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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Em Busca das Teclas Pretas Cap III e V

Quarta, 20 de março de 2019


(continuação)

III

Claro que isso não fazia sentido.

Claro que nenhum dos dois sabia que diabo poderia ou deveria ser feito, ou o que estava realmente acontecendo.

Não sabiam de nada a não ser que talvez ambos estivessem se agarrando a um mundo que já não existia mais.

Olhou a moça fixamente, mas como se buscasse um apoio que nunca tivera.

Ele, logo ele, que se dispusera a dar o tal apoio.

— Meu pai dizia que viver com arrependimentos é como dirigir um carro que só anda em marcha à ré. 

Sorriu de leve. Então continuou:

— Ele teve um câncer alguns anos atrás. Tentamos trata-lo, mas era como tentar baldear um oceano com uma colher de chá. Ele morreu há oito meses.

Sua voz tremeu, mas conseguiu terminar a frase.

— Sinto muito – disse a moça, consternada

Ele riu, um pouco tenso, como que se envergonhado da confidência.

— Nem sei por que estou lhe contando isso...

Mas continuou:

— Sempre achei mais fácil não dizer nada a respeito. Agora fico na dúvida de se o verdadeiro fardo não foi, o tempo inteiro, meu silêncio. Para comigo mesmo, sabe?

A moça se virou de lado, baixou a cabeça e arqueou uma sobrancelha,

repuxando para cima um canto da boca, com aquela expressão que as mulheres fazem quando não acreditam numa só palavra do que a gente diz.

Ele não se deu por vencido.

— Eu comecei a aprender a usar o humor para afastar a dor. Já vira outras pessoas fazerem isso. Em geral alguma coisa no passado lhes causara uma ferida afetiva, e elas usavam o humor ou o sarcasmo para mascará-la. Para não pensar no assunto.

Ponderou, por alguns instantes.

— Achei que aprendera que quando o pior é uma possibilidade, é bom mantê-lo em perspectiva. Sem que a gente se esconda dele. Sem fugir. Ele pode acontecer. E, se e quando acontecer, é melhor ter pensado nele de antemão. Desse jeito, a pessoa não é esmigalhada quando o pior se torna realidade.

— Sei... – admitiu a moça.

– Quando se parte o coração... ele não volta simplesmente a crescer. Não é como se fosse uma cauda de lagartixa. É mais parecido com um enorme vitral que se estilhaça em milhões de pedaços, e não volta a colar. Os corações estilhaçados não se emendam nem saram. Não funcionam desse jeito. Talvez eu esteja lhe dizendo uma coisa que você já sabe. Talvez não. Só sei que, quando a metade morre, a coisa inteira permanece em dor. Por isso, você fica com o dobro da dor e metade de todo o resto. Pode passar o resto da vida tentando remendar o vitral, mas não adianta. Não há nada capaz de juntar os pedaços. Consegue entender isso?

– Sim, um passo de cada vez...

Ela a olhou com seriedade. Então perguntou:

– E por quanto tempo você acha que consegue manter isso?

– Por quanto tempo for necessário – ele respondeu.

– E se você não aguentar?

– Eu aguento. Ou, pelo menos, pensava que aguentava...

– Mas como você sabe? Realmente?

– E qual é a minha alternativa?

A moça o olhou com mais respeito. Então, surpreendentemente, admitiu:

– Eu gostaria de poder olhá-lo nos olhos sem esconder nada. Porque esconder coisas dói, pode acreditar. Eu não vou lhe contar nada, não confio em você, não confio em ninguém, eu perdoo fácil demais...

Ele riu, o que os aproximou ainda mais, de uma certa maneira inexplicável.

– Mas isso eu já sabia, sua vida está toda em seu rosto. Basta saber ver. Mas, para isso ter um fim, você precisa ir até o fim. Senão irá andar como um fantasma o resto de sua vida. Temos de olhar para situações muito ruins e encontrar um jeito de melhorá-las. Todo dia é uma partida de xadrez. Nós contra o mal. Alguns dias, vencemos. Em outros, não.

Girou a mão num gesto largo.

– E fazemos tudo isso por causa de uma só palavra: esperança. Ela corre nas nossas veias. É o que nos alimenta. É só o que pode nos salvar...

A moça o olhou dolorosamente e completou:

– É... mas a vida é um lugar difícil. Acaba depressa com a esperança. O que resta? É só ir pondo um pé adiante do outro...

O olhar do moço se perdeu ao longe, o sol matizando tudo de dourado.

– É o nascer ou o pôr do sol? Já nem sei mais...

A moça ergueu o rosto e fechou os olhos.

– Acho que isso só depende dos olhos de quem vê...

– É...

(“ – As linhas paralelas se encontram no infinito”.)

 

IV

– Posso sentar a seu lado, moça?

Houve um momento de silêncio e indecisão, por parte dela.

– Não perto demais...

– Não se preocupe. Mas... já falei demais de mim, fale-me agora um pouco de você. Por favor...

– Não chegue perto demais...

– Não chegarei.

Riu, mas aproximou-se e sentou bem ao lado dela. Lentamente, com suavidade, colocou o braço por sobre seus ombros trêmulos.

– Acha que esta é a melhor solução? – perguntou enfim, com delicadeza.

– Já me questionei demais... – respondeu ela, evasiva, como se temendo enfrentar ou dividir a realidade a que se dispusera.

– Sabe... o que quer que você tenha passado, é sempre possível se redimir. Digo, o que poderia ter sido tão ruim? Sei que são só palavras...

Seu murmúrio foi baixo:

– Paus e pedras podem quebrar ossos, mas, se você quiser ferir alguém...

ferir de verdade... bem fundo... use palavras. Mas, por que está fazendo isso?

– Tenho minhas razões.

– Um dia desses, se eu as soubesse, você teria que me ajudar a entendê-las, porque elas não fazem o menor sentido...

– Depende.

– Do quê?

– De você olhar para isso pelos meus olhos ou pelos seus. Senão acabamos esperando por um conto de fadas que nunca se realizará.

Olhou-a de uma maneira indecisa entre ser sincero e maroto ao mesmo tempo. Com a outra mão afastou uma mecha de cabelos que teimavam em cair sobre o rosto da moça.

– Você tem uns fios grisalhos aqui...

– O tempo faz isso. Junto com...

– Com quê?

– Com as curvas do caminho.

Calaram-se durante algum tempo, uma ligação profunda se formara inexplicavelmente entre eles. E nenhum deles queria estragar aquele momento mágico.

O moço apontou para a via férrea.

– As pessoas dizem que quando você fica no centro daquelas linhas,

você obtém respostas para perguntas que nem sabia que tinha.

– E o que você teve de respostas? – perguntou a moça.

Ele se tornou pensativo, sopesando devidamente o que iria dizer. Então, foi franco, não era momento para subterfúgios.

– Gostaria de poder dizer que, sim, agora eu entendo. Quando alguém que amamos morre, parece com o buraco na gengiva quando um dente cai. A gente pode mastigar, comer, há dentes de sobra, mas a língua continua voltando para aquele lugar vazio, onde todos os nervos ainda estão um pouco à mostra.

Ela teve que rir com a colocação.

– Mas que maneira tão indireta de dizer coisas tão diretas...

– É... mas, sabe? Por um segundo de insanidade, fico feliz por estar aqui...

– Por que?

– É comum que as pessoas me subestimem, e essa é uma das coisas que mais me agradam.

Uma sombra toldou o rosto da moça, ele temeu ter dito alguma coisa errada, muito errada.

– Então eu o estou subestimando? E o que estou perdendo com isso? Vá embora... Ou...

– Ou?...

– Ou então pule junto comigo. Tem coragem? 

Apesar de tudo, sua voz era repleta de ternura. Era doloroso ouvi-la. O que dizer exatamente – ou apropriadamente – numa situação destas?

Ele a fitou, consternado.

– Coragem?... Vontade?...

– Motivos? – desafiou ela.

Alguma coisa passou rapidamente por seu rosto, alguma coisa um pouco irônica, um pouco triste. Foi tão rápido, que ele não o soube precisar.

– E não há outro caminho? – perguntou, enfim.

Ela riu. Um riso sinistro, estrangulado, nervoso.

– Só me restou o caminho da via férrea... Como foi mesmo que você disse? O caminho de seu piano só de teclas brancas?

Ele não teve o que responder. Calou-se, visivelmente confuso. Então, como se pisasse descalço nos cacos de vidro do que havia sido seu coração, respondeu:

– Quem sabe?...

– Não sabe?... O que está fazendo aqui? Só parou porque viu uma idiota em perigo? – perguntou, sarcástica.

Ele foi sincero:

– E eu sei?... Acredita que eu também estava procurando o derradeiro caminho do meu piano só de teclas brancas?

– Derradeiro??? Você também???...

– Essas coisas acontecem. Cansei de ouvir me dizerem que precisamos continuar vivendo, apesar de tudo. Mas, vale a pena?

A moça o olhou com empatia, solidária.

– Eu compreendo... Nem sempre, não é mesmo?...

– É... nem sempre. Senão não estaríamos os dois aqui numa conversa boba, protelando o inevitável.

Ela fitou o abismo onde as teclas brancas começavam a esmaecer com o anoitecer que chegava.

– É... Como a vida é engraçada, na falta de uma palavra melhor... Não sou filosófica como você, mas minha vida sempre foi como um sanduíche de lanchonete. Oficialmente o sanduíche seria de frango com recheio, mas o gosto sempre foi praticamente só o da embalagem de plástico...

Foi a vez dele rir.

– Como foi mesmo que você disse a meu respeito?

Pensou por um momento, um sorriso maroto bailando em seus lábios (apesar de tudo), a moça calada, aguardando. Então ele concluiu, imitando sua voz:

– “Mas que maneira tão indireta de dizer coisas tão diretas...”

Ela teve que rir.

– Ah... não brinque comigo... não faça pouco de mim...

– Não estou fazendo pouco de você... De repente, talvez, eu esteja falando de mim mesmo. Sabe, acredito que, nos bastidores da vida, nós cuidamos dos nossos assuntos à nossa própria e muito misteriosa maneira.

– Não sei bem o que você quer dizer com isso... Você parece ser uma boa pessoa...

Ele a olhou de uma maneira incisiva.

– Pareço?... Pessoa boa, ou estarei só sendo gentil com uma possível companheira de viagem?

– Talvez os dois? – provocou ela. - Ouvi dizer uma vez que os animais sabem, pelo olfato, se uma pessoa é gentil ou não. Imagino que seja um cheiro de flores, talvez de lavanda ou alfazema. Mas não de rosas, porque até os animais sabem que as rosas têm espinhos.

Foi a vez dele se confessar aturdido.

– Então já percebeu os meus espinhos...

– Não... não foi bem isso que eu quis dizer... Você tem espinhos... na alma.

Isso significa que pessoas quietas com frequência escondem uma natureza profunda.

“ – As linhas paralelas se encontram no infinito” – pensou ele.

 

 

V

Fez-se um súbito silêncio entre os dois, como se cada um avaliasse a sinceridade dos pensamentos do outro. Ou dos próprios. A moça foi a primeira a falar, como se o fizesse mais para si mesma.

– Tinha certeza absoluta de que a escuridão podia ser derrotada pela esperança, e isso agora me dá vontade de chorar. Não sei o que fazer agora que ela não está aqui, cantando para embalar meu sono, minha vida, transformando tempestades em brincadeiras...

O moço concordou. Confidenciou, por sua vez:

– Minha mãe sempre repreendia uma de minhas irmãs quando ela colhia flores, mas minha irmã as colhia mesmo assim. Ela as guardava entre as páginas do livro de receitas mais grosso da mamãe, até ficarem tão finas quanto papel de seda, Depois as emoldurava e colocava em cima da sua cama. Para ser sempre primavera.

A voz da moça se estrangulou num soluço doloroso.

– Sei... Para ser sempre primavera em sua vida...

– É... para que sua vida (e as nossas) fosse sempre cheia de flores.

– Uma vida bonita...

– Feliz...

Calaram-se, como se ambos imersos em lembranças que não deviam serem lembradas.

– E ela conseguia?... – murmurou a moça, como se temendo fazer a pergunta.

– Para ser sincero, não sei... Ela era especialista em aparentar o que não era... Talvez...

– É... tudo foi perfeito... até desmoronar...

Ele ficou na dúvida. A moça estava se referindo à sua irmã ou a si mesma?

– Nunca conhecemos bem as pessoas. Às vezes, nem mesmo as da família.

As pessoas só mostram o que querem que você veja...

– Nem sempre temos uma segunda chance. E quem nesse mundo recebe uma segunda chance? – indagou a moça, reflexiva.

— É! Mas... a vida deveria ser mais que isso — argumentou. — A vida

deveria ser mais que isso.

Ela sorriu, bondosamente, como se o querendo consolar.

— Deveria... mas não é para todos. Você sabe disso. Nada é para sempre.

A voz dele soou sofrida, estrangulada, evitou olhar para a moça.

— Mas eu acreditava que havia dois tipos de para sempre. O tipo bom. E o tipo ruim. Mas aprendi cedo que o tipo bom de para sempre era, bem, uma mentira. Esse tipo de para sempre, literal e metaforicamente, acabava em chamas, porque não importava com quanta força você tentasse segurar, esse tipo de para sempre escorria entre os dedos.

O tipo ruim de para sempre permanecia, como uma sombra ou um

fantasma. Independentemente de qualquer coisa. Ele ficava, sempre ao fundo.

Ela se apiedou, talvez também de si própria.

— Nada é para sempre... mas algumas coisas, algumas cicatrizes, são profundas demais para desaparecer.

Ele lhe lançou um olhar de... desesperança absoluta. O tipo de olhar que dizia que ninguém esperava que nada mudasse. Então disse:

— Nós todos acreditamos ter a garantia de que as coisas que amamos vão durar para sempre. Mas o problema do para sempre é que ele realmente não existe. Os sinais estavam todos lá. Eu os havia notado, mas não sabia quão profundas eram as minhas cicatrizes...

A voz da moça soou consoladora, como se isso fosse possível.

— Você não tinha como saber. É algo que não ficamos falando. Muitas vezes, nem para nós mesmos.

— É... mas elas me mostraram quem eu nunca queria ser...

Ele sentiu um tremor percorrer seu corpo quando se deu conta que a moça estremeceu sob seu abraço e se desfez em soluços dolorosos. E a segurou mais apertado quando ela desmoronou, e tudo o que ela aguentou por anos se estilhaçou novamente. Segurou-a por muito, muito tempo. Agora era ele quem estava juntando os cacos da moça.

O passado nunca ia embora e não foi projetado para isso. Estaria sempre lá e sempre estaria voltando.

— Deveria ser sempre um coração batendo e a esperança no amanhã – disse, mais para si mesmo.

Por um momento quis inclui-la em suas orações, sobretudo para que ambos suportassem o barco da vida que às vezes quer virar nas horas de tempestade.

Não se lembrou de nenhuma.

Como o profeta(?) bíblico, ergueu os olhos também marejados para o céu agora tão escuro:

“— Deus, onde estás que não me respondes?”

Atravessara a vida com um piano só de teclas brancas, uma sacola com poucos pertences e o peso incomensurável de uma angústia infinita.

Muitas vezes, quando caminhava sem destino, muitas vezes se virara para olhar para trás. Tinha a impressão, em certos momentos, de que vivia num mundo à parte, totalmente particular e indivisível, só dele, só dele, de ninguém mais.

De alguma forma impossível, tentava manipular os fatos. Como se fosse um cientista louco, mantinha seu sofrimento no escuro. Congelara-o, ressecara-o ao máximo, e ele simplesmente não morria. Quando muito, ficava entorpecido, aguardando pacientemente que ele se descuidasse.

Não sabia qual seria o seu futuro, se é que tinha um.

Sabia que, quando você está destruído emocionalmente, você corre. Mas nem sempre você foge de algo. Às vezes, desamparado, você corre em direção a algo.

Pelo menos, assim achamos.

Ou esperamos.

Considerava-se uma espécie de monstro. Muitos seriam monstros porque tinham algo a menos. Ele era um monstro porque tinha algo a mais. Mágoa demais. Raiva demais.

Não se importava.

Pelo jeito, só os monstros sabem que existem mundos e mais mundos e

mais mundos, e o nosso é apenas um deles.



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