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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido cap XVII ao cap. XIX



(continuação)

XVII

Um dia chegou ao Flamboyant Florido um casal de idosos. Alquebrados pela idade e pelas desilusões da vida: José e Maria.

Nada mais tinham, a não um ao outro, o amor de um pelo outro. E um imenso, indescritível, pavor pelo futuro.

Mais de oitenta anos cada um.

Podiam ser vistos a cada amanhecer (e entardecer, quando o sol estava mais fraco) caminhando lentamente de mãos dadas, um aparando o outro.

Emocionalmente, que fosse.

Para os que os olhassem com mais atenção e sensibilidade, pareceria (acertadamente) que naqueles momentos não existia mais ninguém no mundo, para eles.

Num daqueles entardecer pararam diante do lago, o oceano mágico e maravilhoso que existia no Flamboyant Florido.

Gabriel, sempre atento, aproximou-se devagar.  Não só para não sobressaltá-los, como também (ou principalmente?) para não quebrar aquela visão plena de ternura, os dois abraçadinhos como se fossem um só (e não o seriam?).

Parou ao lado do casal, próximo, mas sem invadir aquele amor tão bonito.

- É um lago bonito, não é mesmo? – perguntou com doçura, como se estivesse partilhando um tesouro muito valioso (e não era o que estava exatamente fazendo?).

Os dois o olharam, surpreendidos, haviam se desacostumado a serem convidados para uma conversa informal. Ambos sorriram, demonstrando um contentamento e um agradecimento que julgavam necessário.

- Ele é lindo – disse Maria, com sinceridade. – José me perguntava se ele tem muitos peixes. Sabe, ele já foi um grande pescador. E o senhor?

Ele riu, sem despegar os olhos das águas calmas.  Então, até um pouco envergonhado, confidenciou:

- Acho maravilhoso. Vou lhes contar um segredo meu: para mim não é só um lago. Ele é mágico. Ele é o meu oceano. Já viram o mar, alguma vez?

Foi a vez de Maria rir, deliciada.

- O senhor tem coração de criança – cumprimentou-o. – Muitos poucos, quase ninguém, o veria assim.

Ele se sentiu comovido.

- Acredita em mim? – perguntou baixinho, como se temendo a resposta.

- Sim, meu filho. Nesta idade, já somos capazes de ver as coisas como elas realmente são. E sentirmos as coisas que não conseguimos ver. Com o coração.

- Onde teria ouvido exatamente aquilo? – pensou, sem chegar a uma conclusão.

- Sabe, senhor...

Ele a interrompeu com doçura

- Que eu a chame de senhora, por sua idade, vá lá... Mas eu – acho – tenho idade para ser seu neto. Por favor, me chame de você. Ou de Gabriel.

- Mas o senhor é o dono do Flamboyant Florido. E, de certa maneira, acabou se tornando dono de nossas vidas. Merece respeito.

Gabriel sopesou por um momento a resposta mais apropriada.

- Dona Maria, acredito que existam muitas formas diferentes de respeito. Prefiro ser chamado de “moço”, com sinceridade, que “senhor”, por obrigação.

Ela riu.

- Então vamos ficar no meio termo – brincou. – Acho que prefiro chama-lo de filho. Posso?

Ele fez uma reverência brincalhona.

- Sinto-me honrado, dona Maria. E não sou dono da vida de ninguém. Acho que nem da minha mesmo...

Inesperadamente abaixou-se, colheu uma flor linda que parecia que ali estava por toda uma eternidade para ser especialmente colhida no momento apropriado, beijou-a e a estendeu para a senhora.

- Para a senhora. Para alicerçar para sempre o que combinamos hoje...

Sentiu os olhos marejados diante do sorriso lindo com que a senhora recebeu a flor.

Então, pela primeira vez, como se quisesse quebrar o encantamento que surgira, o ancião falou, pela primeira vez:

- E então, este lago – quer dizer, oceano – dá muito peixe?

Gabriel estendeu a mão, colocou-a afetuosamente sobre o ombro do velho.

- Muitos... Acho que só não tem baleias e tubarões. Pelo menos, ainda não vi nenhum deles. Mas é bom não facilitar, aqui é uma cidade mágica, não é mesmo? Ah, e temos também que tomar cuidado com os navios...

- Tem razão. Mas, é permitido pescar aqui?

- Sem dúvida. Aliás, não estou vendo nenhuma plaquinha de “é proibido pescar”.

O ancião riu.

- Não tem mesmo... Pergunto porque nunca vi ninguém pescando aqui.

- Ah, talvez não hajam outros pescadores...

- E o senhor, digo, você, já pescou aqui alguma vez?

- Nunca. Gostaria de fazê-lo?

- Sim, mas não tenho nem uma linha com anzol. Como pescar?

- Que tal irmos amanhã à cidade e comprarmos o que for preciso?

Por um instante o ancião o olhou consternado, o sorriso desapareceu de seus lábios (de onde nunca deveria ter saído).

- O que foi, “seo” José?

- Não tenho dinheiro, “seo” Gabriel – respondeu, com voz sumida.

Gabriel riu, e o riso transbordou por seus olhos..

- E quem falou em dinheiro? Isso eu tenho de sobra. De que serve dinheiro se não podemos fazer alguém feliz com ele?

A mão de Gabriel continuava sobre o ombro do velho. Aproximou-se mais e o puxou para si, como se o abraçasse de uma forma disfarçada (e era o que realmente estava fazendo).

- Tenho uma amiga muito especial na cidade - continuou. - Ela é dona de uma loja cheia de tesouros. E tem um chá de hibiscos delicioso que nunca saboreei em lugar nenhum. Que tal irmos amanhã até lá, deixarmos a nossa dona Maria com minha amiga tomando um chá e conversando enquanto nós dois vamos procurar o que precisamos?

- Faria isso por nós, meu filho? Faria isso por ele? – perguntou Maria.

- Sem dúvida. Como disse, tenho dinheiro. Mas não tenho um professor que me ensine a pescar. Acho que agora, finalmente, encontrei um...  E então, amanhã logo após o café?

Ambos sorriram, sentindo-se importantes pela atenção com que haviam sido distinguidos (achavam).

- Combinado.

- Então, com a licença de vocês, vou deixá-los aí namorando mais um pouco. E, sabem? O reflexo da lua no meu mar é a coisa mais linda que já vi, gostaria de dividir isso com vocês, gostaria que ele se tornasse de vocês também..

Sentiu-se comovido.

- Mas não percam a hora do jantar... – recomendou, até numa forma de defesa. Estava se partindo, por dentro.

O casal riu, feliz.

- Não perderemos, “seo” Gabriel – disse José. – Mas, diga-me, nós vamos pescar escondidos?

— Por quê? – respondeu ele com uma risada. - Vamos subir pela estradinha e usar a porta da frente, como reis.

 

XVIII

Estacionou o carro defronte a lojinha. A praça continuava deserta.

Onde estariam todos (perguntou-se)? Então lembrou-se  que ali era uma cidade mágica, que as pessoas só apareciam quando era necessário.

Sophia, como se o soubesse de alguma forma, os esperava diante da porta sem fechadura (outra coisa mágica, sorriu ele).

Apresentou-a para o casal de velhos que foram recepcionados com um sorriso sincero e caloroso, José e Maria sentiram-se imediatamente integrados àquela vida, àquele momento.

Entraram, o chá para quatro os esperava perfumado e inconcebível (outra mágica?).

Riram, brincaram, conversaram, como se fossem velhos (muito velhos) conhecidos.

Então Gabriel e José saíram, deixando as duas sozinhas. Elas ficaram olhando os dois se afastando a caminho da loja de pesca.

- Maria, nós continuaremos a beber o nosso chá e você me contará sobre seus sonhos – disse Sophia, com um sorriso deslumbrante, abraçando-a. – Mas antes, daria uma volta pela loja comigo?

Pegou-a pelo braço, conduziu-a de objeto a objeto, contou uma rápida história sobre alguns deles para a visitante deslumbrada pela atenção e carinho que estava recebendo.

- Não é à toa que as pessoas se tornam acumuladoras de objetos “inúteis”.

É uma questão de priorizar o que se joga fora e o que se quer guardar para sempre. Apego é algo muito difícil de lidar. Arranjamos inumeráveis razões para guardar aquela roupa que foi usada em uma situação que não queremos esquecer. Mas a roupa não nos serve mais. Assim como a situação jamais se repetirá. Ou guardamos pelas memórias ou por possibilidades futuras que podem nunca chegar.

- Mas que são importantes para nós... – completou Maria.

- Sim. Importantes e valiosas. Mas eis que chega um dia em que – por um motivo ou outro – temos que decidir o que é verdadeiramente importante. Ou o que podemos manter. E na maioria das vezes é uma decisão bastante difícil, quase impossível.

O olhar de Maria se perdeu longe, muito fundo dentro de si mesma. Ela sabia (vivera) exatamente o que Sophia estava lhe dizendo.

Esta, por sua vez, tentou consolá-la.

- Isso são coisas do passado - murmurou sem jeito. – Vamos esquecer tudo isso agora.

- Mas é esse o problema — Maria respondeu prontamente, com convicção. — Não quero esquecer disso. Na verdade, lembrar disso é a coisa mais importante. O que seria de mim se não fossem as minhas lembranças? Foi uma das poucas coisas que me restaram...

- Ah, mas conforme o tempo passa, mais sábios ficamos — Sophia disse. - Bom, pelo menos alguns de nós ficam.

- Deveríamos ficar, não é mesmo? – devolveu Maria.

A outra riu, não teve o que responder, voltou a envolver o braço de Maria, conduziu-a para a mesa onde o chá de hibiscos esperava. Serviu-a com delicadeza, esperou que Maria apreciasse o chá. Então pediu, com suavidade:

- Agora vamos falar de coisas felizes. Reparei que seus olhos brilhavam quando você olhava o seu José se afastar com o Gabriel. Você o ama muito, não é mesmo?

As lembranças amargas se desfizeram no espírito de Maria. Como se fosse o sol escondido atrás de pesadas nuvens que enfim despontasse, de repente tudo se iluminou indescritivelmente com seu sorriso.

- Você tem razão, Sophia, amanhã é amanhã – disse ela, com um tom mais leve. – Vou me preocupar no com isso no momento certo. O meu José?...

É tudo o que tenho na vida... é tudo o que me sobrou na vida... Nós dois, não temos mais nada, a não ser um ou outro. E depender da generosidade dos outros. Mesmo quando eles não parecem se dar conta disso. Ou agem como se não quisessem que nós percebamos isso... Ou não querem perceber isso...

Sophia a fitou com bondade.

- Sei... Agora está falando de Gabriel, não é mesmo?

Maria sorriu.

- Ah, por que está perdendo o seu tempo falando com uma velhinha tola, querida? – perguntou.

- Por dois motivos, Maria. Um. Você não é tola. Dois: você não é tola. E eu a respeito por isso. E só pelo fato de ser querida pelo Gabriel, só isso, já é um enorme e imenso motivo para que eu também a queira bem.

Maria a olhou inquisitiva. Até onde Sophia estaria falando a verdade ou estaria só se fazendo agradável? Mas viu o amor transbordando do coração pelos olhos da outra e não teve mais dúvidas.

- Ele é um anjo em nossa vida, Sophia. Mesmo que não saiba disso. Ou não queira saber, não sei bem...

Sophia sorriu. Deixou que o silêncio se fizesse entre elas por alguns instantes. Então revelou:

— Bem, minha querida, talvez o anjo seja você. Você, José, tantos que estão agora no Flamboyant Florido e tantos que ainda irão chegar. Sabe, isso é necessário para ele. De certa forma ele precisa mais de vocês que vocês dele. Mas isso já é outra história, um dia eu a contarei. Vamos voltar à nossa história, Maria? A história linda de Maria e José?

A velhinha, emocionada, teve que tirar os óculos, enxugar duas lágrimas incontidas que teimavam em escorrer de seus olhos. Mas não eram lágrimas de tristeza, Sophia bem o sabia.

Maria pareceu olhar para o fundo de si mesma, pensativa.

Então, como a senhora do quarto, sob o peso de uma invisível força interna, seu rosto se abala. Suas pálpebras se abrem ligeiramente, seus lábios relaxam, surgem covinhas nos cantos de sua boca. Finalmente se volta para Sophia, presenteia-a com um sorriso. Um lindo, indescritível, maravilhoso sorriso. E recomeça seu relato, sua história, a história de Maria e José.

- Eu estava atravessando um jardim em nossa cidade, indo nem lembro para onde. De repente fui arrancada de meus pensamentos por uma voz às minhas costas, um homem pelo qual eu passara e nem o percebera: “Senhorita, espere.” Em seguida ele se abaixou, colheu uma braçada de flores azuis e as ofereceu com um sorriso. “São para a senhorita.”. “Para mim?”, falei, perplexa. Ele me deu um sorriso lindo, meu mundo pareceu se iluminar. “Sim. Todo dia a senhorita passa por aqui. Muito triste. São belas as flores, não? Chamam-se Esperanza. Esperança. É isso que elas significam”. Então me desejou um bom dia, voltou para seus trabalhos de jardineiro.

Tomou um pequeno gole do chá e continuou, enlevada:

- Não sei explicar, Sophia, mas ele me trouxe o infinito à terra. É como se a terra de repente se abrisse sob nossos pés. Mas não caímos...

Paro um momento, como se coordenasse suas lembranças, seus sentimentos.

- E fiquei olhando para o chão, com medo que ele me engolisse. Mas sabendo, de alguma forma maravilhosa, que aquele buquê de flores jamais permitiria que isso acontecesse. Fechei meus olhos, só sentindo o perfume das flores que me inebriava. Percebi que outras pessoas se aproximavam, fiquei odiando a intromissão. Queria manter os olhos fechados e vê-las desaparecer, ao abri-los novamente. Na verdade, queria que todos desaparecessem quando reabrisse os olhos. Todos, menos o homem sorridente que estivera ao seu lado.

Parou com o relato por um momento, como se estivesse revivendo aquele momento tão especial. Então continuou, sob o silêncio respeitoso e interessado de Sophia:

- Pensei, com terror, que nunca mais veria aquele rapaz tão bonito. Meu coração se afligiu com tal ideia e ficou gritando vezes sem conta: “Volte aqui, não vá embora. Volte. Volte. Volte. Volte. Volte. Volte...”

Deparei-me ansiosa em reencontrá-lo, eu precisava reencontrá-lo todo dia. Descobri-me amando-o. Irracionalmente, mas o amava mais que tudo, mesmo que fosse um sonho impossível. Passei a procura-lo com os olhos todas as vezes que atravessava o jardim, surpreendi-me buscando pretextos para passar por ali. Como se fosse preciso...

Tomou mais um gole do chá, como se recuperando.

- Pensava que, com sorte, um dia ele sorriria novamente daquela maneira especial outra vez para mim. Talvez, um dia, eu ganhasse outro ramalhete. Talvez, um dia, ele até sussurrasse um “Eu amo você” para mim. Quando se ama alguém deste jeito, parte de seu cérebro simplesmente se fecha, a parte que não quer ver o que você não ver, não quer ouvir o que você não quer ouvir. E todos os dias ele estava com aquele sorriso lindo à minha espera, sempre com um botão azul nas mãos que me entregava com todo carinho. E que eu recebia ansiosa e emocionada.

 

XIX

Os dois caminhavam lentamente, voltando para O Relicário.

Pelos lábios de José, a história tinha uma continuidade não planejada de antemão (ali era uma cidade mágica, lembra-se?):

- E um dia eu me ajoelhei à sua frente e lhe entreguei um buquê de flores verdes que ela desconhecia. E lhe disse, com o coração aos saltos: “Todo dia a senhorita passa por aqui. Agora não tão triste. São belas as flores, não? Chamam-se Sueño. Sonho. É isso que elas significam”. Então não voltei para meus trabalhos de jardineiro, continuei ajoelhado defronte ela, sentindo-me confuso, até temeroso, como se tomado por um conflito imenso, por um medo imenso. Então, enfim, me decidi e disse as palavras que ela esperava tanto, conforme depois me revelou: “- Senhorita, sou um simples jardineiro, tenho muito pouco a lhe oferecer, quase nada. Mas, quer ser a minha linda e doce namorada? Quer tornar o meu sonho realidade?”. E para minha surpresa e felicidade, ela aceitou.

Gabriel o escutava silencioso, atento, enlevado, braço sobre os ombros do outro, como se ele fosse um velho pai. Depois de alguns momentos, José continuou:

- Ela continuou a ir todos os dias ao jardim onde nos conhecemos. Ficávamos conversando, eu mais escutando que falando. Ouvi seus problemas, suas angústias, suas desilusões, seus temores, e me vi, mais que nunca decidido a mudar isso para sempre.

José sorriu, avaro de suas doces lembranças, mas que compartilhava prazerosamente com Gabriel, julgando-o merecedor de conhece-las.

- Mas, por mais que a amasse (ou talvez por isso mesmo), eu hesitava em força-la a assumir um compromisso mais sério. Um dia ela me pegou mais acabrunhado do que o costume.

“- O que você tem?” – perguntou com doçura. Baixei meu rosto, evitando seu olhar. “-Nada” – consegui responder, com voz sumida. Ela se recusou a aceitar esta resposta simples, colocou as palmas das mãos nos lados do meu rosto e me forçou a olhá-la. “- Conte-me, por favor, não me recuse isso”. Relutei, mas eu precisava dizê-lo, não seria justo para ela que eu me calasse.

Ficou pensativo por alguns momentos, como se estivesse se decidindo quanto ao desenrolar da história, da sua história. Então continuou:

- “Sou muito pobre, sou apenas um simples jardineiro. Não tenho quase nada a lhe oferecer”. Ela riu, visivelmente aliviada. “Ah. Só isso? Cheguei a pensar que você não me queria mais como sua namorada”. Baixei meus olhos outra vez, sem coragem de encará-la. “Como isso seria possível? – perguntei o inconcebível, mais para mim mesmo.

Como se não percebesse conscientemente o que fazia, José parou de caminhar. Pareceu a Gabriel que o espírito do velho está longe, muito longe, em algum lugar que só ele conhecia. Então as lembranças afloraram, ele sorriu.

- “Seo” Gabriel, Maria riu outra vez, mas vi lágrimas em seus olhos. Então ela me disse a coisa mais maravilhosa que alguém poderia me dizer um dia: “- Querido, ouça, não permita que nada ou ninguém faça você duvidar de si mesmo. E de mim. Nunca. Promete?”. Ela sorriu com mais doçura ainda. ”- Lembre-se que eu tinha cento e dois pretendentes e escolhi você. Será que só isso não lhe diz quão maravilhoso você é? Ainda não entendeu que você é o ar que eu respiro?”

A voz de José se embargou, ele se voltou para Gabriel, sorriu embaraçado.

- Desculpe-me, “seo” Gabriel, não quero parecer pretencioso. Mas que me senti maravilhoso, eu me senti... Como nunca me senti na vida. Talvez tenha sido a mais bela declaração de amor que já ouvi. Podemos viver sem água por alguns dias, sem comida por outros dias, mas não podemos viver sem ar por mais do que alguns minutos...

Gabriel limitou-se a acentuar momentaneamente a pressão de seu braço nos ombros do ancião, dizendo sem palavras que o compreendia. Recomeçaram a andar, já próximos a O Relicário.

- “Seo” Gabriel, aquilo me tornou o homem mais feliz do mundo. Como se fosse um segundo sonho, eu me afastei de seu abraço, peguei-a pela mão e a fiz olhar para o jardim cheio de flores que eu cuidava com amor inconfessado para ela, só para ela. Então, sem saber ao certo o que fazia, o que dizia, comecei a dizer palavras que não sabia direito se partiam de mim ou não: “- Maria, isso não é só um jardim. É também uma catedral. A catedral maravilhosa onde, um dia, um padre rezará uma missa e nos casará”.

Gabriel intuiu o encantamento que se seguiu. De uma forma inexplicável (ali era uma cidade mágica, lembra?) viu-se junto a eles no jardim, na catedral em que se transformara. Viu e ouviu um padre oficializando a união, viu e ouviu o padre abençoar José, abençoar Maria e depois continuar a missa na catedral imaginária (?), sob o céu se abrindo... o serviço mais real e mais belo que jamais houvera, para José e para Maria, só para eles, para mais ninguém.

José finalizou, já quase defronte à loja onde as duas os aguardavam.

- Nossa casinha era simples, pobre, mas cheia de uma felicidade que eu nunca julgara ser possível no mundo. Depois, por mais que eu me esforçasse, nossa vida começou a ficar mais e mais difícil. Perdemos nossa casinha, perdemos tudo, mas não perdemos um ao outro. Nunca tivemos filhos, Deus sabe o porquê. Mas foi bom, nossa miséria seria maior ainda.

Gabriel estava emocionado com a sinceridade de José. Defronte à porta d’O Relicário, fez o velho parar, abraçou-o comovido, e lhe disse do fundo do coração:

- Vocês não perderam tudo, meu amigo. Agora somos todos uma família, lá no Flamboyant Florido.

O que pensara, diante do músico que deixara um longínquo dia  na varandinha, lhe veio à mente:

- Como esta história poderia ser verdadeira? – perguntou-se. –  E como poderia não ser? Quantas pessoas contariam uma história diferente? Quantas pessoas viveriam uma história diferente?

Como se combinado, num sincronismo perfeito, Maria e Sophia saíram pela porta mágica daquela loja mágica naquela cidade mágica. E mágica também estava se tornando a vida de cada um deles, as duas de braços dados como se fossem inseparáveis, cúmplices e velhas amigas.

Gabriel não pode deixar de ver os olhares de adoração mutua com que José e Maria se procuraram e se encontraram.

- Deus meu – pensou silenciosamente no mais profundo do seu coração. – Será que um dia alguém olharia tão amorosamente assim para mim?

Surpreendeu-se com Sophia olhando para ele e sorrindo, como se lesse o que lhe ia na alma, sentindo-se flagrado e envergonhado.

Então apreendeu o significado das palavras dela que tornava as palavras desnecessárias:

- É por isso que eu gosto de você. Você percebe estas coisas.

 



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