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Flamboyant Florido cap XXIV ao cap. XXV



(continuação)

XXIV

Estacionou o carro defronte a’O Relicário, Sophia o esperava na entrada, séria como ele nuca a vira. Preocupou-se. O que teria acontecido que tivesse o poder de tirar o costumeiro sorriso de seu rosto?

- O que foi, Sophia? – perguntou.

- Temos que ir à Promotoria, Gabriel. Eles estão com um problema muito sério lá e pediram nossa ajuda.

Caminharam sem dizer palavras até ao outro lado da praça, braços dados, como se fossem mãe e filho. Ou – como Gabriel gostava de pensar – como avó e neto.

Foram levados à presença do promotor, que explicou sucintamente o caso. Uma criança de seus três anos havia sido horrivelmente espancada pelo pai, que agora estava preso, a pequenina apreendida pelo Conselho Tutelar. Já havia perdido a mãe, não tinha parentes, restara-lhe o abrigo do carinho e amor que teria no Flamboyant Florido.

Gabriel pediu para ser conduzido até a menininha, que dormia numa das salas, embalada por uma funcionária.

No caminho passaram por outra sala aberta, o desnaturado pai (?) estava sentado, algemado. O promotor o mostrou e comentou, enojado:

- Este é o cretino que se sente o maioral quando faz uma garotinha chorar.

Mas isso, agora, acabou. Nunca mais ele voltará a colocar as mãos nela.

A porta foi fechada, seguiram em frente, Gabriel estava fervendo quando chegou onde a garotinha se encontrava. Mas conseguiu mostrar-se impassível.

A pequenina dormia um sono cheio de soluços e sobressaltos. Equimoses arroxeadas cobriam seu rostinho lindo e boa parte de seu corpinho, atestando o brutal castigo a que fora submetida. Mas (questionou-se Gabriel), o que dizer dos ferimentos em sua alma e coração?

Gabriel sentiu um instinto assassino que desconhecia em si aflorar quase que incontrolável. Respirou fundo, olhou-se distraidamente em um espelho.

- Quem é você? - perguntou ao seu reflexo. - O que quer? No que se tornou? No que está se tornando?

Sophia percebeu a intensidade de sua revolta, agarrou-o delicadamente pelo braço.

- Temos que manter os olhos, coração e sentimentos limpos para guiarmos nossos pequeninos na vida, Gabriel – disse-lhe ela com suavidade.

Ele voltou a respirar fundo, procurando sobrepujar a cólera que o consumia, aquela vontade irrefreável de fazer justiça com as próprias mãos.

Como se intuísse seus sentimentos, Sophia acrescentou:

- Esqueça isso, Gabriel. Não podemos mudar o que já foi feito, vamos deixar isso com o promotor. Mas podemos mudar o futuro desta criança, podemos fazer o que precisa ser feito. Ela é o importante, agora.

A funcionária ergueu e colocou a garotinha adormecida nos braços de Sophia, onde ela se aninhou, como se sentisse que estava abrigada, a salvo do outro lado da maldade humana.

Chegou a andar com a pequenina por alguns metros. Então, como se não pudesse mais fazer isso, pretextando uma fraqueza que não tinha, pediu a Gabriel que a levasse.

Ele a atendeu, a garotinha por um instante se enrijeceu em seu abraço, mas depois pareceu sentir novamente que estava segura, então relaxou e continuou a dormir.

Despediram-se do promotor, que cortesmente lhes ofereceu um café que foi recusado. O gosto, naquelas circunstâncias, seria demasiadamente amargo para os três.

Já fora do prédio, caminharam lentamente até o carro. Gabriel cuidando para não acordar a pequenina, viu-se diante da impossibilidade de leva-la sozinho até o Flamboyant Florido. Voltou-se para a senhora que olhava ambos com ternura, comovida com o cuidado com que ele conduzia sua agora preciosa menininha.

- Poderia ir conosco até o Flamboyant Florido, Sophia?

Mais palavras se tornaram desnecessárias. Gabriel abriu a porta, Sophia entrou, com amor e carinho ele depôs a menina em seus braços, que dormiu em todo o percurso.

No Flamboyant Florido, Gabriel ficou estarrecido quando a pegou dos braços de Sophia, que simplesmente sorria: não havia mais uma única marca do castigo que a criança sofrera e ela dormia profundamente e em paz.

- Credo, Sophia, se eu não a conhecesse como conheço, diria que isso é bruxaria...

Sophia alargou ainda mais o sorriso.

- Já lhe contaram alguma história de bruxa que fizesse o bem, Gabriel? Bruxas, consta, só fazem o mal, não é mesmo?

- Admito... mas isso é quase um milagre... não, é um verdadeiro milagre.

- Nunca se esqueça que aqui é uma cidade mágica, meu filho – lembrou ela.

A garotinha foi levada para um quarto e colocada numa cama macia e quentinha.

Então, outra bruxaria (?) aconteceu.

Margot, que raramente saía de seu quarto, estava na porta, olhando irresistivelmente interessada. Quando soube do que acontecera, surpreendentemente perguntou se poderia passar a noite com a menininha.

Aproximou-se o leito, afagou ternamente o rostinho adormecido. Foi um momento fugaz (seria tão fugaz assim?), mas Gabriel poderia jurar que uma luz enfim se acendera inexplicavelmente na vida escura daquela mulher.

Sophia enganchou o braço no dele, puxou-o com suavidade para fora do quarto.

- Vamos deixar as duas se conhecerem, Gabriel. Consegue sentir que uma precisa da outra?

Gabriel estava perplexo.

- Consigo, Sophia. Mas não sei dizer quem precisa mais de quem...

- Por enquanto... Esta é uma cidade mágica, meu filho. Mas, agora, por favor me leve para casa.

- Sophia, e os ferimentos?

Ela sorriu bondosamente.

- Os do corpo estão curados, Gabriel. Os da alma, dependem agora de você.

Voltaram a se encaminhar para o carro. Então Gabriel, que ficara silencioso, imerso em pensamentos desencontrados, perguntou:

- De mim? E de Margot?

- E de todos que puderem dar o amor que ela merece e precisa, Gabriel.

 

XXV

A pequena Letícia se recuperou rapidamente, sobretudo sentindo-se em segurança com o amor e carinho que recebia (mesmo não sabendo bem o que seria aquilo).

Outra que estava em plena recuperação, surpreendentemente, era Margot, que praticamente adotara a pequenina como sua. Tornara-se alegre, sensível, gentil, irreconhecível. Como bem dissera Sophia, uma estava ajudando a outra. Como bem dissera Gabriel, não se sabia quem precisava mais de quem.

Mas, o que importava isso? Detalhes...

Alguns dias apenas, e aquela criança já havia mudado sua vida.

Gabriel a arreliava, com bom humor (na realidade muito feliz com isso):

- Margot, acho que teremos que mudar seu nome para Dulce.

- Dulce, Gabriel? – rebatia ela. – Por que, isso agora?

Ele lhe fazia um carinho brincalhão, misturava seus cabelos, desmanchava o penteado, ela fingia protestar, mas se deliciando verdadeiramente com aquilo, ansiando pela mesma resposta repetida vezes e vezes sem conta:

- Porque você é um doce de pessoa, querida. E porque eu amo você por isso, pelo que você está fazendo pela nossa Letícia.

Uma noite ele parou diante da porta do quarto de Letícia, para onde Margot praticamente se mudara, ficaram os dois olhando ternamente a pequenina que dormia.

De súbito Margot começou a chorar, abraçou Gabriel, ele ficou embaraçado pelo inesperado.

- Mas... o que foi, Margot?

Ela soluçava. Gabriel esperou pacientemente a resposta que demorava.

- Sabe, Gabriel, devo estar ficando velha demais. Lembra-se da história que me contou? A do barbeiro?

Gabriel se fez de esquecido, queria ver até onde aquilo se tornara uma verdade, até onde aquilo a atingira.

- Não, Margot... acho que me esqueci... – abriu um sorriso de criança. – Não poderia conta-la para mim, para que eu me lembre?

Ela balançou o dedo indicador diante dele, como se fosse uma professora admoestando o aluno preguiçoso. Então, começou:

- Um dia um homem foi ao barbeiro. Enquanto seus cabelos eram cortados, conversava com ele. Falava da vida e de Deus. Daí a pouco, o barbeiro, incrédulo, não aguentou e lhe disse: “- Deixe disso, meu caro, Deus não existe”. “- Por quê?”. “- Se Deus existisse, não haveria tantos doentes, mendigos, pobres... Olhe à sua volta e veja quanta tristeza, tanta miséria. E só andar pelas ruas e ver”.

A voz de Margot começou a ficar um murmúrio, visivelmente emocionada.

- O freguês pagou o corte e ia saindo, quando avistou um maltrapilho imundo, com longos cabelos, barba desgrenhada, suja e abaixo do pescoço. Não aguentou, deu meia-volta e disse ao barbeiro: “- Sabe, não acredito em barbeiros”. “- Como assim?”. “- Se existissem barbeiros, não haveria pessoas de cabelos e barbas compridas”.

O outro riu de tanta ignorância.

“- Ora, existem tais pessoas porque evidentemente não vêm a mim, não vão ao barbeiro. Eu não tenho culpa”.

Então o homem retrucou:

“-  Ah... Agora entendi porque você não acredita em Deus”.

Lágrimas corriam pelo rosto de Margot. Gabriel a olhou com bondade, tirou seus óculos, enxugou sua face, segurou suas mãos trêmulas, só então perguntou:

- E?...

- E agora eu voltei a acreditar em Deus, Gabriel. E você me possibilitou isso. Ele Se me revelou quando me trouxe Letícia através de você.

Baixou os olhos, sem coragem de encará-lo. Então, depois de um momento de hesitação, perguntou com voz quase inaudível:

- Gabriel...  será que Deus colocou você no lugar do meu filho, para mim?

Foi a vez de Gabriel se emocionar. Apertou as mãos de Margot (agora a Dulce), simplesmente respondeu:

- Eu ficaria muito honrado com isso, Margot. Se assim puder me considerar...

Letícia rompeu o encantamento, começou a gritar em um pesadelo. As feridas da alma, como havia dito Sophia. Com a rapidez da juventude que Margot não tinha mais, Gabriel acudiu primeiro, tomou a pequenina nos braços, embalou-a, beijou seu rostinho lindo (mas tão sofrido), cantarolou, acalmou a menina.

Então ela abriu os olhinhos azuis, olhou confusa para Gabriel que a acalentava amorosamente, reconheceu-o, sabendo que estava protegida, estendeu seus bracinhos e se abraçou a ele.

- O que foi, querida? – perguntou ele, com suavidade e carinho.

Ela respondeu baixinho:

- Sonhei que meu pai estava me batendo de novo. E eu não tinha feito nada...

Gabriel se comoveu. Uma criança tão pequena... haveria alguma coisa na vida que justificasse um motivo para ser agredida?

Colocou-a novamente na cama, cobriu-a com o cobertor até o pescoço, sentou-se a seu lado, ficou afagando seu rostinho.

Escondeu a própria dor que estava sentindo, deu-lhe um sorriso, olhou-a com seriedade, as palavras surgiram fáceis, necessárias, consoladoras, talvez incompreendidas pela pouca idade que ela tinha:

- Agora você está num anel de fadas. E não irá sair dele, por nada deste mundo. Aqui nada de ruim poderá acontecer. Não importa o que sonhe, não importa o que lembre, você nunca mais estará sozinha. Agora você tem eu e a Margot para cuidar de você. É só ficar conosco, e tudo ficará bem. Para sempre.

- Promete, Gabriel?

- Mais que isso, querida. Eu juro.

Ela o olhou avaliativa, então sorriu, como só uma criança é capaz.

- Não é um anel de fadas de verdade - falou ela. - É só uma cama quentinha.

Gabriel torceu o nariz dela carinhosamente, brincalhão.

- Não, querida... ela é o que é – respondeu. - Nada que queira fazer mal a você pode entrar nela. Aí existe alguma coisa mágica que a torna muito mais importante que só uma cama quentinha.

Fez um carinho desajeitado no rosto da pequena.

- Sabe, querida, vou lhe contar um segredo meu. Quando eu tinha o seu tamanho, eu tinha medo de trovoada. E também fiquei sem minha mamãe quando era pequeno, e isso aumentava meu medo. Numa noite de trovoada  eu fiquei chorando, até que meu pai chegou e me pegou no colo. Foi ele que me contou que aquela cama quentinha era o meu anel de fada. E me contou, também, que minha mamãe fica de olho na nossa casa enquanto dormimos. Eu estava com muito medo e papai disse que o trovão era a gargalhada de vovô rindo de uma piada que Deus tinha contado. Depois disso, nunca mais tive medo de nada.

Respirou fundo. Como ter certeza de que Letícia seria capaz de entende tudo aquilo? E estava falando para ela, ou para si mesmo, tentando afastar os próprios temores? Deu-lhe mais um beijo, ajeitou a coberta.

- Agora, fique aí dentro e durma em paz. Está com fome? Quer alguma coisa?

A pequenina balançou a cabeça.

- Se quiser, peça à Margot que ela traz, combinado? Agora durma. E tenha sonhos bons, querida. (- Só bons - suplicou ele em sua mente).

Começou a caminhar para a porta, onde Margot o esperava. Parou no meio do caminho, uma vozinha baixa e sonolenta o deteve irresistivelmente:

- Gabriel... eu gosto de você...

Ele se sentiu morrer. Respirou fundo, voltou até ela, deu-lhe outro beijo na testa, e ainda conseguiu dizer, com voz embargada:

- Eu amo você também, querida. Durma com Papai do Céu e os anjinhos...

Parou ao lado de Margot, passou um dos braços por sobre seus ombros, inconfessadamente em busca de apoio. Ela o olhava, divertida.

- Você tem jeito com as crianças – parabenizou com sinceridade.

(- E com os adultos também – acrescentou secretamente).

Gabriel sorriu, sem jeito.

- Tomara... ela bem que precisa.

Margot o olhou fixamente, como se tentasse ver o que estava muito além das aparências.

 - Aposto que essa não é sua aparência de verdade – falou.

Ele desviou os olhos de Letícia e a encarou, surpreso.

- O que quer dizer com isso, Margot?

- Não me leve a mal, Gabriel, mas você parece viver atrás de uma fachada, parece que não quer que ninguém veja seus sentimentos.

Ele riu, lembrando-se do amigo saxofonista, quando dera um sorrisinho, como se tivesse sido pego no flagra. “- Sou tão transparente assim? Achei que disfarçava bem”.

Então deu de ombros.

- Ninguém realmente se parece por fora com o que é de fato por dentro.

Nem você. Nem eu. As pessoas são muito mais complicadas que isso. É assim com todo mundo.

- Mas você não é um monstro, Gabriel.

Inevitavelmente ele se lembrou do impulso assassino que sentira na Promotoria, quando quisera matar aquele infeliz.

- Talvez não - respondeu. – E Deus me ajude com isso. Mas existem monstros de todos os formatos e tamanhos. Alguns deles são coisas de que as pessoas têm medo. Alguns são coisas que se parecem com outras das quais as pessoas costumavam ter medo muito tempo atrás. Algumas vezes os monstros são coisas das quais as pessoas deveriam ter medo, mas não têm.

- Acha que as pessoas deveriam ter medo de você, Gabriel?

- Talvez sim, talvez não. Do que você acha que um desgraçado como o pai dela teria medo?

- Sei lá. Por que você pensa que ela teria medo de alguma coisa? Ele é

adulto, não é? Os adultos e os monstros não têm medo de nada.

- Ah, Margot, acredito que os monstros têm medo. E os adultos... 

Parou de falar, ficou pensativo por um momento. Então respondeu, amargurado:

- Vou dizer uma coisa importante para você. Os adultos também não se parecem com adultos por dentro. Por fora, são grandes e desatenciosos e sempre acham que sabem o que estão fazendo. Por dentro, eles se parecem com o que sempre foram. A verdade é que não existem adultos. Nenhum, no mundo inteirinho.

A vozinha de Letícia se fez ouvir, inesperada.

- Tirando a vovó Dulce, claro.

Gabriel teve que rir. Então disse, voz plena de carinho, mas comovida:

- Vá dormir, sua pirralha...

Sem tirar o braço dos ombros de Margot, encaminhou-se para a porta, onde também lhe deu um beijo na testa e disse, zombeteiro:

- Vovó Dulce, heim?

Ela o olhou com inocência fingida brilhando no rosto feliz.

- Não tenho a menor ideia do que você está falando, seu moço. Boa noite, querido.

- Isso é uma mentira, vovó Dulce, uma mentira tão descarada... Mas tão doce... Uma boa noite para você também.

Deu alguns passos, parou, voltou-se.

- Será que um dia ela irá superar isso, Margot?

Ela sorriu, bondosamente.

- Nunca é muito tempo, querido. A vida dá muitas voltas. Ninguém sabe.

(continua



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