja um ferrenho defensor da mesma. Na Crítica da Razão Pura (1781) a liberdade é apresentada como uma das antinomias da razão pura. Quem admite o determinismo recai numa redução ao absurdo:

 

Admita-se que não exista nenhuma outra causalidade além da causalidade segundo leis da natureza. Em tal caso tudo o que acontece pressupõe um estado precedente, ao qual sucede inevitavelmente segundo uma regra. No entanto, o próprio estado antecedente tem que ser algo que aconteceu (veio a ser no tempo, já que precedentemente não era), pois, se tivesse sido sempre, a sua conseqüência não teria também surgido pela primeira vez, mas teria sido sempre. Logo, a causalidade da causa pela qual algo acontece é ela mesma algo acontecido que segundo as leis da natureza pressupõe novamente um estado precedente e sua causalidade; este estado, por sua vez, pressupõe um estado ainda mais antigo, e assim por diante. Portanto, se tudo acontece segundo leis da natureza, sempre haverá somente um início subalterno e jamais um primeiro início; conseqüentemente, jamais haverá uma completude da série do lado das causas procedentes umas das outras. Ora, a lei da natureza consiste precisamente em que nada acontece sem uma causa suficientemente determinada a priori. Logo, a proposição segundo a qual toda a causalidade é possível somente conforme a lei da natureza contradiz a si mesma em sua ilimitada universalidade, e por isso não pode ser admitida como a única causalidade (KANT, 1996, 294-5).

 

Por outro lado, quem admite a liberdade, igualmente recai numa contradição:

 

Suponde que haja uma liberdade em sentido transcendental como uma espécie particular de causalidade segundo a qual pudessem ser produzidos os eventos do mundo, ou seja, um poder de começar absolutamente um estado, e, por conseguinte, também uma série de conseqüências do mesmo. Em tal caso terá absolutamente início não somente uma série própria espontaneidade para a produção da série, esto é, a causalidade, de modo que não precede nada pelo qual essa ação ocorria seja determinada segundo leis constantes. Todo início, entretanto, para agir pressupõe um estado de causa ainda não eficiente; e um primeiro início dinâmico da ação pressupõe um estado que não possua absolutamente nenhum nexo causal com o estado antecedente da mesma causa, ou seja, que de modo algum resulte deste estado. A liberdade transcendental, portanto, opõe-se à lei causal e uma tal ligação dos estados sucessivos de causas eficientes – segundo a qual não é possível nenhuma unidade da experiência, e unidade esta que não se encontra também em nenhuma experiência – é, por conseguinte, um vazio ente do pensamento (Ibid., 295).

 

Os argumentos de kant espelham muito bem o contexto intelectual de sua época: de um lado tem-se um materialismo mecanicista e, de outro, um deísmo marcadamente racionalista. O primeiro afirma um determinismo absoluto, pois entende que toda a realidade é regulada por relações físicas quantificáveis, calculáveis, cognoscíveis, previsíveis e, o que é mais importante, inexoráveis, incontíveis e intrínsecas. Do ponto de vista filosófico se mostra incapaz de responder ao problema da existência do ser, recai numa petitio principii, ou seja, explica como funciona o relógio, mas não explica de que modo ele passou a existir. Para que o (primeiro) estado causador dos estados subseqüentes existisse (e ele existiu ou do contrário nada existiria) necessário seria postularmos um ato não causado, livre. Conclusão: o determinismo é filosoficamente insustentável. O deísmo tem a pretensão de explicar as origens do relógio, entretanto, não consegue fugir do mesmo problema, do determinismo! Deus cria, espontaneamente, o cosmo e, com ele uma série causal que nega toda e qualquer outra espontaneidade possível. Em linguagem simbólica, Deus cria o relógio, porém, ele sempre funcionará mecânica e deterministicamente.

Em resumo: se se afirma o determinismo, não há como explicar a existência do primeiro estado do cosmos; se se apela para um ato de espontaneidade divino, isto é, se se admite a categoria liberdade, não há como salvá-la da série causal decorrente do exercício da mesma.

Como Hume, Kant associa a idéia “necessidade” à de “causalidade”. Mas, se Hume nega totalmente a validez do conceito de causalidade, Kant a transforma num esquema mental, numa estrutura de pensamento, num a priori da razão transcendental. A causalidade, portanto, existe na mente do sujeito cognoscente e não sabemos se é um conceito que, deveras, encontra fundamento in re, se existe correspondência entre as estruturas de pensamento e as estruturas ontológicas da realidade. Os ceticismos humeano e kantiano são apologéticas da liberdade humana. Buscam lançar por terra os sistemas metafísicos da filosofia moderna que negavam a liberdade humana (Malebranche, Spinoza, Leibniz e outros).

 

1.4 .O JOVEM MARX

           

O que tentaremos mostrar é que toda reflexão de Marx, inclusive a econômica, gira em torno da questão da liberdade. Durante toda sua vida e, em todas as suas obras, Marx esforçou-se em defender este princípio (o da liberdade),  que para ele, era sagrado. Como aconteceu (acontece) com a maioria dos filósofos, basta pensar nas seis fases do pensamento de Schelling ou nos Wittgenstein I e II, Marx nem sempre teve a mesma concepção de mundo, de ser humano, de história. À medida que aproximava-se do real, Marx aprimorava sua reflexão, ia evoluindo intelectualmente e se tornando muito mais crítico do que em seus escritos juvenis apesar de terem sido bombásticos). Se na sua tese doutoral Marx defendeu entusiasticamente a liberdade humana e, se nos Manuscritos Econômico-Filosóficos ele a pressupõe a fim de criticar o capitalismo (este sistema econômico-social, segundo ele, tolhe a liberdade da maioria dos indivíduos da sociedade), isto não aconteceria depois de 1846. Neste ano Marx adotaria outra maneira (metodologia) de conhecer o real e, por conseguinte, refletiria sobre a questão da liberdade de outro modo. A partir daí, Marx analisaria a liberdade sob um ponto de vista menos filosófico e mais historiológico.  

Como notou Louis Althusser (1918-1991), em 1846 aconteceu uma verdadeira “ruptura epistemológica”: a maneira pela qual Marx passou a tomar conhecimento do real deixou de ser eminentemente filosófica e, na mesma medida tornou-se materialista , dialética e histórica.

            O método de Marx, na verdade, seria eternamente dialético e portanto filosófico. Quando os comentadores de Marx afirmam que ele abandonou o método filosófico, querem referir-se a um método filosófico específico, o tradicional: aquele que aplica categorias prontas à realidade. O método dialético, diferentemente, busca adequar-se à realidade, ao invés de trazê-la para o interior de esquemas conceituais elaborados mediante puro esforço intelectual ou simples processo de abstração.

A Ideologia Alemã, portanto, divide a trajetória intelectual marxiana em duas grandes fases, de modo que, comumente, são empregadas expressões como “Jovem Marx” e “Marx Maduro”.

                        Não obstante, Marx ainda não teria clareza metodológica suficiente se não fosse o escrito de  Proudhon, A Filosofia da Miséria (1846). Em Miséria da Filosofia (1847), réplica à obra do autor francês, Marx chega à conclusão de que não se deve introduzir proposições no discurso  para livrá-lo de contradições, sem antes demonstrá-las. Ulteriores reflexões metodológicas seriam realizadas em Grundrisse (1857-8), Contribuição à Crítica da Economia Política (1859) e Teorias da Mais-Valia, o livro quarto d’ O Capital. Estas últimas reflexões, no entanto, não alterariam  muito profundamente a questão da liberdade humana, o essencial já havia sido feito nas duas obras anteriormente comentadas.

Feita a devida introdução, podemos nos aproximar dos escritos de Marx e ouvir o que eles têm a nos dizer sobre a liberdade humana.

 

1.4.1 A Tese de Doutoramento

 

Dizíamos na biografia que Marx queria casar-se com Jenny e que para isto, precisava contar com uma fonte de renda fixa. Para tanto, decidiu aventurar-se no mundo acadêmico, pois acreditava que o salário de professor universitário seria suficiente para mantê-lo e à sua querida Jenny. Para auferir a cátedra precisou defender uma tese. Ela foi intitulada Diferença sobre a Filosofia da Natureza em Demócrito  e Epicuro (1841).

Os objetivos centrais da tese de Marx são a defesa do ateísmo e da liberdade humana. Aliás, a primeira obra marxiana precisa ser contextualizada de acordo com a trajetória intelectual de seu autor.

                        É preciso levar em conta que Marx explica a religião de três formas, cada qual definindo uma etapa do grau de desenvolvimento de sua teoria. Numa primeira fase (1837-1843) Marx critica a religião utilizando-se de um método filosófico racionalista-abtrato. Neste período, considera a religião uma imposição irracional. Marx faz uma contraposição entre razão e filosofia, e, fé e religião: uma exclui a outra. Imbuído de racionalismo e anti-teísmo, Marx afirma que os deuses são ilusões que ocupam provisoriamente os lugares não ocupados pela razão.

Num segundo momento (18431844), sob a influência de Feuerbach, Marx ainda nega os deuses para que o homem perca o medo das suas próprias criações mentais, porém muito mais, para afirmar o ser humano. Sua maior preocupação neste período não é negar Deus (anti-teísmo), e sim, afirmar o ser humano (ateísmo  positivo). O ateísmo é apenas conseqüência do humanismo. Se se afirma o homem, nega-se Deus. Se se afirma Deus, nega-se o ser humano. Nesta época Marx explica a origem da religião através da categoria “alienação”. Esta última, entretanto, não é entendida à maneira feuerbachiana, como um processo individual, mas como fenômeno coletivo, socialmente engendrado. A obra que melhor caracteriza este período chama-se Manuscritos Econômico-Filosóficos.

                        Finalmente, numa última e terceira fase, de 1845 em diante, Marx compreende a religião como ideologia. Como já dissemos 1845 é um marco no pensamento marxiano: acontece uma reviravolta metodológica, isto é, a realidade  deixa de ser abordada mediante o uso de categorias a priori para ser analisada empiricamente. Neste último momento a análise e crítica à religião é feita a partir do método científico-empírico-indutivo: observa-se a realidade, elabora-se uma regra e, a seguir, estende-se a tal regra a todos os casos.18

                        O resultado atingido por Marx foi o seguinte: a religião é ópio do povo, alienação coletiva resultante de estruturas econômicas inadequadas para uma eficaz organização social. Ora, este, muito bem, podia ser o caso da religião típica da sociedade em que Marx viveu. Assaltam-nos, dois questionamentos:1) Será correto, afirmar que a descrição do fenômeno religioso fornecida por Marx açambarca todas as suas dimensões? 2) Será correto afirmar que a explicação de Marx sobre a gênese da religião é estendível às manifestações religiosas de todas as sociedades, de todas as épocas? Quanto à  primeira questão, devemos observar que a teoria de Marx ainda hoje é válida quando voltamos nosso olhar para uma série de denominações religiosas. Muitas igrejas pentecostais limitam-se a catequizar certos estamentos sociais, os mais baixos, de forma que praticamente todo seu rebanho é constituído por desempregados, ex-travestis, alcoólatras, pessoas que abandonaram a vida do crime e outros elementos integrantes da escuma social. O cristianismo, quando era uma simples seita judaica, também se apresentava como a religião dos miseráveis. Ele, porém, foi libertador. Estas novas seitas, infelizmente, nada têm de libertadoras. Falam muito de Deus, raramente referem-se ao ser humano e, quando o fazem, é para lhe pregar um moralismo hipócrita. Extremamente carismáticas, estas seitas ignoram o fato de que antes de rezar o homem precisa alimentar-se, vestir-se, trabalhar e que nem todo mal no mundo resume-se a erro individual, ou seja, ignoram o fato de existir estruturas opressoras. Estes movimentos que apelam para o emotivismo e esquecem da concretude da vida humana, sem margem de dúvida, não passam de alienação coletiva. Por outro lado, não podemos desconsiderar movimentos religiosos como o da Teologia da Libertação, cujo impacto sobre a realidade social da América Latina se fez notar por outros continentes. A Teologia da Libertação é a prova cabal de que Marx descreveu um dos fenômenos religiosos e não “o” fenômeno religioso.

                        Nota: A expressão “fenômeno religioso” deve ser usada com muito cuidado. Quando falamos de fenômeno do grego, falamos de manifestação, de aparência. Isto quer dizer que existe uma realidade fundamental, primária, incognoscível diretamente, mas que pode ser conhecida, ou no mínimo afirmada, a posteriori, aqui está o perigo: o fenômeno religioso é manifestação de algo, mas de quê? O fenômeno religioso é manifestação de um Deus absoluto ou de infra-estruturas sociais alienantes? Uma coisa é certa: não podemos dizer ao mesmo tempo, que o fenômeno religioso nos remete a uma realidade supra-sensível, divina e que a religião não carece de fundamentos por se apoiar sobre uma Entidade Suprema, pois recairíamos, então, num círculo vicioso. Em outras palavras: seria uma ilogicidade absoluta dizer que o fenômeno religioso é a garantia da existência de Deus e que Deus é o sólido alicerce sobre o qual se apoia a religião.

Quanto à segunda questão, devemos dizer que Marx é vítima do salto indutivo ou, então, de argumento obnóxio. O salto indutivo consiste no seguinte: observo que 1, 10, 100, 1.000, 10.000, 100.000 cisnes são brancos. A partir da observação elaboro uma regra geral: todo cisne é branco. Aí está o salto indutivo: do fato de ter observado 100.000 cisnes brancos (um dado certo), extraio a regra de que todos (lei provável) os cisnes são brancos. Realmente, o salto indutivo é muito perigoso, existem cisnes pretos! Se a observação de 100.000 cisnes brancos não nos dá a certeza de que todos são brancos, muito menor será a probabilidade de elaborarmos regras gerais corretas apoiando-nos sobre um arquivo de dados menos acurado, isto é, menos rico na quantidade de informações empíricas. Observar 10 cisnes brancos e, a partir daí, dizer que todos os cisnes são brancos é elaborar um argumento obnóxio, ou seja, é realizar um enorme salto indutivo.

 

O argumento obnóxio é o indutivamente fraco. Estando provavelmente errado, impõe-se a elaboração de outro. Exemplo: Entrevistei vinte pessoas em Curitiba e verifiquei que duas fumavam. Concluo que 10% dos curitibanos fumam. Este é um argumento obnóxio porque, de uma diminuta amostra de vinte pessoas (de que idade? de que sexo? de que bairro? de que classe social?), não se pode concluir que 10% de toda a população curitibana sejam fumantes. Outro exemplo: Há vida em  todos os planetas que  circundam o Sol porque é certo que há vida em um (a Terra), como o fato de haver vida em um não permite a conclusão de que haja vida em todos, esse é também um argumento obnóxio (indutivamente fraco) (MAIA,1998,44).

                    

                        Foi exatamente isto que fez Marx: observando que na sua época a religião, nas principais sociedades européias, era um discurso que mantinha estruturas sociais escravizantes,  ele chegou à regra geral de que em todas as épocas e em todas as sociedades a religião desempenhou este papel. Marx valeu-se, pois, de um argumento obnóxio ou indutivamente fraco. Poder-se-ia dizer que esta nossa explicação está incorreta pois Marx era um grande conhecedor da história universal e da evolução das sociedades humanas.  Vale lembrar que todo homem olha para o passado com os olhos do presente. Não existe uma compreensão despreconceituosa, pura. A mesma evolução de uma sociedade pode receber “n” interpretações, dependendo do ponto de vista adotado pelo historiador.

Fizemos esta delongada explanação tentando dar uma visão de conjunto ao leitor daquilo que Marx pensava sobre a religião. A obra que veremos agora, a tese de doutoramento de Marx, reflete uma fase específica do seu pensamento, o seu modo dever, em determinada época (juventude), a religião.19

A idéia que Marx fazia da religião na época em que defendeu a sua tese de doutorado é fundamental para a questão que estamos abordando, o da liberdade humana ao direcionar a vida do homem para um referencial externo. Para Marx a autoconsciência humana era a divindade suprema e nada pode coarctar sua livre atividade. Daí, o desprezo pelos deuses (Deus) que tiram do homem sua liberdade de pensamento (e expressão). 20

Marx deu seu aval a Epicuro porque ele reprovou o determinismo de Demócrito. 21

Segundo Epiruco, algumas coisas seriam fortuitas, escapariam ao nosso controle, mas outras dependeriam do nosso arbítrio. A necessidade, ele a considerava um absurdo. Demócrito era um físico ateu porque queria acabar com a idéia de azar que atormentava os homens, infundindo-lhes na consciência medo de serem por ele perseguidos. Se não há deuses, nem azar, nem arbítrio e, consequentemente, nem recompensa ou castigo, não há o que temer. O determinismo livra o homem de toda espécie de medo. Epicuro, por sua vez, diz que é preferível acreditar no mito  sobre os deuses e honrá-los do que postular, com os físicos, a necessariedade das coisas; dos primeiros, pelo menos, podemos esperar alguma misericórdia, enquanto que, no segundo caso, não nos resta outra coisa  senão a inexorabilidade dos eventos e a mais completa escravidão. 22

Na verdade, Epicuro também era ateu. Adiante veremos quem eram os deuses de Epicuro.

Abaixo, Marx apresenta o raciocínio de Epicuro cujo intuito é o de refutar o determinismo democríteo.

 

Epicuro admite um triplo movimento dos átomos no vazio. O primeiro é a caída em linha reta; o segundo é produzido porque o átomo se desvia da linha reta, e o terceiro se deve à repulsão de numerosos átomos. Ao admitir o primeiro e o terceiro movimentos Epicuro está de acordo com Demócrito; os diferencia o desvio do átomo de sua linha reta.

Sem tem falado muito, em vão, sobre esse movimento de desvio. Cícero, em particular, é inesgotável quanto trata do tema. Assim, disse, entre outras coisas: “Epicuro sustém que os átomos são empurrados, por seu peso, para baixo, em linha reta; que este movimento é natural dos corpos. Todavia, reflete ele, em seguida, que se todos os átomos caíssem de cima para baixo, jamais um deles poderia se chocar com outro. Nosso homem apelou, então, para o recurso de uma mentira. Afirmou que o átomo se desviava apenas um pouco o que, sem dúvida, é absolutamente impossível. Deste modo originam-se as aproximações, as combinações e uniões dos átomos entre si, e daqui também o mundo e todas as partes do mundo e o que existe nele. À parte o fato de ser pueril a invenção de Epicuro, certo é que ele não atinge o objeto almejado” (MARX, 1987, 37-8). 23

 

Epicuro muito arrazoadamente observa que se todos os átomos caíssem em linha reta nunca chegariam a se chocar e, de maneira alguma, poderiam aglomerar-se para formar o mundo e o que nele há. Ora, através da experiência sensível constata-se o existir do mundo. Logo, não há como deixar de supor que, espontaneamente, os átomos se desviarem na linha reta.

Cícero, com tanta razão, criticou a teoria ad hoc de Epicuro. Deveras, como justificar um desvio gratuito, incausado, espontâneo do átomo? Do ponto de vista lógico, esta é uma questão assaz pertinente. Por outro lado, se focalizarmos as implicações antropológicas da teoria de Epicuro, nos damos conta de que a liberdade se encontra, precisamente, no movimento anônimo, indeterminado, na espontaneidade.

Afinal, o que tem a ver a teoria atômica de Epicuro com a filosofia de Marx? Basicamente, o seguinte: Marx utilizando o imanentismo hegeliano como instrumento de interpretação das doutrinas filosóficas, aprendeu com Epicuro que é impossível sustentar a liberdade humana e, concomitantemente, admitir um princípio explicativo do real que necessite de embasamento ulterior. Se supomos que Deus é a chave explicativa para o real, aceitamos a sua dependência em relação ao princípio que o engendrou. Doutro modo, se tomamos como ponto de partida a auto-fundamentação do real (os átomos se desviam espontaneamente da linha reta), teremos como linha de chegada a sua (do real) autonomia absoluta.

Em síntese, a heteronomia é inerente a toda explicação do real que se utiliza de princípios cuja fundamentação se encontra fora de si; da mesma, a autonomia e liberdade são intrínsecas às cosmogonias imanentistas. 24

Referindo-se à ênfase dada pelo doutorando à teoria de Epicuro sobre o desvio do átomo, um comentador de Marx o observa que aquilo que está em jogo é a liberdade “humana”:

 

Um dos pontos  decisivos do atomismo de Epicuro, a saber, a declinação do átomo em linha reta, Marx elogia-o justamente por ele ter introduzido o princípio da liberdade como explicação para tal movimento. O que, entretanto, está associado a isto e que também ganha grande importância aos olhos de Marx é o fato de Epicuro subordinar a filosofia da natureza a uma concepção moral do homem. O jovem doutorando mostra que “... Epicuro reconhece que seu modo de explicação tem por objetivo a ataraxia da consciência de si e não o reconhecimento da natureza em si e por si” (Marx, s. d., 28). Tudo o que possa perturbar o desenvolvimento autônomo do espírito humano deve ser categoricamente rejeitado, incluindo-se nesse caso tanto as leis físicas quanto as de natureza divina. Na verdade, a autonomia humana é concebida de modo não radical que, em seus cadernos de estudo sobre a filosofia de Epicuro, Marx anota que para o atomista grego “... não há nenhum bem que, para o homem, encontre-se fora dele mesmo; o único bem que ele tem em relação ao mundo é movimento negativo para ser livre dele” (NEW, v. 40, 101).

Cabe ainda salientar mais um importante aspecto da reflexão de Marx diante das posições da filosofia Epicurista: trata-se do seu veemente elogio ao fato do atomista grego rejeitar qualquer deus, celestes ou terreno, que possa obscurecer a independência do homem. Relacionada a esta postura encontra-se o significado atribuído por Marx à liberdade: ela carrega sempre consigo o atributo de liberdade “humana” (OLIVEIRA, 1997, 48).

 

Por considerarmos extremamente informativa e esclarecedora a longa citação acima, a reproduzirmos na íntegra. O excerto acima, a nossa ver, é muito valioso por conter passagens extraídas dos cadernos de estudo de Marx. Essas passagens apresentam as mesmas idéias que figuram na tese doutoral, com a diferença de serem expressas mais claramente e com maior objetividade, por Marx, nos seus rascunhos, não preocupava-se com a forma (acadêmica), e sim, com o conteúdo. Assinalamos,  de modo especial, três idéias: 1) Marx admira em Epicuro por submeter seu materialismo a uma antropologia que prima pela liberdade humana. Epicuro faz isto ao explicar o desvio do átomo através da categoria liberdade; 2) De acordo com Marx, o maior bem para o homem é a sua liberdade e não há bem que resida fora dele. O mundo, que é uma realidade exterior ao homem, não é, portanto, um bem. Pelo contrário, à medida que o homem sente-se menos dependente do mundo ele se torna mais livre, se apropria do seu maior bem, a liberdade; 3) Epicuro teoriza o desvio “atômico”, querendo defender, no fundo, a liberdade “humana”. A prova de que Epicuro está preocupado com a liberdade humana é o fato de ele rejeitar todos os deuses. A quem mais os deuses poderiam ou de quem poderiam tirar a liberdade mediante um vínculo de dependência a não ser do homem?

Dizíamos acima que Epicuro era um materialista que gostava de falar nos deuses. Afinal de contas, quem são estes deuses para Epicuro? Se Epicuro admite a existência dos deuses, não estaria ele, com isto,  admitindo a existência de entidades que coarctam a liberdade humana, sobretudo a liberdade de consciência? A resposta é: os deuses de Epicuro são as obras de arte plástica grega. E, como diria Aristóteles, todo bem é imóvel porque buscando. Bem é perfeição, completude, fim. Aquilo  que está incompleto é que busca e, ao buscar, se move. Movimento é tendência para um fim. Ora, os deuses de mármore são bens estéticos e, nessa qualidade, imóveis. Como poderá realizar algum mal aquilo que não se move? 25

Já dissemos que Marx elogiou a teoria de Epicuro de desvio do átomo por ela partir do axioma da liberdade e espontaneidade do movimento. Outro ponto fundamental da filosofia de Epicuro elogiado por Marx é sua crítica à religião. Vejamos por qual razão Marx aquiesceu à crítica que Epicuro dirigiu à religião:

 

Epicuro é (...) o maior iluminista grego, digno do elogio de Lucrécio: “Quando a vida humana visivelmente envelhecida jazia em terra oprimida sob o peso da religião, aquela que desde as regiões do céu mostrava sua fronte ameaçando aos mortais com seu olhar terrível em grego foi o primeiro homem que se levantou contra ela e elevou seus olhos em desafio. Nem a fama dos deuses, nem o raio, nem os estrondos ameaçantes do céu o intimidaram... Portanto, a religião foi esmagada sob seus pés; sua vitória nos exalta ao céu” (MARX, 1987, 85). 26

 

Rememorando a introdução que fizemos à análise da obra em pauta, o esquema das três fases da filosofia marxiana da religião, fica mais fácil compreender a citação acima. Marx quer transmitir uma mensagem prometéica ao ser humano, libertando-o das amarras da religião, do medo aos deuses, das fantasmagorias que povoam seu cérebro. Marx pretende destronar a religião e os deuses (Deus) e substituí-los pela razão, pelo homem.

Para demonstrar que os deuses não passam de abstrações mentais, Marx os compara às moedas utilizadas pelos povos. Se vamos ao Cairo comprar camelos com dólar ou libra egípcia, certamente faremos negócio. Se ao invés disso, temos a intenção de negociar em moeda brasileira, o real, seremos alvo de burla para os cairenses. O nosso real, que já chegou a valer mais do que o dólar, será papel inútil para os egípcios. O mesmo acontece com os deuses: se um hindu traz para o Ocidente algum dos seus 300 milhões de deuses, será motivo de escárnio. Se um católico leva um crucifixo para a tribo dos zulus, na África, os nativos ficarão chocados com a imagem de um homem tão mutilado. Da mesma forma que não há espaço para um deus indiano em país Ocidental, não há lugar para nenhum deus (ou Deus) no país da razão! 27

Se tivéssemos de fazer uma pequena síntese da tese doutoral de Marx,  diríamos o seguinte:

Ao menos em linhas gerais, figura, na primeira obra de Marx, a filosofia da natureza que seria desenvolvida por Friedrich Engels (1820-1895), Gheorghi Valentinovitch Plekanov (1856-1918), Karl Kautsky (1854-1938), Vladimir Ilitch Ulianov (1870-1924), Jossif Vissarionovitch Djagatchvilli (1879-1953) e outros. Sem exageros, podemos dizer que a  fundação do diamat não se deveu a nenhum filósofo russo, mas ao jovem doutorando Marx. Como veremos na segunda parte deste trabalho, uma das teses centrais do materialismo dialético é a autonomia e auto-fundamentação do mundo material. Outro ponto que aparece na obra do jovem doutorando e desperta especial atenção filosófica, é a junção de materialismo e liberdade humana. Uma das grandes diferenças entre o materialismo estático e o dialético é que o primeiro postula um determinismo absoluto, enquanto o segundo admite a liberdade humana.

 

1.4.2  O Primeiro Artigo

 

Na biografia de Marx vimos que ele defendera a tese de doutorado com o intuito de ingressar na universidade, mas que este seu projeto acabou fracassado. Para remediar seu problema financeiro Marx resolveu se dedicar ao jornalismo.

 

Seu primeiro artigo, Bemerkungen über die neveste prevbische Zensurinstruktion, no qual combatia a censura, foi enviado aos Anais Alemães (Deutsche Jahrbücher für Wissensechaft ünd Kunst), uma publicação dirigida por Arnold Ruge. Tal artigo não pode ser publicado justamente por ter sido barrado pela censura. Seu amigo Ruge levou então o artigo para Anedota (Anekdota zur revesten deutsher Philosophie und Publicistik), uma revista de Zurich da qual também era editor (Ibidem, p. 52-3).

 

O artigo a que Oliveira se refere é de 1842 e, segundo o mesmo autor, pode ser traduzido por Advertências sobre o recente código de censura prussiano. Este artigo em que Marx criticava, como foi assinalado acima, foi barrado pela mesma censura! Nele podemos ler: “A verdadeira cura radical da censura seria sua abolição” (MARX, apud OLIVEIRA, 1997, 53).

No mesmo ano Marx escreveria vários artigos para a Gazeta Renana (Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe), defendendo a “liberdade de expressão”.

 

 

1.4.3 A Crítica a Hegel e à Religião

 

Em 1843 Marx escreveu Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que não era outra coisa senão o esboço de uma obra que publicaria no ano seguinte, a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Passaremos a analisar esta última obra.

 

Pode-se dizer que a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel desenvolveu-se ancorado em quatro idéias-chave. A primeira delas é o reconhecimento de que a crítica empreendida por parte de Feverrach em relação à religião é a figura adequada de uma crítica à qual o próprio Marx deveria recorrer. A Segunda refere-se à denúncia da estrutura ainda feudal da Alemanha, em pleno século XIX. A terceira marca seu profundo respeito em relação a Hegel, atribuindo-lhe a contenporaneidade  sem a história moderna... Finalmente, o argumento em que culmina o escrito demonstra a preocupação de Marx em, contando com a arma teórica de que dispõe – a teoria filosófica -, superar só a anacrônica estrutura da Alemanha, senão a própria sociedade burguesa moderna. É justamente neste passo que surge, logicamente, a necessidade do proletariado (OLIVEIRA, 1997, 63-4).

 

Dando continuidade à crítica da religião que realizara na sua tese doutoral, Marx denuncia o caráter alienante e escravizador da mesma na obra que estamos estudando. O filósofo-poeta (o poeta nem sempre é um romântico que vive no mundo das nuvens) afirma o seguinte: “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo” (MARX, 1991,  106).

Se Feuerbach pensava que criticando a religião tudo estaria resolvido, Marx era de outro parecer. Marx admitia que a crítica da religião era (é) o pressuposto de toda crítica. Malgrado, Marx ultrapassa Feuerbach e mostra que a alienação religiosa é conseqüência da alienação terrena, material-econômica. Marx tenta nos explicar que a religião faz parte da superestrutura (e este é reflexo da base ou infra-estrutura) e que sustem o estado de coisas existente. “Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o reino de Deus!” (Lc 6,20).

Em outros termos: a religião nasce da miséria e,  além disso, ajuda a manter o estado de miséria. As classes pobres deixam de viver esta vida concreta, para viver uma outra, a espiritual, que não existe. É neste contexto que devemos entender a religião enquanto ópio do povo: ela anestesia as massas populares e evitam insurreições e outras espécies de rebeldia.

Marx definiu a religião como flores imaginárias que enfeitavam cadeias:

A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que realizou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religião é apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo” (Idem)

            Como  vimos, Marx não criticou a religião pelo simples gosto de criticar. Sua crítica tinha um objetivo bem específico: tirar o véu (a religião) que impedia os homens de ver que estavam encarcerados.

                A radicalidade é a característica marcante dos escritos do Jovem Marx: “Tendo à frente nossos pastores, só uma vez nos encontramos em companhia da liberdade: no dia de seu enterro” (Ibidem, 108).

            Ou seja: não haverá liberdade enquanto existirem os dirigentes políticos, quaisquer que sejam eles: os plutocratas, teocratas, aristocratas,  monarcas, etc. A liberdade implica o desaparecimento do Estado.

            “... certos entusiastas bondosos, germanistas pelo sangue e liberais pela reflexão, vão buscar além da história, nas selvas teutônicas virgens, a história da nossa liberdade: Mas, se só se encontra na selva, em que se distingue a história da nossa liberdade da história da liberdade do javali?” (Idem).

            Marx critica a fantasiosa idéia do livre contrato social. Idéia segundo o qual os indivíduos saíram de um estágio de selvageria delegando direitos e deveres (o de defesa, por exemplo) a um poder central, superior, o Estado. Marx sabiamente demonstrou que a sociedade burguesa não nasceu de um artificioso contrato, mas que ela é produto de um longo engendramento do desenvolvimento das forças produtivas, da evolução das instituições políticas e das mentalidade e ideologias emergentes.

            Segundo os liberais a história da humanidade constitui-se de apenas duas etapas: a da barbárie e a civilização (burguesa). Marx, de outro modo, periodiza a história em: modo de produção primitivo, escravista, feudal, capitalista e comunista. Quem realizar um estudo mais pormenorizado e meticuloso da obra marxiana, ainda encontrará menção aos modos de produção asiático, camponês, e, referência a estágios intermediários entre dois modos de produção dados.

            A liberdade é sentida apenas na vida social: um homem que vive só, no meio da mata, não é nem livre, nem não-livre. O homem é um ser social e histórico. O javali é, simplesmente, um ser natural.

            “A luta contra o presente político alemão é a luta contra o passado dos povos modernos; as reminiscências deste passado continuam a pesar sobre eles e a oprimi-los” (Ibidem, 110).

            Marx repetiria semelhante refrão numa obra que analisaremos mais detalhadamente adiante, O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (MARX, 1974, 335).

            Nestas passagens podemos perceber o realismo de Marx que, simultaneamente, se faz advogado da liberdade humana e reconhece as limitações que a história impõe à mesma. O leitor dotado da mínima acuidade intelectual já percebeu que Marx é um iluminista tardio, e quer romper com o passado (No prefácio à sua tese de doutorado caracteriza a Idade Média como “período de irracionalidade absoluta”). Por que, quer ele, romper com o passado? Porque a sociedade do passado está assentada sobre a servidão, sobre a não-liberdade (Obs: o modo de produção feudal também é conhecido por modo de produção servil;.Cf. BOTTOMORE, 270).

            “... se um indivíduo livre não se acha vinculado às cadeias da nação, ainda menos livre se vê a nação inteira diante da libertação de um indivíduo”(MARX, 1991, 113).

            Marx está  coberto de razão: se um indivíduo está inexoravelmente ligado à nação, sua libertação equivale à libertação da nação; por outro lado, se ele não está,  a nação se torna ainda menos livre com sua libertação, uma vez que conta com menos um revolucionário para derrubar as condições de escravidão. Daqui a necessidade de haver uma consciência de classe, de comunidade, haja visto que a liberdade enquanto “ocorrência pessoal” não muda as estruturas da realidade social. Assim como o capitalismo supõe uma estrutura de classes dentro de uma dada sociedade, supõe um hierarquia, em nível mundial, entre países explorados e exploradores. A respeito, diz ele: “O povo que subjuga outro forja suas próprias cadeias” (MARX, 1985, 65). Em síntese, para Marx, a libertação é irrealizável se não for coletiva.

            “As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas, a força material tem de ser deposta por força material... Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, (...) a raiz é o próprio homem” (MARX, 1991, 117).

            Marx procura mostrar aos seus contemporâneos, os filósofos que abraçaram o criticismo (Marx Stirner, Bruno Bauer, Edgar Bauer e outros), que a crítica filosófica é incapaz de transformar a realidade. Apenas uma revolução poderia desempenhar esta função. Quando Marx diz que a raiz do homem é o  próprio homem, quer dizer que a burguesia deve ser eliminada, através de meios violentos se necessário, pelo proletariado. Para resolver seus problemas, a maioria dos homens deverá se revoltar contra uma minoria dominadora.

            “Lutero venceu efetivamente a servidão pela absorção porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha convertido leigos em sacerdotes. Libertou o homem da religiosidade porque exigiu a religiosidade no interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias porque sujeitou de cadeias o coração” (Ibidem, 118).

            Numa linguagem menos poética: Lutero foi um libertador. Todavia, sua libertação teve um alcance muito curto: foi uma libertação em nível pessoal e permitiu ao homem liberdade religiosa; contudo, não permitiu ao homem se libertar da religião. Lutero livrou o leigo da submissão ao sacerdote que existia fora de si; é preciso, agora, que o homem se liberte do sacerdote que existe dentro de si.

            “O passado revolucionário da Alemanha é, de fato, em passado histórico: é a Reforma. Como então no cérebro do frade, a revolução começa agora no cérebro do filósofo” (Ibidem, 117).

            Quer dizer: O primeiro libertador foi o frade (Lutero), porém cabe ao filósofo (Marx) dar luz à segunda etapa da emancipação humana. É claro que o filósofo não é capaz de fazer sozinho uma revolução. Além do que, as idéias não podem transformar a realidade. O que Marx quis dizer com esta analogia foi o seguinte: “Assim, como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais” (Ibidem, 126). Parafraseando Marx, Lênin disse mais tarde: “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário” (LÊNIN apud CLARET, 1985, 10-11).

            A proposta de libertação de Karl Marx, deveras, não pode ser compreendida se não for colocada dentro da tradição do pensamento teológico-filosófico alemão. Marx foi o continuador de um processo que se iniciou com Martim Luther ou Martinho Lutero (1483-1546) e que passou por Immanuel Kant (1724-1804), Gorge Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872). O que aconteceu neste percurso intelectual foi a eliminação da mediação: o homem passou a intervir na realidade de forma cada vez mais direta. No início, para intervir na realidade, o homem se punha de joelhos diante da imagem da Virgem Maria, para que Ela rezasse a Deus em prol dos desprezados filhos de Eva. Depois, o homem passou a fazer seus pedidos diretamente a Deus. Ou seja, ainda não era o homem a causa eficiente, o agente transformador da realidade. Em seguida, Deus deixou de ser a Providência Divina para se transformar num egrégio relojoeiro que, construiu tão bem seu relógio (o mundo), a ponto de não  mais precisar ajustar os ponteiros (intervir na realidade). Id est: o Deus pessoal se transformou num Deus Categoria. Não bastasse toda esta complicação, um obscuro filósofo prussiano deixou de falar de Deus e do mundo, para dizer que o que existia era o Espírito Absoluto. Este último seria síntese do material e do espiritual, do ideal e do real, seria a própria história e tudo o mais que se possa imaginar. O Eu absoluto açambarcaria toda a realidade, coincidiria com ela. Nesta perspectiva, o cristianismo seria a forma suprema de religião, haja visto que o Cristo foi, concomitante e plenamente, homem e Deus. Neste caso, ainda não seria o homem o construtor da história, mas o Espírito Absoluto. O Conceito Absoluto se utilizaria dos homens para atingir seus fins: a consciência, a autenticidade e  a liberdade. Em seguida, todo idealismo foi contraposto pelo mais apodíctico materialismo: só o homem teria existência real, Deus não passaria de uma projeção das idéias humanas, de uma reificação das faculdades e atributos do homem. Malgrado, o homem continuaria sendo um impotente solitário. Então, apareceu um iluminista rebelde para recordar aos homens, prometeicamente, que eles eram capazes de ação, de livre iniciativas. Esquematizando, temos:

a)      O Cristo sem Igreja

Lutero: Afirma-se que o único mediador é Cristo. Rejeitam-se todas as mediações concretas: a Igreja (comunidade), Sacramentos, Ministério Presbiteral, etc... A Reforma Protestante foi o movimento religioso que identificou esta nova concepção de Deus e de Igreja, cujas repercussões puderam ser notadas, no âmbito pertinente à reflexão filosófica.

b)      Deus sem Cristo

Racionalismo iluminista e Kant: Deus é reduzido a um princípio cosmológico, a uma chave ou categoria explicativa da realidade. É digna de menção a obra de Kant A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão (1793), onde se afirma, indiretamente, que das verdades proclamadas pela Revelação e pela Tradição, nenhuma sequer, é acessível à razão pura. A razão humana é que assume a função de mediadora. A ciência e a técnica são os instrumentos os meios que possibilitam ao homem intervir na realidade. O teísmo é substituído pelo deísmo. Admite-se apenas aquilo que é “humanamente crível e moralmente utilizável”.

c)      Cristo sem Deus

Idealismo alemão e Hegel: Nega-se a transcendência de Deus. Há quem diga que se trata de uma recuperação dos dogmas da Trindade (dialética), da Encarnação (imanentismo) e da Redenção (o Espírito Absoluto tende para a liberdade). Entremetes, devemos ter bastante cautela diante desta última assertiva, pois nos parece demasiadamente enviada por uma perspectiva cristã de análise.

Poder-se-ia dizer que, esta etapa do itinerário espiritual do pensamento moderno se caracteriza pela superação do Deus distante do protestantismo: Deus se faz na história.

O Estado é o redentor.

d)     Nem Cristo, nem Deus

Karl Marx: Todos as espécies de materialismo negam Cristo e Deus. No entanto, apenas o materialismo dialético histórico garante ao homem, de maneira explícita, o poder de intervir na realidade. Trata-se de um humanismo total: todas as mediações não-humanas são banidas para cederem lugar à práxis, a verdadeira redentora.

Depois de termos feito esta análise, gostaríamos de dizer o seguinte: o marxismo é uma ciência que, em última instância, fundamenta-se na economia e no socialismo precedentes. O próprio sistema hegeliano pode ser tomado como o desencadeamento lógico da filosofia que lhe precedeu, sobretudo do kantismo, sem de longe nos referirmos à religião. Não queremos, de modo algum, passar a idéia de que o marxismo seja um neto rebelde do cristianismo católico, ou filhote do protestantismo. Quisemos mostrar que o marxismo recebeu sim, influências até mesmo da teologia e da religião do séc. XIX. Basta pensar no uso que Marx faz de conceitos como “alienação”, “mediação” e outros, que Hegel extraiu da teologia protestante. O fato, é que o próprio Marx reconheceu que a superestrutura condiciona a base. Não é que esta última deforma a primeira e esteja isenta de influências: existe um jogo dialético entre estas duas dimensões do real. Não devemos estranhar, destarte, se encontrarmos alguns conceitos na obra marxiana que estejam aparentados, mesmo que de longe, com categorias metafísico-religiosas. A nosso ver, estes resquícios existem. Todo filósofo recebe influências da cultura de sua época, por mais que ele a conteste.

Mas, por que, afinal, fizemos este entrelaçamento do marxismo com o pensamento teológico-filosófico alemão? Foi para podermos comparar as propostas de libertação de duas meta-narrativas distintas: o cristianismo e o marxismo. Meta-narrativa é uma weltanschauung que capta uma suposta racionalidade na história, que revela seu fio condutor (pode ser a Divina Providência ou o desenvolvimento das forças produtivas), seu início, seu meio e seu desfecho.

Agora, pensamos ser oportuno traçar as principais diferenças entre o conceito marxista de libertação do conceito de libertação cristã. A  nosso ver, a proposta de libertação do marxismo se caracteriza pela sua concretude, em contraposição ao caráter espiritual da libertação cristão. Porém, existem outras diferenças ainda:

Para o cristianismo, “a libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça” (RATZINGER, 1984, 5).

No mesmo documento pontifício da Igreja Católica, o assunto Instrução sobre Alguns Aspectos da Teologia da Libertação (1984), lemos:

Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia” (Ibidem, 13).

Para o marxismo, a libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão de ordem econômica, política, social e cultural. A liberdade não é presente, “dom da graça”, mas uma realidade que os próprios homens conquistam pela “crítica das armas” (MARX, 1991. 117).

Segundo o cristianismo, Cristo é o libertador; quando Ele voltar, acontecerá a redenção, a libertação plena dos homens “e o seu reino não terá fim!”. Segundo o marxismo, o homem não deve esperar por uma libertação do tipo deus ex machina 28, mas ele próprio deve tomar as rédeas da história e concretizar sua redenção e libertação.

Para o cristianismo a libertação plena é possível apenas num plano ultra-terreno, que transcende as categorias de espaço e tempo. O marxismo quer a libertação plena hic et nunc, ou seja, nesse mundo (lugar) e nesta vida (tempo).

O francês Roger Garaudy resume em poucas palavras a proposta marxista de libertação:

Nós, marxistas, jamais desprezamos ou ridicularizamos o cristianismo por causa de sua fé, do seu amor, de seus sonhos, de suas esperanças. A nossa tarefa é trabalhar e combater para que tudo isso  não fique eternamente distante e ilusório. A nossa missão de comunistas consiste em aproximar o homem dos seus sonhos mais belos e das suas esperanças sublimes. Consiste em aproximá-lo real e praticamente a fim de que os próprios cristãos encontrem sobre  a nossa terra um início do seu céu (GARANDY apud MOMDIN, 1987, 249).

 

A ultima citação deste primeiro documento pontifício que estamos utilizando: afirma que:

... a negação da pessoa humana, de sua liberdade e de seus direitos, encontram-se no centro da concepção marxista” (RATZINGER, 1984, 23).

Usando uma expressão marxiana, temos aí um exemplo do típico cretinismo burguês. A Ideologia Alemã de Marx e  Engels definem a ideologia como inversão da realidade. Pois bem, aí está um belo exemplo de ideologia. O marxismo que não busca outra coisa senão afirmar a pessoa humana, sua liberdade e seus direitos, é acusado de fazer o inverso de tudo isto. O autor teria sido intelectualmente honesto se tivesse dito: Segundo a concepção marxista, a pessoa humana, sua liberdade e seus direitos são absolutamente negados no modo capitalista de produção.

Se passarmos para a análise de um documento pontifício ainda mais antigo, encontraremos um preconceito ainda maior. Um caso típico é o documento “Sobre o Comunismo Ateu” (1937) nele encontramos passagens do tipo:

... o comunismo despoja o homem da liberdade...” (PIO XI, 1953, 7).

De fato, no comunismo o homem é despojado da liberdade de vender sua força de trabalho para ser degradado num alienante processo de produção, característica fundamental do modo de produção capitalista.

Para o comunismo particularmente não existe vínculo algum que prenda a mulher à família e ao lar doméstico” (Ibidem, 8).

Corretíssimo: não é intenção do comunismo prender a mulher a nenhum tipo de instituição, mas libertá-la de sua submissão ao homem que já perdura há séculos.

Como o comunismo é definido por Pio XI:

... sistema que desconhece a verdadeira origem, natureza e fim do Estado, e nega os direitos da pessoa humana, de sua dignidade e liberdade” (Ibidem, 9).

Certamente, o autor da proposição acima não leu a clássica obra engelsiana Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Nem sequer se deu o mínimo trabalho de ler O Manifesto Comunista, onde o fim do Estado é apresentado de maneira claríssima: “... (o) Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda burguesia” (ENGELS, 1998. 12). Enquanto parte da superestrutura, serve para manter o estado de coisas, para conservar a infra-estrutura. É, pois, um instrumento de dominação de uma classe sobre outra “... e nega os direitos da pessoa humana, de sua dignidade e liberdade”. Esta inverdade já foi comentada, pois aparecia, outrossim, no documento anterior.

... pela primeira vez na história assistimos a uma luta friamente voluntária e cuidadosamente preparada pelo homem, contra “tudo que é divino” (2 Tess 2,4) (PIO XI, 1953, 13).

Existe algo mais divino que a liberdade humana? Ora, o comunismo luta sim, mas é para preservá-la.

Não é verdade que na sociedade civil todos temos direitos iguais, e que não exista hierarquia legítima” (Ibidem, 17).

O comunismo entende que a liberdade é possível apenas numa sociedade onde os homens sejam iguais, tenham os mesmos direitos. No entanto, a Igreja insiste em dizer que o padre tem mais direitos que o leigo, que o homem tem mais que a mulher, e assim por diante.

Para encerrar mais este documento:

... o único Salvador é Jesus Cristo, Senhor Nosso: pois que não há sob o Céu outro nome dado os homens, no qual possamos esperar salvação (At 4,12)” (Ibidem, 39).

Resumindo: devemos esperar de braços cruzados que Deus venha nos libertar. Bela conclusão!

Abandonando as digressões que fizemos, podemos dar prosseguimento à analise da obra marxiana que estávamos abordando, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Marx afirma:

Para que um estado seja par excellence o estado de libertação, é necessário que outro seja o estado de sujeição por antonomásia. O significado negativo geral da nobreza e do clero francês condicionou a significação positiva geral da classe inicialmente delimitadora e contraposta, da burguesia” (MARX, 1991, 122).

Foi por isso que a burguesia pode fazer sua revolução: ela criou o chavão “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e o proclamou, em alta voz, numa sociedade assentada na servidão, na hierarquia (1º estado: nobreza, 2º estado: clero, 3º estado: a própria burguesia nascente, isto é, artesãos, comerciantes, manufatores, etc., 4º estado: os servos, camponeses, soldados e outros estamentos que não se enquadram nos três primeiros estados) e em castas ou linhagens. A burguesia contou com o apoio das massas porque fez propaganda de um projeto de libertação. Infelizmente, esta proposta não passou de mera propaganda e, nada, concretamente, se fez além de aumentar a escravidão das classes trabalhadoras da sociedade. É neste mesmo sentido que o liberalismo deve ser visto como o preparador de terreno para o comunismo: o projeto de libertação marxista só faz sentido num contexto em que as pessoas sejam vítimas da exploração e da não-liberdade. Ora, o liberalismo cria, ou melhor, criou este contexto.

... (A) Revolução Industrial (veio) acompanhada de um séquito de coadjuvantes composto pela jornada de trabalho de 14 horas, a expulsão dos camponeses de suas terras, os salários de fome, a exploração bestial das mulheres e crianças e a inexistência das mais mínimas condições para que a vida da maior parte da população se diferenciasse da de um animal. As idéias socialistas são uma conseqüência da miséria reinante, são os gritos de revolta de uma população à procura de sua dignidade humana (SPINDEL, s/d, 15).

 

Outro autor confirma:

 

As conseqüências da rápida industrialização e urbanização levadas a cabo pelo sistema capitalista foram tão visíveis quanto trágicas: aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do infanticídio, da criminalidade, da violência, de surtos de epidemia do tipo e cólera que dizimaram parte da população etc. É evidente que a situação de miséria também o campo, principalmente os trabalhadores assalariados, mas o seu epicentro ficava, sem dúvida, nas cidades industriais (MARTINS, 1996, 13-4).

 

Assim como a queda do intercontinental império romano criou uma falta de perspectivas em todas as populações sob seu domínio e incentivou a propalação do cristianismo, também o liberalismo cria falta de perspectivas onde passa com o rolo compressor de seu mercado e abre caminho para o comunismo.

 

1.4.4 A Questão Judaica

 

Em 1844 Marx escreveu não só a obra que acabamos de analisar, mas outras ainda. Entre elas encontramos A Questão Judaica. Bruno Bauer numa obra cujo nome era idêntico ao título do artigo de Marx, defendeu a idéia de que o Estado deveria ser laicizado para acabar com a discriminação judaica (os parlamentares eram cristãos). Marx revidou com seu opúsculo posterior, dizendo que não devemos laicizar o Estado, mas destruí-lo. E, além disso, a laicização do Estado não corresponde à laicização do indivíduo, o que, segundo ele, também é necessário. Para Marx, o Estado e a religião são duas cadeias e ambos precisam ser destruídos. Diz ele:

O Estado cristão não pode, sem abrir mão de sua essência, emancipar os judeus, assim como – acrescenta Bauer – o judeu não pode, sem abrir mão de sua essência, ser emancipado. Enquanto o Estado permanecer cristão e o judeu, judeu, ambas serão igualmente incapazes: um de outorgar a emancipação, o outro de recebê-la” (MARX, 1991,  14).

Da mesma forma não se deve esperar que o Estado burguês emancipe as classes trabalhadoras, pois estaria negando a sua essência; manter sob controle o sistema de exploração e escravidão da sociedade burguesa.

 

A França nos tem oferecido recentemente (debates sustentados na Câmara de Deputados a 26 de dezembro de 1840), com relação à questão judaica como, constantemente, em todas as demais questões políticas (desde a revolução de julho) o espetáculo de uma vida livre, restringindo, porém, esta liberdade à letra jurídica, isto é, declarando-a simples formalidade, ao mesmo tempo em que refuta suas leis libertárias com fatos que não a sua própria negação.

Na França, a liberdade geral não chega  a ser lei, a questão judaica, ainda não foi tampouco resolvida, porque a liberdade legal, a norma de que todos os cidadãos são iguais, vê-se restringindo na realidade, dominada e cindida pelos privilégios religiosos e esta falta de liberdade repercute a lei e a obriga a sancionar a divisão dos cidadãos livres em oprimidos e opressores (BAUER apud MARX, 1991, 17).

 

Bauer caracteriza muito bem a liberdade dos cidadãos das sociedades burguesas: os homens livres estão divididos em  oprimidos e opressores. Trata-se de uma liberdade jurídica, ideal, sem correspondência no plano concreto.

A religião já não constitui, para nós, o fundamento; apenas e simplesmente, constitui o fenômeno da limitação secular. Explicamos, portanto, as cadeias religiosas dos cidadãos livres por suas cadeias seculares” (MARX, 1991, 22).

A religião, portanto, não é a causa da desigualdade de direitos e da não liberdade de alguns indivíduos, mas apenas esconde sua verdadeira causa: os interesses materiais. Como os judeus não eram considerados cidadãos na Idade Média (somente católicos eram considerados cidadãos), não podiam possuir terras. Por este motivo, dedicavam-se ao comércio e à atividade financeira e, não a produção. Aconteceu que sua atividade lhes permitiu acumular fortunas e eles foram os primeiros banqueiros da época moderna, inclusive patrocinaram as expedições marítimas portuguesas e espanholas. Se não fosse por eles, a América não seria descoberta já em 1492. O que os prussianos tentaram fazer foi usar da religião para obstaculizar o acesso dos judeus ao poder político (uma vez que eles já eram os donos do poderio econômico). Não tem jeito: passou pouco tempo e os judeus tomaram conta do Estado. Os judeus continuariam sendo os donos do Estado e da economia prussianos (mais tarde, alemães) até Adolph Hitler sentir necessidade de roubar suas fortunas para poder bancar os custos da guerra no século XX (Dentro deste contexto é que podemos entender o arianismo e anti-semitismo hitlerianos).

A passagem abaixo citada condena o sentido deste opúsculo marxiano:

O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (Ibidem, 23).

Em palavras mais simples: se o Estado é secularizado, temos um Estado livre. Ora, a secularização do Estado não equivale à secularização dos indivíduos. Assim, pode acontecer que tenhamos numa mesma sociedade um Estado livre e homens não-livres. A emancipação política, destarte, não equivale à emancipação humana. Esta última é muito mais radical.

Conclui-se, finalmente, ainda quando se proclame ateu por mediação do Estado, isto é, proclamando o Estado ateu, o homem continua sujeito às cadeias religiosas, precisamente porque só se reconhece a si mesmo mediante um subterfúgio, através de um meio. A religião é, cabalmente, o reconhecimento do homem através de um mediador. O Estado é o mediador entre o homem e a sua liberdade” (Ibidem, 24).

Aqui, mais uma vez, podemos ver Marx colocando a vida e a liberdade humanas no seu devido lugar: no centro da vida humana. O homem deve girar em torno de si mesmo e não em torno de suas próprias criações (Estado, Deus, Mercado, etc). Lembrar daquela reflexão que fazíamos da eliminação progressiva da mediação, cuja quarta etapa era representada por Karl Marx, nos ajuda a compreender a crítica marxiana à religião e ao Estado.

Outro objetivo de a Questão Judaica foi criticar a Déclaration des droits de l’homme et du citoyen (1791). O artigo 2º da mais radical das constituições, a Constituição Francesa de 1793, assegura a todos os homens o direito a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade. O artigo 6º da Declaração dos direitos do homem e do cidadão define o que é a liberdade da seguinte maneira: “La liberté consiste à pouvoir fair tout a qui me muit pas à autrui” (DDH de 1791 apud MARX, 1991, 42). Em bom português: “A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém.” Marx critica esta  concepção de liberdade:

Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma” (MARX, 1991, 42).

... o direito do homem à liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo. A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito à propriedade privada” (MARX, 1991, 42).

No essencial, a crítica que Marx faz a todo código legal, constituição, declaração ou estatuto burgueses é que eles não passam da uma apologética da propriedade privada. Referindo-se à obra de Montesquieu, Marx diria: “O espírito das leis é a propriedade privada”. E o que é a propriedade privada? Segundo o artigo 16º da Constituição francesa de 1793 é: “... celui qui appartient à tont citoyen de jouis et de disporer à son gré de ses biens, de ser revenues du friut de son travail et de von industrie” (Constituição Francesa de 1793 apud Marx, 1991, 43): “... o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos fundos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe convier.” Marx comenta:

O direito humano à propriedade privada, portanto, é  o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta (MARX, 1991, 43).

 

A crítica que Marx faz ao conceito burguês de liberdade é que, na prática, ele se limita a garantir o direito à propriedade privada. Esta, por sua vez, é o direito de o indivíduo dispor de seus bens materiais sem levar em conta as necessidades e os interesses coletivos. Os liberais só falam de um tipo de liberdade individual e esquecem que o homem é um ser social. Daí, a necessidade se propor uma espécie de liberdade que considere a dimensão comunitária do ser humano.

Marx ainda encontra outros problemas nas constituições burguesas:

Garante-se a “liberté indéfimie de la presse29 (Constitution de 1795, art. 122) como conseqüência do direito humano, da liberdade individual, mas isto não impede que se suprima totalmente a liberdade de imprensa, pois “la liberté de la presse me doit pas être permisse larsqui elle compromet la liberté politique30 (Robespierre jeune, “Históire Parlamentaire de la Révolution Française”, par Buchez et Raux, tamo 28, pag. 159). “Isto significa que o direito humano à liberdade deixa de ser um direito ao colidir com a vida política, ao passo que, teoricamente, a vida política é tão somente à garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem individual, devendo, portanto, abandonar-se a estes direitos com a mesma rapidez com que se contradiz em sua finalidade” (Ibidem, 46-7).

Como podemos ver, nas constituições burguesas admitem-se casos em que a liberdade de imprensa se confronta com a liberdade política. Para Marx, isto é absurdo. Marx vê, nesta controvérsia, uma falta de discernimento entre meio e fim. Ele defende a idéia de que a liberdade de imprensa deve ser total, mesmo nos casos em que haja violação da liberdade política. Isto, porque a liberdade política não é um fim, mas um meio pelo qual a sociedade civil faz valer seus direitos. Esta contradição só pode ser definitivamente superada com a abolição do Estado.

... o homem não se libertou da religião, obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve liberdade industrial” (MARX, 1991, 50).

Marx, acima, não apenas caracteriza o tipo de liberdade que encontramos na sociedade burguesa, mas ainda deixa claro que ela está muito longe de uma emancipação total. O comunismo seria o projeto econômico-político-social que levaria a cabo esta tarefa de organizar a coletividade de tal modo que todos os indivíduos desfrutarem da mesma e plena liberdade. É evidente que, no comunismo, a liberdade estaria colocada dentro de uma perspectiva comunitária.

A Questão Judaica é uma obra profundamente filosófica, complexa e escrita num alto grau de generalidade. Se quiséssemos comentar todas as passagens que tocam a questão da liberdade, teríamos que escrever uma tese de doutorado ou um tratado.  Nosso objetivo foi dar uma visão de conjunto da obra e pensamos ter alcançado esta meta.

 

1.4.5 O Conceito de Alienação e a Questão da Liberdade

 

            Em 1844 Marx escreveu os Manuscritos Econômico-Filosóficos que seriam publicados apenas em 1932. O opúsculo pode ser resumido da seguinte forma:

 

O primeiro, de vinte e sete páginas, consiste sobretudo de excertos de economistas clássicos sobre salário, lucro e renda seguido de  reflexões do próprio Marx sobre trabalho alienado. O segundo é um fragmento de quatro páginas sobre a relação entre capital e trabalho. O terceiro conta de quarenta e cinco páginas e compreende uma discussão sobre propriedade privada, trabalho e comunismo; uma crítica da dialética de Hegel; uma seção sobre produção e divisão do trabalho e uma seção curta sobre dinheiro. O quarto manuscrito, de quatro páginas é um sumário do capítulo final da Fenomenologia de Hegel (MCLELLAN, 1990, 120).

 

            “O quarto e último manuscrito, o qual jamais foi traduzido  para o português, consta de somente uma folha dupla onde se encontra um resumo do capítulo final da Fenomenologia do Espírito. As partes principais deste manuscrito foram utilizadas pelo próprio Marx na quarta seção do terceiro manuscrito” (OLIVEIRA, 1993, 81).

            Marx procura mostrar que o estado de miséria, de pobreza material e espiritual, decorre da má organização da sociedade. A produção, no capitalismo, é dissociada da apropriação. A primeira é social e, a última, privada. O ser do homem se materializa no produto que ele cria. Para que o homem possa resgatar a si mesmo é preciso, portanto, que ele se reaproprie daquilo que criou. Ora, não é isto o que acontece no modo capitalista de produção. O trabalhador não se apropria de sua criação laboral e, consequentemente, quanto mais produz, mais alienado ele se torna, quanto mais ele cria riqueza, menos ele tem. O trabalhador empobrece o seu ser na mesma medida em que desenvolve a produção e enriquece o capitalista. Sobre as terríveis condições de existência da classe trabalhadora, Marx reflete:

Todas essas conseqüências decorrem do fato de o trabalhador ser relacionado com o produto de seu trabalho como com um objeto alienado. Pois está claro que, baseado nesta premissa, quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menor ele se pertence a si próprio. Quanto mais de si mesmo o homem atribui a Deus, tanto menos lhe resta. O trabalhador põe a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais lhe pertence, porém ao objeto. Quanto maior for a sua atividade, portanto, tanto menos ele possuirá. O que está incorporado no produto de seu trabalho não mais é dele mesmo. Quanto mais for o produto de seu trabalho, por conseguinte, tanto mais ele minguará. A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que se lhe põe como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil (MARX, 1970,  91).

 

            O conceito chave dos Manuscritos de Paris, como vemos, é alienação. O que tem a ver a questão da alienação com a da liberdade humana? É que quanto mais alienado o indivíduo, tanto menos livre ele é. Isto porque a alienação é a negação da consciência humana. Se não há consciência, segundo Marx, não há liberdade. “... tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da  natureza” (Ibidem, 92). Toda alienação é alienação de alguma coisa. O que é que o trabalhador aliena? O seu próprio ser. O ter é o ser alienado. Ser, numa perspectiva marxiana, equivale a ser livre. Logo, o homem, ao alienar seu ser, está alienando sua liberdade. Ou seja, quanto mais alienado o homem, menos livre ele é. Neste sentido, é importante que tomemos conhecimento dos quatro níveis de alienação identificados por Marx, para que possamos refletir sobre os quatro graus da escravidão ou não-liberdade humana.

            “Ao iniciar o caminho de penetração na estrutura material econômica, Marx aprende o que se poderia chamar de um primeiro nível de alienação a saber: do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho” (OLIVEIRA, 1997, 85). Hei-lo:

 

A alienação do trabalhador em seu objeto é expressa da maneira seguinte, nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseira e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tão menos (certamente houve um error de impressão, o termo correto seria mais) bárbaro  o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais inteligente revela o trabalho, tanto mais o trabalhador deixa inteligência e se torna um escravo da natureza (grifo nosso) (MARX, 1970,  92).

 

            No primeiro nível de alienação do trabalhador, o produto de seu trabalho é transformar em algo aleatório, já no segundo nível, isto acontece com a atividade de trabalhar:<


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