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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido cap XIV ao cap. XVI



(continuação)

XIV

Os blocos finalmente ficaram prontos e mobiliados.

Os contatos que havia começado trouxeram as primeiras pessoas.

Chegaram trazidos por um ônibus fretado. Pessoa após pessoa, o passado invadia aquele lugar. Pessoas trazendo em comum muita idade, pouca bagagem e muito desalento nos olhos opacos que viam desinteressados o local em que estavam agora.

Trazendo um flagrante sentimento de perda, e também muito mais tristeza que uma pessoa é capaz de suportar.

Talvez (pensavam) mais um local dentre tantos outros.

Ele estava ansioso, até nervoso. Será que as primeiras pessoas que ali chegavam compreenderiam o alcance do legado a que se propusera?

Segurou forte a mão da senhorinha a seu lado, em busca do apoio que precisava.

Então, inconcebivelmente, o rosto do músico se materializou diante de si, sorrindo, dizendo-lhe (sem palavras) que tudo iria dar certo, que tudo seria como deveria ser.

Sua ansiedade, seu nervosismo, se dissiparam instantaneamente. Desprendeu seus dedos entrelaçados da mão da senhorinha, deu um passo para a frente, lembrou-se das palavras e disse àquelas pessoas, com toda sinceridade e felicidade:

- Sejam bem- vindos à cidade de Redenção, meus queridos. Sejam bem-vindos ao Flamboyant Florido. Nosso lar.

Foi então de um a um, abraçou e beijou o rosto de cada um, independente e ser homem ou mulher, tentou lhes transmitir a sinceridade de suas palavras e sentimentos. E agradeceu, a cada um:

- Obrigado por ter vindo, você é importante para nós.

Talvez – temeu – não fosse compreendido suficientemente, achando que é isso que acontece quando as pessoas envelhecem. Elas sentem que está chegando o momento em que não serão capazes de cuidar de si mesmas e lutam contra isso.

Mas – esperava – as pessoas que foram magoadas não deveriam permitiram que seus corações endurecessem, pois são mais úteis ao

reino de Deus do que aquelas que ainda não vivenciaram a dor ou a frustração.

Por outro lado – teve que reconhecer – talvez fosse uma forma de defesa.

Restava aguardar. E se empenhar para mudar isso.

Recebeu cada um com carinho. Com a dignidade e o orgulho que suas idades exigem, merecem e precisam, porque isto era a coisa mais importante para mantê-los firmes enquanto o mundo inteiro começava a desmoronar e a se revirar em torno de cada um.

Porque, ser a metade de um ser é um tormento quando a outra metade desaparece.

E cada um deles tentava – sem sucesso - disfarçar seus sentimentos quando as coisas ficavam feias.

Podemos superar o ódio, a inveja, a cobiça e tantas outras emoções negativas e destrutivas. Mas a dor é algo diferente. Não se pode esquecer e nem superar. Temos que aprender a viver com ela, integrada ao próprio ser, e fazer disso parte da própria vida.

Continuar vivendo, mesmo que seja difícil, pois o que cada um quer é morrer.

Mesmo que às vezes trouxessem um pálido sorriso que não convence ninguém, porque surge de um denso bosque de tristeza.

Ele olhou em volta mais uma vez, só viu rostos olhando para ele, esperando sua orientação, esperando esperançosos (mesmo que não se dessem conta conscientemente disso) que ele desse sentido e segurança à vida deles.

Apesar da poça de tristeza que se abriu irresistivelmente dentro de si, tentando arrastá-lo irreversivelmente para uma profundeza tenebrosa, tentou sorriu, forçou um sorriso que o trouxesse de volta.

Então conduziu pessoalmente o pequeno grupo para o interior do bloco, explicando que cada um teria um pequeno apartamento só para si (ou poderia ficar num outro um pouco maior, que acolheria duas pessoas, se quisessem).

Um quarto, uma saleta, um banheiro e uma pequena área de serviço.

Cada quarto tinha uma cama recoberta com uma colcha florida.

A grande janela era circundada também por uma cortina também florida, o campo inevitavelmente florido se descortinava até quase o infinito. A mesinha da saleta era encimada por uma toalha alegre (florida), um lindo vaso de flores.

Era um quarto alegre como tinha que ser, não o quarto inexpressivo e impessoal normalmente encontrado nos asilos e nas ditas casas de repouso. O objetivo era encher de flores e alegria a vida de cada um.

Viu a primeira senhora se imobilizar na porta, viu-a correr os olhos pelos cantos, como se não soubesse bem para onde voltá-los.

Sua expressão era dura, como quem se resignara a aceitar o irremediável.

Então, sob o peso de uma invisível força interna, o duro material de que é feito seu rosto se abala. Suas pálpebras se abrem ligeiramente, seus lábios relaxam, surgem covinhas nos cantos de sua boca. Finalmente se volta para ele, presenteia-o com um sorriso. Um lindo, indescritível, maravilhoso sorriso.

A primeira coisa que faz quando entra no quarto foi tirar da mala a sua foto, colocou-a ao lado da cama, sobre o criado mudo.

Começou a cantarolar, sem se dar conta disso. Feliz.

Finalmente estava em casa.

Finalmente sentia-se em casa.

Ele, comovido, continuou seu caminho. Foi de quarto em quarto esperando encontrar, em cada um deles, um pouco daquela demonstração de felicidade.

 

XV

Se a chegada dos velhinhos e velhinhas sem lar o havia fragilizado, quando as primeiras crianças chegaram foi muito mais doloroso.

O fato é que não conseguiu deixar de fazer um amargo paralelo, uma comparação, entre um asilo e um orfanato.

São duas instituições distintas, que tem em comum a mesma sensação dolorosa. E uma coisa chamada desesperança e desamparo.

No primeiro degrau da situação, as crianças ainda tem pelo menos a esperança de um dia conseguir um lar, esperança esta que diminui rapidamente com o passar dos meses. De recém-nascidos a um ano, ainda é mais fácil. Depois vem a convivência com a realidade que não sabem expressar mas sabem sentir: a carência, o desamparo, a desilusão. E ainda tem a vida toda pela frente.

O último degrau é o asilo. Não há esperanças, há a vida que diminui rapidamente com o passar dos dias. E vem a convivência com a realidade que sabem expressar e sabem sentir: a carência, o desamparo, a desilusão. Agravadas por uma vida de lembranças, de saudades, de sentimentos de abandono e solidão.

Começou a entender porque os velhos tem aquele olhar perdido no vazio. Começou a entender porque os velhos tem aquele problema de comunicação com os mais moços.

Pode ser um asilo de luxo, a amargura, solidão e desesperança é a mesma. Quando constatou o desamparo, constatou o desamparo emocional. Não bastam os cuidados de atendentes que são pagos para isto, faltam os únicos cuidados que realmente precisam e lhes interessam: os dos familiares que os jogaram ali.

Jogaram é uma palavra muito forte? Pois é a única que lhe ocorreu para descrever correta e exatamente o que sentiu.

Um asilo caro pode aparentemente comprar uma consciência. Pode-se dar ao luxo de se dizer: "Ah, meu pai (ou minha mãe) está sendo muito bem tratado, nada lhe falta. É quase um hotel cinco estrelas".

Só que ninguém pergunta se é aquilo que realmente o familiar quer.

Argumenta-se que velho dá trabalho. Realmente. Para quem teve trabalho conosco a vida quase toda, um velho realmente dá muito trabalho. E a realidade de que o moço de hoje é o velho de amanhã não é sequer cogitada. Nem o que lhes é devido.

A vida costuma cobrar muito caro por atitudes deste tipo. Não só pelo fato de jogarem um familiar velho no asilo. Responderão, também, pela falta de convivência que impõem a seus filhos. E a desculpa de que ele está sendo bem tratado é o subterfúgio que muitas vezes se usa para espaçar cada vez mais as visitas. Afinal, primeiro os assuntos de importância.

Viu um velhinho quase míope, óculos de fundo de garrafa, ele murmura baixinho: "Coitado do velhinho, quase não enxerga nada".

Então veio-lhe a infundada (?)  ilusão que assim é melhor, que assim o velhinho não vê as visitas que nunca mais irão procurá-lo. Ou que irão cada vez menos, até a visita final, o alívio do transporte para o cemitério.

Afastou seus paralelos apavorantes, dolorosos, concentrou-se nas crianças que chegavam, as maiores deslumbradas com o local. Mesmo que não soubessem ao certo que acabavam de chegar ao lar, um lar de verdade.

A seleção dos funcionários havia sido rigorosa.

Não bastava apenas o imprescindível currículo, foi exigido de cada um que ostentasse um permanente e sincero sorriso nos lábios, rosto e olhos quando tratassem dos idosos e crianças que viriam.

Por outro lado ele esperava, do fundo do coração, que aquela imposição se estendesse à casa de cada funcionário, à vida de cada um. E explicou:

- Na época da faculdade eu trabalhei num consultório onde éramos instruídos a dizer que o médico chegaria “daqui a pouco”, nunca “daqui a um minuto”. “Daqui a pouco” era subjetivo, não implicava uma promessa concreta.

Olhou cada um, friamente, tentando transmitir a máxima determinação possível.

- Isso não pode acontecer nunca aqui. É inadmissível, nossa vida precisa de alegria. Quero que todos os velhinhos e crianças encontrem aqui, no Flamboyant Florido, um verdadeiro lar pleno de amor e carinho. Todos acham que estão capacitados para isso?

Alguns vacilavam, não conseguiam o emprego.

Decidiu, também, que não haveria uniforme para os funcionários. Apenas um pequeno crachá com o nome de cada um. Queria que seus protegidos sentissem que os funcionários eram pessoas amáveis, carinhosas e comuns, não a impessoalidade fria dos profissionais.

As crianças, de bebês de colo a algumas maiores (já sem possibilidade de adoção) foram recepcionados com festa. Com direito a bolo, refrigerantes, bexigas coloridas, presentes...

Depois foram alojadas em dormitórios (com banheiro) que abrigavam duas crianças, para que elas não se sentissem sozinhas. Uma terceira cama podia ser incluída caso houvesse a necessidade de um adulto passar a noite dormindo junto enquanto a criança se habituasse às novas condições de vida e amor.

No sítio havia também um poço.

Ele sabia o quanto isso seria perigoso para a curiosidade de uma criança, sabia que não adiantaria insistir em dizer o quanto o poço era perigoso, prevenindo para que se mantivessem decididamente longe dele. Sabia que as crianças fariam questão de explorá-lo, para saber onde ele se encontrava e, dessa forma, poder evitá-lo apropriadamente, segundo sua lógica apavorante.

Foi aterrado quase até a borda e recebeu muitas flores, transformou-se num detalhe lindo do jardim com seu contorno de tijolos e sua manivela antiga de madeira que movimentara o balde ao longo de muitos anos.

Mandou construir também um monjolo, sua constante batida marcaria o compasso de uma música interminável que ele esperava repetisse infinitas e incansáveis vezes o nome Felicidade

 

XVI

Uma das crianças era um garotinho de seus quatro anos.

Extremamente retraído, fugidio, evitava até a companhia das outras. Seus olhos brilhantes revelavam o quanto fora ferida, o quanto se sentia ferida e rejeitada. A carência era perceptível em sua expressão tristonha e melancólica.

Ficava encolhida num canto do jardim, isolada, sozinha, sabe-se lá pensando o que naquele mundinho fechado e exclusivo em que vivia.

Ele tentou se aproximar da criança, sem sucesso nas primeiras tentativas. Chegou a levar doces, bolo, brinquedos, nada o interessou, mantinha-se alheia à festa.

Então, um milagre aconteceu.

Um milagre na forma de uma pequena gatinha que ninguém sabia de onde viera (“- Aqui é uma cidade mágica, lembra-se?”).

De início ouviu-se o lamento de um miado baixinho. Atraiu a atenção do garotinho, que pela primeira vez pareceu sair de seu alheamento. Então, de trás de um tronco caído, como se fosse uma sombra indistinta que entrasse em foco pouco a pouco, surgiu uma cabecinha negra encimada por duas orelhinhas pontudas.

Num pulo desajeitado subiu no tronco, olhou fixamente para o garotinho e sem parar de miar e sem desviar os olhos dos dele, começou a caminhar em sua direção.

O garotinho, sua atenção totalmente atraída, estava agora concentrado no animalzinho que se dirigia para ele.

Imóvel, sorria, momentaneamente esquecido de sua solidão.

Ficou quietinho, sua respiração diminuiu, tornou-se quase inaudível, o sorriso maravilhado se estendeu e começou a tremular em seus lábios, a gatinha só se aproximava dele, só dele, de ninguém mais.

Então a gatinha deitou no seu colo e se enroscou, encolhendo-se até parecer só uma pequena bola felpuda de pelo preto. Ela fechou os olhos azuis, da cor do oceano, e então dormiu, e ronronou.

O sorriso do garotinho alargou-se ainda mais.

Ele aproximou-se devagarinho do menino, colocou bondosamente a mão em seu ombro, com carinho, com cuidado para não despertar o animalzinho.

- Que linda ela é – disse ao garotinho. – Parece que ela encontrou um dono em você, querido.

O pequenino afagava suavemente a gatinha que dormia em seu colo. Olhou para ele, maravilhado.

- Não sou o dono dela – explicou. – Ela é minha amiguinha.

Ele sorriu, emocionado.

- Que bom. É muito bom a gente ter um amiguinho que goste de nós. Mas agora temos que ir. Você não quer ver seu quarto? Agora aqui é a sua casa, sabia?

Ele relutou. A desilusão chegou e transbordou de seus olhos plenos de um sofrimento que só ele sabia a intensidade. O adulto intuiu que ele começava a vivenciar mais um sentimento da inevitável e costumeira perda.

- Posso levar a gatinha comigo? – suplicou baixinho, os lábios tremendo e antecipando a costumeira negativa que sempre recebia em sua vida.

O adulto, num gesto carinhoso e inesperado para o garoto, desfez os seus cabelos e os seus receios.

- Se não levar - disse suavemente - ela vai acabar indo atrás de você. Agora ela encontrou também um amiguinho, não é verdade?

O garotinho pegou a filhotinha com cuidado para não despertá-la nem deixa-la cair. Ou talvez temendo que ela acordasse e fosse embora.

O adulto o ajudou a se levantar, pegou-o delicadamente no colo.

O menino, por sua vez, depois de um rápido instante de indecisão, deitou a cabeça em seu ombro e fechou os olhos, como se estivesse em um sonho do qual não quisesse nunca mais despertar.

Naquele curto percurso o menino adormeceu, como se enfim tivesse encontrado sua paz e segurança. Com suavidade foi colocado na cama e coberto.

- Boa noite, gatinho – sussurrou para o garoto, beijando-lhe a cabeça. Afagou também a gatinha que dormia e ronronava. 

Mas era o coração dele que ronronava.

Deu-lhe mais um beijo na testa, o adulto esperando que o pequenino sentisse de alguma forma aquela demonstração de amor.

Acordou horas depois. O garotinho viu-se sozinho, a tristeza do reconhecimento começou a surgir em seus olhos ansiosos, o pavor de se ver novamente sozinho a retorcer sua alma e sentimentos.

Então a cama balançou quando algo pareceu aterrissar nela, patinhas delicadas andaram por cima das cobertas, e uma presença quentinha e peluda encostou em seu rosto.

A gatinha começou a ronronar baixinho.

O pavor ainda não havia abandonado a alma do garotinho. Mas havia uma gatinha no seu travesseiro e ela ronronava em seu rosto e vibrava suavemente a cada ronronar, e logo ambos adormeceram.

De manhã cedo, quando despertou, a gatinha preta peluda estava ao pé da cama. Ela abriu os olhos quando o menino se ergueu, olhos de um intenso azul-esverdeado, artificial e estranho, como o mar no verão, e miou uma melodia aguda e inquisitiva.

O homem, que estava à porta, viu quando o menininho fez um carinho nela, envolveu-a delicadamente em seus bracinhos magros e desceu da cama, a gatinha ronronando, protegida.

Sentiu os olhos marejados. Queria saber ronronar também. Ele também teria ronronado naquele momento.

(continua)

Leia:

Flamboyant Florido Intróito ao cap. II

 

Flamboyant Florido cap III ao cap. IV

 

Flamboyant Florido cap V ao cap. VIII

 

Flamboyant Florido cap IX ao cap. XI

 

 

Flamboyant Florido cap XII ao cap. XIII

 



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