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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido cap XXX

Quarta, 21 de novembro de 2018


(continuação)

XXX

Sophia o esperava defronte a’O Relicário.

- Gabriel, hoje fomos convidados por uma amiga da Promotoria. Ela quer falar conosco.

Ele se arrepiou, por um momento visivelmente tenso.

- Mais uma Letícia em nossa vida, Sophia?

A outra sorriu, cônscia da enormidade do coração do moço.

-Não, meu querido, creio que não. Senão a conversa seria na Promotoria, não é mesmo? Será na casa dela.

- Mas, o que ele quereria conosco? Só uma questão de polidez?

O sorriso se ampliou no rosto daquela mulher que realmente sabia das coisas. Então respondeu misteriosamente, daquela forma que só ela tinha em responder tudo sem responder nada ao mesmo tempo, deixando que cada um encontrasse as próprias respostas:

- Quem sabe, Gabriel? Talvez seja ela, agora, quem precise de socorro.

Ajudou-a a descer do carro depois de passarem por ruas desertas, como só acontecia em Redenção. A amiga de Sophia os esperava com um expressivo sorriso de boas-vindas. Mas o canto de sua boca tremia.

Serviu um chá, conversaram amenidades, então ela pediu a Gabriel que falasse sobre o Flamboyant Florido. Gabriel fez um relato sucinto, mas rico, retratando os tipos humanos e sofrimentos com que se defrontava, sofrimentos que, pouco a pouco (agora o sabia) estavam sendo diluídos com o sentimento chamado esperança. Muitas vezes pincelados com um pouco de outro sentimento chamado felicidade.

Houve um silêncio momentâneo. Então ela começou a falar aos poucos, como se indecisa ao quanto falar, até onde poderia ou deveria ir, começou a contar, a confidenciar de si própria, de seus desencontros, de suas aflições, de seus medos, de suas frustrações.

- Eu passei a minha vida toda lá. E mesmo que outros só vejam a suja e imunda cidade, onde os ônibus quebram e a eletricidade não funciona, os nascidos em minha cidade veem além, veem a cidade de coração grande e generoso. E isso é o que a maioria das pessoas de fora não consegue ver.

Serviu mais um pouco de chá para os dois, depois os conduziu para as poltronas defronte as quais crepitava baixinho as chamas de uma lareira.

- Iria ser uma conversa longa – Gabriel o intuiu. Ela prosseguiu:

- Mas, por mais generosa que fosse, inevitavelmente ela tinha os seus problemas, as suas perversidades... O que esperar do chamado ser humano? Também fui do Conselho Tutelar da minha cidade, tão longe de nossa Redenção. Uma tarde fui até uma pequena casa de subúrbio, onde uma mãe surrava constantemente seus dois filhos. A mãe (poderia ser chamada assim?) estava presa e algemada numa viatura policial, o olhar vazio e inexpressivo de todo viciado em drogas. As crianças estavam dentro da casa imunda e tão desordenada quanto a vida delas.

- Destroçada... – murmurou Gabriel.

A anfitriã a olhou com empatia.

- Destroçada. Estavam agachados num canto, juntinhos um do outro e tão silenciosos quanto dois ratinhos. Eles eram a única coisa bonita naquela sala horrorosa, pensei. Eles pareciam tão subjugados, tão indefesos, que meu coração se partiu. Aquela mulher malvada quebrara os espíritos desses meninos. Como pisotear uma flor.

Gabriel e Sophia apenas ouviam. O que dizer que pudesse remediar toda aquela miséria?

Contou então das crianças abandonadas que ela ninava, dos bebês que banhava e vestia durante sua visita semanal ao abrigo, como trabalho adicional voluntário que seu coração a obrigava a fazer.

- Será que eu tinha alterado ou salvado uma única vida com meus esforços? Provavelmente não. Claro que havia trazido um pouco de conforto, um pouco de alegria para algumas daquelas crianças. Mas isso era tudo.

Lágrimas começaram a escorrer lentamente por suas faces, mas ela não se importou. Ou pareceu não se dar conta disso.

- Fui eu que saí ganhando, pois, a cada visita, apesar de tudo eu me sentia mais sábia e enriquecida ao sair. E essa é a questão: ao sair. Eu ia para casa e voltava à vida que tinha. E o mesmo aconteceria com esses meninos à minha frente, com as caras tristes como uma carteira perdida. A carteira não me pertencia, eu teria que devolvê-la ao dono legítimo, que não valia nada.

Um soluço incontido a fez estremecer. Ela continuou:

- Então cometi um erro. Misturei tudo. Deixei meu coração humano passar por cima dos procedimentos legais e funcionais. Pedi autorização ao promotor. Ele relutou muito para dá-la, talvez ele acreditasse que, quanto mais rápido se arranca um esparadrapo, menor a dor. Acontece que pessoas não são esparadrapos, Gabriel. Levei os dois para minha casa, para passar aquela noite comigo. Alimentei-os, dei-lhes carinho, ficamos até tarde deitados no tapete da sala, abraçados, vendo televisão. Ao menos, por algum tempo, eu pedia a Deus que eu conseguisse lhes mostrar que havia um outro lado na vida, um outro lado mais bonito, o lado certo.

Fez uma pausa, olhou atentamente para Gabriel e Sophia, como se buscando apoio, como se buscando uma palavra que lhe assegurasse que fizera a coisa certa.

- Mas tudo tem seu preço, não é mesmo? Tudo tem sua consequência. No outro dia eu teria que levá-los para a Promotoria, não tinha e não poderia ficar com eles para sempre. O maior agarrou o braço do irmãozinho. “ – Vamos,  vamos para casa”. O pequeno começou a chorar. “ -Não quero ir pra casa - ele soluçou. - Quero ficar aqui com essa senhora. Ela é boa”. Disse com sinceridade, e a inocência em sua voz rasgou meu coração.

Então sentiu, mais do que viu, que as palavras do menino haviam afetado Gabriel e Sophia da mesma maneira.

- Sim, eles lembrarão do dia em que foram tirados da mãe.

Então pareceu pensar melhor.

- Não. O dia em que alguém os defendeu. O dia em que alguém lhes deu amor e disse que o que estava acontecendo com eles não era certo. Mas isso, só isso, seria suficiente? Nós sabemos, eu sabia, eles sabiam, que não...  nunca seria...

Gabriel e Sophia se entreolharam. Tudo o que sentiam era uma pena sufocante pela mulher que lhes abria o coração, pelos meninos, por Letícia, por todos eles.

- Então, como não podia deixar de ser, como a Lei manda, tive que devolver as crianças para aquela escória humana. Abracei e beijei cada um deles, pensando em minha tristeza: “- Esses meninos são como uma flor, suas belezas e aromas enchem esta sala”. Olhei para a mãe, meus olhos lhe disseram tudo o que eu não podia dizer em palavras. Ela entendeu, baixou os olhos, evitando minhas verdades. Então empurrei gentilmente os dois meninos em sua direção, ela sequer os abraçou. Ergueu-se, olhando-me desafiante, como se me dissesse: “- Você não pode fazer nada, sua idiota”. E eu o sabia. E eu me sentia uma idiota...

Parou, enxugou enfim os olhos, mas as lágrimas eram teimosas.

- O maiorzinho olhou para a mãe, e seus olhos disseram o que ele não podia dizer: pediu-lhe perdão e disse que ela estava perdoada também. E se foram, Gabriel, e se foram e eu não podia fazer nada a não ser rezar e torcer por eles. Depois o promotor me telefonou para me dar os parabéns por ter resolvido aquele caso de maneira tão satisfatória. Satisfatória para quem, Gabriel? Para quem, Sophia? Parabéns pelo quê, quase lhe perguntei.

Gabriel e Sophia se entreolharam mais uma vez, calados.

- Eu havia descoberto que gostava deles, Gabriel. Apesar de tudo, havia algo aberto, sincero e confiável em seus rostos. E, também, eles conheciam a dor. Isso transparecia nos olhos deles, Gabriel. E isso acabava comigo...

Sophia segurou as mãos trêmulas dela. Mas a história ainda não havia terminado.

- Nos dias que se seguiram, eu queria, precisava, saber como eles estavam. Foi o que eles fizeram, Gabriel, eles adoçaram a minha vida com suas simples presenças. Queria saber como o maiorzinho estava, se os hematomas em seu rosto estavam desaparecendo, queria saber como o pequenino estava, se o seu coração estava cicatrizando...

A realidade era complexa. Ela continuou:

- Um dia, enfim, decidi por minha conta e risco que não poderia continuar assim indefinidamente. Peguei meu carro, fora de serviço, e fui até a casa deles. Surpreendentemente, a mão deles estava de cara limpa. Atendeu-me desajeitada, envergonhada, mesmo que não dissesse isso em palavras.

Os meninos ficaram alegres, me abraçaram, me beijaram, aquilo me rasgou por dentro. Então, quase suplicando, pedi permissão a ela, pedi que ela permitisse que eles passassem o final de semana comigo, na minha casa. Para minha surpresa, ela deixou. Talvez uma maneira um tanto tardia e desajeitada de me pedir perdão. Não... não para mim, para eles. Talvez, encontrar um jeito de se redimir.

Gabriel levantou-se, colocou mais algumas achas na lareira, sem saber bem ao certo quanto o que fazia. Ela sorriu, agora sob lembranças que eram tão doces.

- Tivemos um sábado maravilhoso. No domingo logo cedo eu me aproximei do quarto deles, perdida em pensamentos. Os meninos estavam falando de mim, Gabriel. Sobre o meu sanduíche de queijo, Deus os abençoe. Quase chorei. Isso é paz, pensei, a partilha de uma refeição com a uma família. Mas, mesmo assim, minhas mãos haviam tremido diante daquele reconhecimento que eu precisava tanto. Fiquei silenciosa ao lado da porta, dilacerada por mil sentimentos. Vergonha, esperança, confusão, dor, tudo flutuando por meu rosto, por minha alma.

Sorriu, mesmo que tenha sido um sorriso doloroso.

- Quando me viram, levantaram correndo, vieram me beijar e abraçar, nunca me senti tão feliz na vida... E ao mesmo tempo tão amargurada... Sabia que aquilo era apenas um paliativo. Temporário, curto demais. Dei-lhes um café radiante, depois os levei ao parque, demos miolo de pão para os patinhos no lago, depois os ajudei nos balanços...

Soluçou, mas se recompôs logo.

- Os filhos que nunca tive, Gabriel... Dali fomos dar um passeio de carro pela cidade, o pequenino voltou dormindo para casa. Para nossa casa, como eu gostaria de pensar. Mesmo que aquela mentira me apavorasse.

Então fui preparar o almoço, deixei-os vendo desenhos na televisão. Alimentei-os com comida e amor, muito amor. Acabamos de comer, eles se levantaram, estavam voltando para os desenhos da televisão que não tinham em casa. Chamei-os de volta: “- Esperem. Esquecemos a coisa mais importante”. “- O quê?”. “ –Sobremesa”. 

Sorriu. Podia-se jurar que ela estava com os dois diante de si.

“- O que você vai nos servir de sobremesa?”. “-Quem gosta de sorvete? E de pudim de leite condensado?”. “- Euuuuuu” – responderam os dois, ao mesmo tempo. Eles precisavam de amor, Gabriel, precisavam de mim, precisavam daquilo que apenas uma avó podia lhes dar. E eu precisava deles, Sophia, eu sabia que tinha amor suficiente para dar a todos eles. Aquilo me decidiu quanto ao que precisava ser feito. Pelo menos, eu iria tentar.

Ergueu-se, deu alguns passos incertos, voltou a se sentar.

- Então, no final da tarde, chegou a hora de ir embora. Foi como se o encantamento se desfizesse, Gabriel. Os dois se encolheram, ficaram mais pequeninos ainda. “- Vamos lá, animem-se. É um dia lindo demais para desperdiçar com tristeza”. Não consegui convencê-los, Gabriel. Nem a mim mesma. Mas eu sabia que tinha que devolvê-los. E eu sabia o que precisava ser feito.

Ajeitou os cabelos num gesto até inconsciente, mecânico.

- Levei os dois para casa, a mãe os recebeu com carinho, chegou a beijá-los e abraça-los na minha frente. Por que não poderia ser assim sempre, Gabriel? Por que não deveria ser assim sempre, Sophia? Tentei me manter fria e profissional, mas ela podia sentir o sorriso em minha voz.

Sophia procurou a mão de Gabriel, como se procurasse apoio. Ou como se o estivesse dando. Ou ambos, que o sabe?

- Deixei os dois contar à mãe o final de semana que tiveram comigo. Estavam ansiosos, felizes, mas podia-se perceber uma ponta imensa de tristeza na voz deles por eles saberem que os dias felizes comigo haviam acabado. Então pedi que eles fossem brincar um pouco lá fora, tive uma conversa séria com a mãe deles. Nada agressivo, nada ameaçador, mas ela ficou na defensiva o tempo todo, não a culpo.

Silenciou por alguns momentos, como se buscasse as palavras apropriadas.

- Expliquei-lhe o que queria, o que precisava ser feito. Então ela chorou, Gabriel. E havia agora algo no olhar dela que eu não vira antes. Era respeito. Por mim, Gabriel. Por mim. Mas parecia um jogo de gato e rato. Duas pessoas que mal se conheciam explorando o território alheio em busca de confiança. Mas cada um tem uma forma de lidar com suas dores.

E eu fiquei muitas vezes perdida em elucubrações entre aquilo em que queria acreditar, queria esperar, e o que é real. Uma coisa é saber que alguém esteve no inferno, outra coisa é conhecer este alguém.

Seu olhar se perdeu no vazio.

- E lá estava eu agora nas portas do inferno, sem saber se iria entrar ou se seria possível estar de volta. Eu me questionava: “-O que vou fazer? Como ela reagirá?”.  Foi neste turbilhão de suposições que fui puxada de volta à realidade.

O que ela queria dizer com aquilo? Para onde estava se dirigindo? Quase que incoerentemente, prosseguiu:

- Na dor, ou em qualquer outro sentimento... mas me fixo agora na dor, o ser humano é a sua própria medida. Não há grau de comparação. Assim como duas pessoas não ocupam o mesmo lugar ao mesmo tempo, é impossível sentir como o outro sente. E a gente sempre acaba achando que nossa dor é mais dolorida que a do outro.

Silenciou outra vez, coordenando os pensamentos desencontrados.

- Segurei as mãos dela, como uma mãe falando com uma filha. Ela quase as puxou, mas depois as deixou entre as minhas. “- Minha querida” - meu tom era suave, como se eu falasse com uma criança machucada que precisasse de pontos sem anestesia. “– Agora eu disse o que precisa ser feito. Pelo bem dos meninos. Voltarei amanhã, preciso que pense bem e me dê uma resposta”. Então me levantei, abracei e beijei os garotos, me despedi com o coração pequenininho. Apertei a mão dela, que me olhava com raiva e medo. Ambas sabíamos como cada uma de nós se sentia. Não era a perda de um bem material apenas.

- A dor da história de uma vida sendo espoliada é que escorria pelos olhos dela – sabia-o Gabriel. Ela seria muito bem vinda no Flamboyant Florido, com aquele grande coração que desmoronava diante deles.

- Gabriel, Sophia, eu tentei obriga-la a me entregar os filhos, a me dar a guarda deles. Aquilo a assustou. Quando voltei, no outro dia, a casa estava vazia, ela havia mudado e levado as crianças com ela. Nunca mais os vi, nunca mais soube deles. Muitas vezes eu pegava o carro e parava diante daquela casa, rezando para que eles tivessem voltado. Mas isso nunca aconteceu. Pedi demissão, vendi tudo o que tinha, peguei meu carro, a estrada sem destino...

Então ela quebrou, escondeu o rosto nas mãos, chorou inconsolavelmente.

(continua)



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