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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido cap III ao cap. IV

Quinta, 16 de agosto de 2018


(continuação)

III

Teve sua mão segura pela da senhora, foi conduzido para uma mesinha do outro lado da loja. Uma jarrinha de porcelana antiga continha um saboroso e inesperado chá de hibiscos, servido também em pequeninas e delicadas xícaras da mesma porcelana antiga. Um jogo, talvez.

Sorveu um pequeno gole, surpreendendo-se com a delicadeza da infusão, agradeceu. Então ficou pacientemente aguardando que ela iniciasse a história.

Por uns momentos ele olhou distraidamente lá para fora, através da janela onde tremulava alegremente uma cortina florida, como que embalada sob uma cantina de ninar que só ela ouvisse. Não viu uma única pessoa.

Lembrou-se inexplicavelmente da cortina de chita que havia na sala da casinha simples da avó materna, foi tirado de seus devaneios pela voz suave e tranquila da octogenária:

- Essa é uma boa cidade, temos poucos visitantes, talvez um por ano, muitas vezes nem isso. Apenas pessoas especiais são trazidas para cá.

Ele achou que não havia compreendido bem as palavras.

- Desculpe?... Acho que não entendi direito. Trazidas? Pessoas especiais? Eu não sou uma pessoa especial...

Obrigou-se a interromper o que dizia. Como confidenciar àquela senhora desconhecida que ser uma pessoa especial era o que mais queria na vida? Ou, talvez, ser apenas feliz? E isso, justamente isso, não seria o que o tornaria a pessoa mais especial de todas?

E não era isso, não seria isso, exatamente uma característica do que precisava ser acima de tudo, acima de tudo se sentir? Para si próprio?

Olhou para a mulher, encontrou seus olhos fixos em si, como se visse e lesse no mais profundo de sua alma e coração.

Como se lhe desse tempo aos pensamentos confusos, a senhora continuou a tomar seu chá sem pressa.

- Você não escreve sua vida com palavras — disse ela. — Você a escreve com ações. O que você pensa não é tão importante. Só é importante o que você faz. O que você realmente faz.

Algo havia mudado em sua voz. Um quê diferente. Um quê de bondade.

- Filho — continuou a senhora – as histórias nem sempre têm finais felizes. Nem sempre há um mocinho. Nem sempre há um bandido. A maioria das pessoas fica no meio-termo. Alguns chamam isso de livre arbítrio. Mas, na realidade, são escolhas. E são escolhas com as quais teremos que conviver com suas consequências para todo o sempre. É só uma questão de tempo para que o que achamos que deixamos para trás no alcance. E cobre o seu preço, que na maioria das vezes nos é alto demais. Livre arbítrio é apenas uma ilusão criada para que o ser humano não enlouqueça. Somos o que o destino define de nós. Muitas vezes somos levados a acreditar que somos larvas. Mas, na verdade, somos borboletas. Pode entender isso?

Iria ser uma conversa longa e difícil, intuiu ele. As aparentes incoerências começavam a se entrelaçar inexplicavelmente num fluir de verdades que se sucediam e começavam a falar diretamente a ele. E com u sentido profundo, muito profundo.

- Ela está contando a história do sax ou falando de mim? – perguntou-se. Como suas palavras e frases inesperadas podiam lhe dizer tanto, podiam lhe atingir tanto, podiam se tornar exatamente o que precisava ouvir?

E que precisava compreender?

Suas perguntas ficaram pairando no ar, como as partículas de poeira suspensas que vemos nas partes iluminadas.

A senhora continuou:

- Veja as coisas como elas são: se algo não está certo é porque está errado. As pessoas fazem o que podem ou querem, mas quase sempre não há dúvida sobre o que é uma atitude correta. Conhecemos injustiça quando a vemos.

Suas palavras calaram fundo em sua mente. Mas ela continuou:

- O que leva uma pessoa a fazer alguma coisa? Mas é simples: você faz o que precisa ser feito e não se preocupa muito com o porquê ou como se sente em relação àquilo. Simplesmente age. É tudo muito simples. Você descobre qual a coisa certa a fazer e então faz aquilo.

Encarou-o como se estivesse tentando lhe dizer alguma coisa. Então olhou para longe, como se estivesse tentando enxergar alguma coisa longe, muito longe, e continuou, pensativa:

- Quando as coisas mudam é como tentar ver a lua se mover no céu. Você pensa que percebeu algum movimento, mas foi apenas uma ilusão de ótica, causada por uma nuvem que passou. Depois de algum tempo, porém, você se distrai e, de repente, quando volta a olhar para a lua, que estava bem ali, ela mudou totalmente de posição.

Para ele a senhora assemelhava-se a alguém à beira do mar que não sabia se devia pular ou apenas colocar um pé na água para ver se ela estava muito fria.

Abria uma porta por alguns momentos, mas depois, por alguma razão, decidia que estava na hora de fechá-la. Não adiantava colocar um pé na porta para mantê-la aberta. Era aguardar o fluir dos acontecimentos.

Ela ficou calada por algum tempo. Como se de repente o tivesse esquecido, começou a arrumar seus bonequinhos de cerâmica como se eles tivessem se movido sozinhos na noite anterior.

- Ela está contando a história do sax ou falando de mim? – tornou ele a perguntar-se, sem atinar com qualquer resposta ou sentido para o que ouvia.

Ela o olhou fixamente e sorriu, cônscia da confusão deliberada que provocara nele. Então, sorveu mais um gole de seu chá, voltou a encher as xícaras, só então continuou.

- Como disse, essa é uma boa cidade. Temos poucos visitantes, talvez um por ano, muitas vezes nem isso. Apenas pessoas especiais são trazidas para cá.

- Sim. Mas não entendi bem isso... não sou uma pessoa especial.

Ela riu, olhou-o com bondade sincera. Olhou lá para fora, os olhos dele inevitavelmente a seguiram.

- Reparou que não viu mais ninguém aqui além de mim e do hoteleiro?

- Sim, e confesso que estou entranhando muito isso. Pergunto-me onde está todo mundo.

- Essa também é uma cidade especial. Lembra-se que perguntei se você acreditava em magia? Pois essa é uma cidade mágica. Lógico que temos outros habitantes aqui. E são muitos. Mas você só verá quem precisar ver. E na hora certa.

Deixou que aquela incompreensível e inesperada explicação chegasse a ter algum sentido.

- A senhora disse que pessoas especiais são trazidas para cá...

- Sim, ninguém chega aqui só por acaso. Aqui só aportam as pessoas especiais que precisam de alguma ajuda e são merecedoras disso. Acredite, somos apenas parte de um todo maior que tem objetivos mais elevados. Somos simples instrumentos, em suma.

- Desculpe... acho que não entendi direito...

Ela riu.

- Não se preocupe. A compreensão de muitas coisas aqui só chegará tardiamente. Mais precisamente, na hora certa. Ouviu alguma vez a frase “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”?

- Sim, há muito tempo atrás. Mas, admito, nunca a entendi completamente.

- Filho, esta é somente uma outra roupagem para outra frase, a que diz que nada acontece por acaso. Já se perguntou por que foi trazido para cá?

Pensou alguns momentos, queria responder adequadamente à pergunta.

- Sim senhora. Mas não tive respostas. Sei que, de repente, esta cidade surgiu aparentemente do nada. Sem motivo aparente, resolvi entrar aqui. Ou, talvez, mais precisamente, quando me dei conta do que fazia eu estava entrando aqui. Confesso que tudo o que está acontecendo é meio estranho...

A senhora riu.

- Depois você entenderá. Na hora certa. Por enquanto, saiba que você é um discípulo que a vida tornou pronto para que o mestre aparecesse. Sua vida não é tão inútil como você a define e acha que é. Você está destinado a realizar coisas maiores, e tudo isso está lhe acontecendo para que você possa fazê-las. É o seu destino, meu filho, lá na frente, no dia certo, você entenderá. Mas, agora, deixe-me lhe contar a história deste saxofone.

 

IV

- Aqui é o que poderia ser chamado também de uma loja de penhores. Mas não penhoramos apenas bens. Na realidade, penhoramos muito mais que isso. Penhoramos bens muitos maiores. Penhoramos vidas. Penhoramos sonhos. Temos objetivos muito maiores que a simples satisfação imediata de uma necessidade financeira.

Foi inevitável que ele olhasse demoradamente para o instrumento. Que segredos e implicações se esconderiam sob o frio do metal?

- Um dia um viajante também foi atraído para nossa cidade. Como você, ele achava que sua vida também não tinha sentido algum, que era totalmente inútil e desnecessária. Não, não é uma simples redundância de palavras. Na realidade, elas se completam.

Tomou mais um pequeno gole do chá.

- Ele não trazia só amargura e desalento na bagagem. Necessariamente, também trazia um estojo com um saxofone, isso era imprescindível para nossos propósitos. Era outro discípulo pronto para que o mestre aparecesse. Mesmo que ele não soubesse – como você – que era um discípulo. Nem soubesse – até hoje – que um mestre o estava esperando.

Enfim, como eram seus desígnios, gostou do lugar, achou que poderia encontrar aqui um pouco de paz (ao menos), comprou um pequeno sítio e desde então se tornou um de nossos moradores. Esperando a hora certa, mesmo que não tenha se dado conta disso até hoje. Como tinha que ser.

A senhora voltou a encher a pequena xícara, sem mesmo o consultar, fazendo uma pausa no relato para que suas palavras se tornassem compreensíveis. Então, continuou.

- Ele é um bom músico. Mais que com a técnica, toca com a alma. E você sabe a diferença entre uma coisa e outra. Não me pergunte como, eu não saberia lhe responder, mas mesmo tão distante, podíamos ouvir todo entardecer as músicas que ele chorava no instrumento. Essa é uma cidade mágica, lembra-se? Só isso explica isso e muitas outras coisas por ora julgadas incompreensíveis e inconcebíveis. De certa forma, sem uma música dele, o dia aqui nunca terminaria.

A senhora tocou o sax como se afagasse um ser vivo. Ele intuiu e acreditou que, de alguma maneira inexplicável, era assim mesmo.

- Algumas pessoas considerariam sua música como se fosse a representação da procura do homem por Deus, mas ele achava que era a luta de um homem. Contra o que ele acreditava ser o mal. Contra si próprio. Ou, talvez, contra seus sentimentos. Sentimentos no sentido de lembranças, de vivências. Mas sabíamos que, de uma maneira indireta, ele expressava seus sentimentos. Era como se ele se aproximasse do amor pela porta dos fundos. Talvez tivesse algo a ver com toda a dor e todas as perdas que sofreu, talvez parte dele quisesse se agarrar ao passado e outra preferisse esquecer tudo aquilo e seguir em frente.

Ele sorriu de leve. Embora ela quisesse se mostrar séria, sorriu também, sabia o que estava dizendo, sabia o alcance de suas palavras. Continuou:

- Pensou que havia dominado aquele monstro que trazia dentro de si. Mas essa é mais uma mentira que contamos a nós mesmos até que a realidade chegue para nos estapear e dizer: - Pensou errado, tolinho...

De repente o olhar da senhora se focou longe, muito longe. O que estaria vendo?

- Mas também não dava qualquer mostra de estar sentindo pena de si mesmo. Mas sabíamos o que ele trazia dentro de si, em sua alma e coração. Nosso medo é que ele não conseguisse lidar com isso por muito tempo. Não podemos obrigar as pessoas a fazer o que elas não querem. Não podemos obrigar ninguém a seguir um caminho, só podemos apontá-lo. Ele apenas se fechava e guardava os sentimentos dentro de si mesmo. Só os externava através do sax. Para os que sabiam sentir isso. O sax era o amor de sua vida. Triste, não é mesmo?

Ele assentiu, palavras eram desnecessárias. Ele compreendia, ah. Como compreendia.

- Um dia – como tinha que ser – ela parou de tocar o instrumento. Por algum motivo obscuro de sua alma, deixou de fazê-lo. Pelo menos, assim pensou e pensa até hoje. Ele não tinha como saber que aquilo fazia parte de seus desígnios, uma deliberação intencional da qual tivemos uma parcela de culpa, por assim dizer. Era uma preparação nossa para que alguma coisa maior pudesse acontecer.

Ele não conseguiu resistir à pergunta que lhe surgiu instantaneamente:

- Uma manipulação?

Ela riu docemente, mas não como se desculpando do que fizeram, do que tiveram que fazer.

- Não necessariamente. Lembre-se que isso fazia parte de seus desígnios, apenas o ajudamos.

Ele sufocou uma resposta, temendo que ela transparecesse em seu rosto.

- Acho que posso perdoar uma mentirinha gentil – disse para si próprio.

Inevitavelmente olhou para a senhora que o fitava com um sorriso disfarçado que lhe transbordava dos olhos, revelando que compreendera o que pensara.

- Então, como também não podia deixar de ser, como tinha que acontecer, um dia ele veio até aqui e penhorou o sax.

Foi a vez dele tocar com respeito e enlevo o instrumento. Olhou a senhora com seriedade.

- Imagine, um homem trocar o amor de sua vida por dinheiro.

- Ah, não se deixe levar por simples aparências. Não foi só por isso. Não se esqueça que isso é só uma pequena parte de um desígnio maior. É só um detalhe. Fundamental, por sinal. Mas isso, só depois – na hora certa – você entenderá.

- Ele então foi levado a fazê-lo, correto?

- Correto. Mas, como disse, na hora certa você entenderá. Nosso prazo de resgate de penhora é de um ano. Este prazo já expirou há mais de três. Como disse, as coisas certas acontecem na hora certa. Talvez tenha chegado este momento.

Ele sentiu o olhar da senhora no mais profundo de sua alma e sentimentos.

- Diga-me – completou ela. – Gostaria de comprá-lo?

Ele quedou, um pouco confuso. Sopesou devidamente a resposta apropriada. Então se decidiu.

- Quero. Não sei tocar... nem sei por que estou querendo fazer isso... 

Ela riu bondosamente.

- Tem certeza de que não sabe mesmo? – provocou.

- Não... quer dizer... não sei mais... Talvez, diante do que já conversamos, talvez eu o saiba. Bem lá no fundo. Mas não sei externar em palavras, admito que é um impulso, na falta de uma palavra melhor.

- Impulso? Ou uma necessidade?

Ele pensou. E foi franco.

- Acredito que seja mais que uma necessidade. De certa forma, sinto como se fosse uma imposição. Mas é uma coisa que eu quero fazer. Acho.

- “Quero”?

- Tenho – capitulou. A realidade começou a se revelar aos poucos em sua mente conturbada. – Talvez eu também esteja sendo manipulado...

Ela riu.

- Talvez esteja. Ou talvez esteja apenas se defrontando com seus desígnios.

Foi a vez dele sorrir.

- Então vamos deixar que o tempo me revele isso. Não sei porquê, mas de repente estou me sentindo o discípulo que finalmente ficou pronto, se bem que não apreenda ainda o alcance do significado disso.

- O significado das palavras, meu filho?

- Não, senhora. O significado de meus sentimentos. Mas, diga-me, qual o valor do resgate? O dono nunca voltou para pegá-lo?

- Nunca. Mas não se deixe levar por uma impressão errônea. Talvez não tenha sido por causa de dinheiro. Talvez tenha sido por ele não poder suportar vê-lo (ou tê-lo) outra vez. O que dizer da natureza humana e seus incompreensíveis e às vezes inescrutáveis motivos? Há uma frase de Saint-Exupéry que exprime muito bem isso: “Eis o meu segredo. É muito simples. Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.”

- Tem razão. Mas, qual o valor? Um instrumento destes deve custar muito caro.

Ela o olhou, quase zombeteira.

- O valor dele é muito mais do que você pode pagar. Muito mais do que alguém poderia pagar. Logo você saberá porquê. O valor de resgate, por outro lado, está bem a seu alcance.

Ele hesitou por um rápido momento.

- Quanto?

A senhora respondeu, o surpreendendo.

- Só isso?

- Em termos de dinheiro, só isso. O valor maior você terá que pagar com outra moeda. Mas, diga-me. Você precisa ter certeza de que ele está ao seu alcance, que você merece tê-lo. Como lhe disse antes, este sax não é para qualquer um, não pode ser vendido a qualquer pessoa. Qual o motivo real de querer tê-lo?

- Admito que não sei bem...

A senhora o olhou com cuidado, avaliando sua sinceridade. Então sorriu.

 - Ele é seu.

Depois que pagou, a senhora, a seu pedido, lhe deu o nome e endereço do antigo dono.

Pegou o sax, colocou-o com cuidado no estojo, agradeceu e se despediu.

(continua)



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