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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido XXXII e XXXIII



(continuação)

XXXII

Os anos inevitavelmente foram passando.

Gabriel começou a ter consciência disso e a se preocupar com o futuro do Flamboyant Florido. Quanto tempo teria até chegar o momento de atravessar a Ponte do Arco-Íris? Quem poderia – ou deveria – ficar em seu lugar, para que o legado do músico negro continuasse como deveria ser?

Aquele sonho que ajudara a sonhar, sabia-o ele, no mais profundo de seu coração, não poderia nunca terminar, nunca deveria haver um despertar amargo. Pessoas demais agora precisavam dele, faziam parte indissolúvel daquele sonho tão bonito.

Um dia viu-se guardião de seu próprio tormento, era mais um homem perturbado, perdido em delírios temores.

Fez menção de abrir a caixa de remédios e se deteve. Viu uma pessoa bem diferente do outro lado do espelho onde se olhava a cada manhã. Quando isso tinha acontecido? Não eram o cabelo grisalho nem os olhos cansados. Aparentemente, continuava mais ou menos o mesmo. Era algo pior, uma sensação de que o tempo se esgotava.

Começou a confidenciar seus medos a Sophia.

- Você, Sophia, não poderia ficar em meu lugar? – perguntou-lhe um dia, com cuidado.

Ela riu, mas sem conseguir esconder uma expressão preocupada.

- Que foi isso, Gabriel?

Ele pensou, por uns instantes. E foi franco na resposta:

- Não sei bem, Sophia. Só sinto que meu tempo aqui está acabando.

Lembrou-se das palavras do músico negro, há muito tempo atrás: “- Está na minha hora de seguir em frente, já cumpri meu destino aqui. Meus desígnios...”. Então continuou:

- Não que eu tenha medo de morrer, Sophia. Como você me disse algumas vezes,”- Morrer é uma palavra muito forte. E também muito inexata. Acha que um dos nossos seria capaz de fazer alguma coisa assim tão... tão prosaica?”.

- E por que não tem medo, Gabriel? – perguntou com suavidade.

- Agora não tenho mais medo, Sophia. Há gente demais me esperando do outro lado da ponte do Arco-Íris. Gente boa demais... para que eu tenha medo. Sei que serei bem recebido, sei que não estarei sozinho, por que ter medo?

- Então, filho, o que o está preocupando?

Fez um gesto vago, mas compreensível por ela.

- Não posso permitir que este sonho acabe, Sophia.

Ela segurou as mãos dele.

- Não se preocupe com isso, meu filho. Aqui é uma cidade mágica, lembra-se? Na hora certa, a pessoa certa surgirá para que este sonho não acabe. Nem esmoreça. Estou lhe falando de coração para coração.

- Você...

- Não, Gabriel, eu não. Não que não o queira, querido, mas meus desígnios aqui em Redenção são outros. Acho. Não vamos nos preocupar com isso. Como disse, no momento certo, a pessoa certa chegará.

- Tomara, Sophia, tomara... Mas este é outro de meus medos. Admito que não poderá ser outro Gabriel, tive que aprender muito para chegar ao ponto de compreensão onde estou agora. E nossos velhinhos, nossas crianças, não terão tempo para que ele aprenda, não poderão dar este tempo a ele, se for preciso.

- Não será preciso, Gabriel, tenha certeza disso. Quando este momento chegar, na hora certa, a pessoa certa chegará também. Trazendo talvez pouca bagagem de mão. Mas toda a bagagem de conhecimento necessária. Vamos dar tempo ao tempo.

- Isto é tão difícil... – murmurou. 

Gabriel não tinha consciência disso, mas olhava para Sophia quase que com desespero.

– Eu sei, querido. Mas a gente não precisa tornar as coisas mais difíceis do que elas precisam ser, não é mesmo? Vamos dar tempo ao tempo.

Pela primeira vez ele sorriu.

- Tem razão.

Sophia o olhou silenciosamente com ternura.

- O que eu gostaria de lhe dizer, Gabriel (mas isto você terá de descobrir sozinho) é que, neste sonho, você salvou pessoas. Mas também irá machucá-las quando chegar seu momento de atravessar a ponte do Arco-Íris. E essas pessoas serão as mesmas. As pessoas que você ama. As pessoas que passaram a amar você – pensou ela, sem externar as palavras. Então sorriu, quase que para ocultar os próprios sentimentos.

- Mas vamos continuar a tomar o nosso chá, ele está esfriando...

Olhou-o cuidadosa, avaliativa. Gostou do que viu. Aquele moço confuso que um dia entrara em sua loja e em sua vida... Decidiu-se.

- Gabriel... – começou ela. – Nunca lhe falei de mim. Está disposto a ouvir uma velhinha tola contar um pouco de sua vida?

- Oh, Sophia... precisa perguntar isso, precisa?

Ela segurou outra vez as mãos dele, numa doce aproximação.

- Quando aqui cheguei (quando para aqui também fui trazida – corrigiu-se), eu estava confusa como você. Também não tinha uma razão para minha vida, nada que a justificasse, nada que a fizesse valer a pena. Eu vinha de um casamento desfeito, de uma família desfeita, de uma vida desfeita... Pela vida, Gabriel.

Seu olhar se desfocalizou, como se olhasse profundamente em sua alma e seu coração. Gabriel percebeu que as lembranças eram dolorosas. De alguma forma inconcebível (ali era uma cidade mágica, lembra-se?), como se fosse um filme projetado apenas para os dois, começou a conhecer a história daquela velhinha tão doce.

Mesmo que em fragmentos.

 

XXXIII

Ela agora estava numa casa desconhecida para ele, numa cidade desconhecida para ele, numa vida desconhecida para ele.

Sophia, moça, conversava com uma menininha que ele também desconhecia.

- Ela é muito legal e gosta de você. Acho que vocês podiam ser amigas.

Então a menina sacudiu os ombros e espalmou as mãos como se dissesse: “- Será que é tão difícil assim?”.

– Você acha, né? Você acha, né? – Sophia retrucou, e começou a fazer cócegas nela até vê-la se contorcer de tanto gargalhar. Depois se voltou para a bancada e disse: “- Que tal um lanche bem gostoso antes de irmos dormir? Vá chamar seu irmão”.

Ela saiu correndo para buscar o irmão, derrapando no piso ao se deparar com ele já chegando à cozinha em seu pijaminha de corpo inteiro, com os cabelos espetados e arrastando um bichinho de pelúcia.

Então, agora, ajeitava as cobertas sobre cada um deles, deu um beijo no rosto de cada um, quase podendo enxergar asinhas em ambos, de tão angelicais que eles pareciam dormindo. Aquelas crianças eram a perfeita encarnação da ternura.

- Bons sonhos, meus anjos... – desejou com carinho.

Sozinha, esperando o sono chegar, lembrou-se daquele que havia sido seu marido. Olhou quase sem se dar conta para a fotografia sobre o criado mudo onde um moço a olhava e sorria embevecido, seu coração se confrangeu numa saudade dolorosa.

Afagou ternamente a foto, e lembrou que ao esbarrar um dia naquele moço e seus dois filhos (uma família já pronta e com uma vaga de mãe disponível) ela não havia pensado duas vezes.

Que motivos teria para duvidar de algo que era claramente um presente de Deus? Foi como se tivesse ganhado uma oportunidade de redenção.

Teve a impressão de ter vivido um conto de fadas, que bastava que não pensasse muito para que todos vivessem felizes para sempre.

Mas agora sabia que a mais genuína felicidade se mantém à tona por meio de uma tristeza subjacente. Todos nós chegamos a este mundo repetindo os gritos de nossos ancestrais, trazendo no sangue o DNA deles, mas também suas glórias e derrotas. A dor deles é a nossa, é a tristeza que abre caminho para dias de sol.

Mas agora sabia, também, de sua própria conivência e conveniência com esse hábito de filtrar a realidade, de dourar esta realidade em seus pontos mais sombrios.

Naquele instante, acreditou que havia algo maior, além daquele universo. Porque as crianças a estavam ajudando a encontrar e descobrir exatamente isso.

Era preciso acreditar que existe um amanhã.

Então se convenceu que era preciso dar a si própria a oportunidade de

conhecer este mundo estranhamente otimista no qual pode crescer uma criança a quem falta tudo, menos aquilo que continua a ser o motor do universo: a fé. E a esperança.

Com a morte inesperada do marido, percebeu que nada voltaria a ser como antes. E que, por acaso, se achava que já havia chegado ao fundo do poço, conscientizou-se naquele momento que o mergulho estava apenas começando.

- Vai dar tudo certo – pensou em voz alta, também sem firmeza. Sentiu o cansaço e o descrédito na própria voz. Afinal, o que havia para dar certo?

Olhou novamente a fotografia, o moço continuava com a sombra de um sorriso encorajador nos lábios.

 E parecia dizer para ela:

- Querida, a saudade é como um bolo, com o dobro de fermento, em uma forma minúscula, num forno de temperatura máxima. Mas você vai dar conta.

Foi a vez dela sorrir diante do reconhecimento da mentira que que os mortos vivem em seus silêncios. Eles se falavam tanto...

Afinal, em sua vida, ele fora um anjo com imensas asas que veio à Terra para dar vida a duas crianças e voar com todos eles para bem longe da Terra da Incerteza.

A menos, por algum tempo. Tempo curto demais – pensou, com uma ponta dilacerante de amargura.

Por algum tempo, até numa forma de defesa, deixa-se levar por aquela sensação de leveza que transmitem pessoas apaixonadas. Está no tom da voz, na troca de olhares, no jeito como se tocam. Não se pergunta tantas coisas...  Mas se pergunta como um amor pode nascer em meio a perdas, destruição e dor. E se manter por tanto tempo.

Ele salvou sua vida, mas ela, de certa forma, também salvou a dele, pelo menos por algum tempo. Mas, até onde sua fé alcançava, não entendia por que tantas coisas ruins precisavam acontecer juntas.

Ela só voltaria a ter orgulho de si mesma quando tirasse as crianças daquela solidão.

Pegou o quadro com a fotografia, pressionou-o delicadamente contra o coração. Depois o olhou mais de perto e lhe disse, reconhecida:

- Obrigada, querido, você deu um sentido à minha vida. Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro.

Sophia continuou a olhar a foto por um tempo longo demais, então aproximou os lábios e lhe deu um beijo e depois outro e mais outro.

Sorriu, mesmo que seus olhos lacrimejassem. Procurou não sorrir, viu-se vencida, tentar não sorrir só faz a gente sorrir mais ainda. Mais uma vez agradeceu:

- Obrigada, querido, você me revelou meu coração. E obrigada pelas crianças, que o fizeram crescer.



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