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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido XXXI

Quarta, 05 de dezembro de 2018

 

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(continuação)

 

Quando Gabriel chegou, encontrou Sophia com outra senhora. Foi apresentado com carinho:

- Yarin, este é Gabriel, meu amigo querido. É ele quem dirige o Flamboyant Florido.

Gabriel sorriu, ligeiramente embaraçado, como sempre ficava quando alguém o apresentava assim.

- Ah, não ligue para o que Sophia diz, ela é muito generosa, ela sempre me trata muito melhor que eu mereço.

Yarin sorriu.

- Sei. Gabriel o moço que prefere dizer que ajudou a sonhar um sonho.

Gabriel ficou ligeiramente ruborizado, as duas caíram na risada.

- Sophia, não acredito... um homem que fica ruborizado nos dias de hoje?

Aí Gabriel ficou escarlate, desejando que a terra abrisse aos seus pés para se esconder nela.

- Assim não vale, Sophia – protestou. Tentou desviar o assunto:

- Yarin... Nunca ouvi este nome antes. É de origem libanesa, ou alguma coisa assim?

-Digamos que “alguma coisa assim”, Gabriel – respondeu Yarin sorridente.

- Perdoe-me, não quis ser grosseiro com minha pergunta infeliz.

- Não se preocupe, você não foi.

Sophia foi buscar mais uma xícara, Gabriel foi integrado àquele chá da tarde. Então Sophia começou a explicar:

- Eu estava falando do Flamboyant Florido.

Foi a vez dele sorrir.

- Sei... e de mim...

- Se eu não o conhecesse bem, Gabriel, eu o chamaria de pretencioso – riu-se Sophia.

Gabriel se ruborizou outra vez.

- Acho que vou embora... hoje, decididamente, não é meu dia. Acho que só vou ouvir, recuso-me a falar mais uma simples palavra, que seja.

Sophia lhe deu um tapinha amistoso na mão, recebeu de volta uma expressão aliviada de gratidão que a obrigou a reprimir um riso.

- Ah, não se preocupe com isso, meu querido. Aqui só brincamos com as pessoas que gostamos. Só isso não lhe diz o quanto você é especial para mim?

- Obrigado, Sophia.

- De nada, meu querido. Mas disse isso por merecimento. Eu contava para minha amiga o ótimo trabalho que você está fazendo no Flamboyant Florido.

- Parabéns, Gabriel – disse Yarin. É um trabalho de mérito.

Ele avaliou, por um momento. Então respondeu:

- Obrigado, Yarin. Mas, sinceramente, acho que não há mérito algum no que faço. Acredito que não deve haver mérito numa coisa que fazemos até por não termos escolha. E eu não tenho escolha diante disso, é uma coisa que tenho que fazer. Não sei se Sophia chegou a lhe dizer isso, mas sou eu quem acabou ganhando. O Flamboyant Florido se tornou a razão da minha vida. Quando para aqui fui trazido – deu uma piscadela cúmplice para Sophia – em estava desesperado, sem razão alguma para continuar vivendo. Agora eu tenho. Eu mais recebi que ofertei. Mas continuem a conversa, se eu não for atrapalhar.

As duas sorriram. Então Sophia continuou.

- Nós duas falávamos de uma amiga comum, Gabriel. Amiga que eu não vejo há muito tempo. Por favor, continue, Yarin, depois eu conto a ele o que já falamos, caso julgue necessário.

Yarin tomou mais um gole do chá, depôs a xícara com delicadeza.

- Apesar de todo o sofrimento pelo qual passou ainda jovem em sua vida, Jasmine não perdeu a suavidade e a inocência. Havia tanto da mãe nela que tive de me segurar para não abraçá-la e enchê-la de beijos. Como sentia saudades de sua mãe. Eu sentia sua falta, ela havia sido a minha melhor amiga. Quando voltei à sua cidade, no ano seguinte, não estava mais lá. Nos reencontramos uma única vez, anos mais tarde, numa noite de Santo Antônio. Cada uma com seu namorado. Em meio à multidão que nos comprimia, à música que soava nas caixas, nos abraçamos, trocamos telefones, prometemos nos ligar. Jamais cumprimos a promessa...

Hesitou, por um rápido momento, como se não soubesse mais para onde dirigir a conversa. Gabriel a olhou discretamente. Viu aquela senhora com a pele bem branca, com manchas escuras da idade, com mais rugas de expressão do que do tempo. Intuiu que seus sentimentos haviam sido trancados em algum lugar que só ela conhecia.

- Quem sabe um dia encontraremos, para além do horizonte, todas as pessoas queridas, não é mesmo? – continuou, com um sorriso triste.

Gabriel se condoeu da profundidade da tristeza que aquelas palavras transmitiam.

Yarin continuou:

- Então me casei com meu namorado. Por três anos mergulhei de cabeça no mais profundo mar de felicidade. Que aumentou quando chegou nosso filho. Uma felicidade palpável, muitas vezes feita de barulho e outras tantas de suavidade: o cheirinho de leite que vinha dele quando apoiava a cabecinha em meu ombro, seus cabelos se enroscando em meus dedos quando eu fazia carinho nele. Quando lhe dava banho, o vapor no espelho embaçava minha própria imagem refletida nele, subtraindo as rugas como num efeito mágico, mas nem as ditas rugas eram motivo de preocupação. Só quem não ri não tem pés de galinha. E eu ria muito. Hoje, passados alguns anos, também sei disto: a mais verdadeira felicidade não pode ser assim, tão pura, tão profunda ou tão cega.

Pareceu perder-se na narrativa. Mas então continuou:

- Com o passar dos anos, minha criança passaria a sair toda manhã para a escola, cruzando a porta com suas pernas cada vez mais compridas para percorrer o caminho cada vez mais curto de sua infância. Tornou-se um mocinho rápido demais. E tornou-se um adulto mais rápido ainda.

Sua voz tremeu.

- Um dia chegou em casa transtornado. “- Que foi, filho?” – perguntei.

Balançou a cabeça e forçou o sorriso que não conseguiu. “- Não foi nada” – respondeu. Mas de repente tornou-se o adulto amargurado, forçado pela vida. De repente teve a consciência aterradora de que não havia como esconder aquilo. Então, com voz sumida, revelou: “- Papai... morreu. Um acidente...”.

O olhar de Yarin se perdeu em algum lugar do passado.

- Me levou até a funerária e ainda estava a meu lado quando uma mulher de cabelos grisalhos disse que meu marido não estava pronto para ser visto. Estranhei. Perguntei:  “-  Como assim, pronto?”. Uma risada estranha e estridente atropelou o nó que fechava minha garganta. Meu filho inclinou a cabeça, e disse, preocupado: “-  Mãe...”. Então voltei-me para ele e lhe disse, nem sei como: “- Ninguém nunca está pronto, filho”.

Então forçou-se a continuar:

- Ele me acompanhou até o necrotério. Meu marido estava desconsoladamente estirado sob um lençol branco. Passei a mão sob o lençol e toquei seu braço, gelado. Fiquei esperando que a qualquer instante ele retesasse aqueles músculos e começasse a rir, dizendo, como se fosse uma brincadeira de muito mau gosto: “Enganei você, querida?” Mas, em vez disso, quase pude ouvi-lo dizer: “Cuide-se bem, te amo”. Quase.

Deu um sorriso triste. Mesmo depois de tanto tempo, ainda doía. Gabriel se perguntou se pararia de doer um dia. Mas sabia a resposta.

- Então fomos para casa, enquanto eles preparavam o corpo. Voltaríamos quando ele estivesse pronto. Parecia um deboche, não é mesmo? Fomos para casa, minha sogra nos esperava, tão arrasada quanto nós. Tão logo me viu ela estendeu os braços e eu me joguei neles. Pois o marido dela, meu sogro, também havia morrido há alguns meses. Ela já havia passado por aquilo, sabia como era, mas certas coisas não foram feitas para serem ditas. E não havia palavras que me consolassem. Fiquei perambulando pela casa. Tudo o que eu via ali parecia me perfurar como a ponta de uma faca: os retratos de nós dois juntos, suas ferramentas, os trabalhos...

Então ela se calou e, vendo a expressão em seus olhos, Gabriel ficou se perguntando se ela estava falando da sogra ou de si mesma. Mas nunca perguntou. Parte dele não queria saber a resposta. E o chá, simplesmente, não descia. A angústia que ela transmitira havia armado sua barraca bem no meio do seu sistema digestivo.

Então Yarin sorriu, agora falava como se tudo tivesse sido fácil.

- Não que meu marido tenha sido um exemplo de homem. Mas não parece certo falar dos erros de uma pessoa quando ela está morta. Que os mortos fiquem com sua perfeição. É tudo o que eles têm. Porém, a vida tem seus trancos, mas o coração da gente só aguenta até certo ponto. Não tem nada mais triste do que uma família que vai se acabando aos poucos.

- Há uma linhagem de mulheres fortes - Sophia procurou consolá-la. - Vejo essa força em você também.

Ela sorriu, tristemente, vencida.

- Talvez eu não seja tão forte, Sophia. Acho que ninguém é.

Tomou distraidamente um gole de seu chá, agora gelado.

- Então o imaginei ajoelhado defronte a Deus em algum lugar de um universo paralelo e silenciosamente suplicando a Ele que já era hora de voltar para nós, que eu precisava dele, que o filho precisava dele.

Gabriel e Sophia a ouviam calados, nada havia que pudesse ser dito.

- Eu ainda esperava por algum tipo de intervenção divina que lhe dissesse: “Pare. Isto foi só um teste”. Como a história de Abraão. “- Mas fique tranquilo, o teste acabou. Pode voltar para casa, para sua mulher e seu filho”. Mas ele não voltou, não era um teste, Sophia, nossas preces não foram ouvidas nem atendidas, Gabriel.

(continua)



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