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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido Intróito ao cap. II

Quarta, 08 de agosto de 2018

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Intróito

 

Dirigia lentamente naquela tarde bonita, procurando um pequeno sítio quase desconhecido à beira da estradinha rural asfaltada perdida em algum lugar do mundo.

Como referência tinha apenas a vaga informação de uma pequena entrada sem porteira, quase dissimulada, perceptível por um grande flamboyant sempre florido, mas só notado pelos poucos que tinham coração puro e sensível para vê-lo.

E, de repente, lá estava o flamboyant florido.

Avançou alguns metros, fez o retorno, parou do outro lado da pista suficientemente afastado para ver a árvore em todo o seu esplendor.

- Não é à toa – pensou – que um dos significados da palavra seja fulgurante. O intenso colorido sobrepujava em muito todas as demais árvores que haviam ao redor.

Sentiu a visão enevoada e, mesmo sem se dar conta, percebeu que sua alma começava a transbordar e a escorrer por seus olhos em suas lembranças aparentemente tão esquecidas (ou sufocadas) e que, no entanto, ali estavam tão presentes.

E pela falta de sentido em sua vida.

Sua própria, melancólica e esfarrapada vida.

Brotam lágrimas secas de uma ferida que, intui, nunca cicatrizará.

Só o tempo é capaz de refinar nossas verdades. E revelar (separar) o que é verdade verdadeira da verdade ilusória.

Como o ser humano é capaz de se enganar quanto a si mesmo.

 

I

Viajava há dias, sem destino.

Já anoitecia quando entrou (sem pensar conscientemente, como se fosse de alguma forma conduzido inapelavelmente para a mesma) numa cidadezinha tão pequena que talvez nem figurasse no mapa.

Como em todas as cidadezinhas perdidas no mundo, encontrou a inevitável pracinha central. Na esquina, como não podia deixar de ser, o hotelzinho. Estacionou defronte à porta principal.

Desceu. Por alguns momentos ficou encostado ao carro. Sobre as árvores da pracinha deserta cujo silêncio só era quebrado pelos últimos gorjeios da passarada que nunca mais ouvira na cidade grande, admirou a lua tão grande e luminosa que despontava e subia pouco a pouco.

De súbito, mais que sentir-se cansado, sentiu-se como que perdido, inconcebivelmente necessitado de ali ficar por algum tempo, talvez na inadmitida procura de uma paz interior que sentia tão inatingível, tão fugidia, tão desencontrada.

Pegou a pequena maleta no banco traseiro, entrou no hotelzinho, a portaria estava deserta. Sobre o balcão, uma inesperada e antiga campainha. Esticou a mão, por um instante indeciso diante de um momentâneo sentimento de hesitação.

Com delicadeza, enfim, bateu duas vezes no botãozinho, a campainha soou suavemente com um perceptível sentimento de saudade que vinha remotamente de algum lugar no mais profundo do passado. Do seu passado.

Viu-se pequeno, numa infância longínqua demais, infância que às vezes parecia nunca ter tido, como se fosse uma simples fantasia ou fruto de sua imaginação.

Viu-se sentado sobre o balcão do hotel de seu avô paterno, o Hotel Flórida, numa pequena cidade do interior, onde havia uma campainha de chamada igualzinha.

Viu-se diante do balcão da venda, como os pequenos armazéns de antigamente eram chamados, ouvindo o tilintar da antiga caixa registradora.

Viu-se indeciso entre as lembranças, qual som seria mais semelhante ao de suas lembranças escorregadias e fugitivas?

Foi tirado de seus devaneios pela chegada do hoteleiro, que lhe deu as boas vindas, outro inesperado cumprimento perdido no tempo e esquecido num mundo cada vez mais desumano e impessoal.

Pediu um apartamento. Não havia. Só quartos simples. E um banheiro comum no fundo do corredor, onde ficava também o chuveiro.

Por um fugaz momento pensou em seguir em frente, procurar outra cidade, procurar um hotel melhor. Foi vencido por outras lembranças que imergiam de sua infância longínqua: aromas que vinham da cozinha.

- Afinal – disse para si mesmo – é só por uma noite.

A grande chave de fechadura era comum (outra raridade), o hoteleiro levou sua maleta até um dos quartos. Repetiu as boas vindas, despediu-se, disse que o jantarzinho seria servido em meia hora.

Olhou em torno. O quarto era simples. Pequeno. Limpo. Confortável.

Mas, como se perdido no tempo, ou inatingido por ele, não havia sequer um aparelho de televisão.

Sentou-se na cama macia, abriu a maleta, pegou uma muda de roupa, a toalha de banho do hotel, caminhou até o banheiro sentindo a estranheza da situação a que se desabituara.

O chuveiro era bom e quente, tomou um banho demorado que de certa maneira lhe lavou também a alma. Olhos fechados, suas lembranças eram evocadas pouco a pouco, incoerentes, inexplicáveis, inconcebíveis.

Alguma coisa estava acontecendo com ele, alguma coisa maravilhosa totalmente inesperada e irreal (seria mesmo?).

Vestiu-se, retornou ao quarto, colocou a toalha úmida sobre o espaldar da cadeira diante da pequena mesa. Foi até a janela. Lá fora, sob o dourado da lua que matizava tudo de dourado, o silêncio da noite só quebrado agora pelo canto das cigarras, outra lembrança esquecida no personagem da cidade grande que se tornara, achando que aquele seria o caminho correto e inevitável para a felicidade que acabou não encontrando em esquina nenhuma de sua vida.

Sentou-se a uma mesa do refeitório deserto, era o único hóspede. Foi servido pelo próprio hoteleiro, uma canja saborosa seguida pelas desculpas de sua presença inesperada, acompanhadas por feijão, arroz, ovos fritos e uma saladinha de tomate.

Sorriu, sinceramente disse ao hoteleiro que não tinha importância, que elas eram comidas de sua infância, que elas eram bem vindas.

Comeu lentamente, verdadeiramente saboreando cada garfada daquele alimento simples, temperado com saudade, com gosto de “que falta você me faz”.

Depois caminhou até a pracinha deserta, sentou-se a um dos bancos, ficou olhando a lua dourada lá em cima, bem acima das folhagens copadas das árvores antigas que embalavam o canto das cigarras sob uma brisa suave que lhe trazia o perfume de flores.

Sua visão se turvou, deixou de ver distintamente a lua, a noite, como num torpor viu-se submergir em lembranças tão esquecidas, tão ausentes, tão sem razões aparentes. Como sua vida se tornara.

Era rico, tinha muitas posses, muitos recursos. Mas não tinha o que verdadeiramente contava: uma razão para isso. Sua vida era infeliz, sem sentido, fútil, inútil, vazia.

Ficou na pracinha deserta por um longo tempo, apenas deixando os fatos se fazerem presentes sem motivos aparentes, sem um encadeamento lógico, atribuindo tudo isso ao cansaço que não sentia verdadeiramente.

Foi mais a dureza do banco de cimento que o fez se levantar e retornar ao hotel. Deu boa noite ao hoteleiro, foi para o quarto, vestiu o pijama, deitou-se, em pouco tempo adentrou num sono pesado e sem sonhos.

Como sua vida.

 

II

Acordou cedo no outro dia, confuso, despertado por um som que custou a reconhecer como sendo um inconcebível canto de galo também perdido em algum lugar impreciso de sua longínqua infância.

Sentou-se na cama, atordoado, como se não tivesse acordado de todo.

Levantou-se à procura do banheiro, deparou-se com uma única porta, só então os fatos se encaixaram e ele lembrou que estava num hotelzinho simples, que o banheiro ficava lá no fundo do corredor.

Procurou o roupão que inexistia, teve que rir de si próprio. Vestiu-se, foi até o refeitório tomar o café da manhã. Então perguntou ao hoteleiro se havia alguma coisa diferente na cidadezinha que merecesse ser visto. Perguntou com suavidade, com delicadeza, afastando a possível grosseria da frase. Foi aconselhado a visitar uma lojinha do outro lado da praça, que vendia coisas antigas e era também uma espécie de loja de penhor.

Olhou seu carro estacionado na rua, onde o deixara, a lataria coberta pela suave umidade do sereno da noite. Quase sem se dar conta do que fazia estendeu a mão, riscou a letra inicial de seu nome no vidro embaciado, circundou-o por um coração grande demais, cônscio que o espaço vazio talvez jamais fosse preenchido por outra letra.

Atravessou a praça inconcebivelmente deserta, parou por uns momentos diante da lojinha, avaliando se realmente valia a pena entrar ou se devia seguir incontinente seu caminho.

Deu de ombros. Não tinha pressa nem razões nem prazo para chegar a lugar algum onde ninguém o esperava. Tinha todo o tempo do mundo para si mesmo, como se isso o privilegiasse inutilmente de alguma forma estranha.

A placa entalhada em madeira, pendurada sobe a porta, o decidiu: “O Relicário”. Que relíquias poderia encontrar ali, se o nome realmente fizesse jus ao que se propunha?

Ao abrir aquela velha porta e receber no rosto o sopro do ventilador de teto, ao sentir o cheirinho de madeira velha, chá quente e flores frescas, ao ler no quadro-negro as ofertas escritas a giz, teve a impressão de haver entrado na fotografia de um tempo que já não existia mais, de um tempo em que tudo era bom e belo.

Na lojinha escura que rescindia suavemente a incenso, foi atendido por uma senhora que se lhe afigurou uma doce vovozinha que parecia estar ali desde os princípios dos tempos, quase imperceptível, mimetizada a miríades de coisas e objetos preciosos.

- Fique à vontade, meu filho. Se precisar de alguma coisa, é só me chamar.

Agradeceu. Ficou ali por muito tempo, olhando cada objeto com prazer. Afagava suavemente e com cuidado cada um deles, como se assim pudesse apreender sua história, seus significados. Não encontrou nada que o motivasse adquirir.

Resolveu ir embora, agradeceu à senhora.

Teve que parar diante da porta pela qual entrara e que agora se encontrava fechada. Estranhou, não se recordando de tê-la sequer encostado.

Sua mão se estendeu inutilmente à procura da fechadura que não existia.

Voltou-se confuso para a senhora que o olhava com um meio sorriso nos lábios. Sem entender nada, enfim perguntou:

- Esta porta está errada...  Não tem fechadura. Como faço para abri-la?

O meio sorriso da senhora se tornou um sorriso inteiro.

- É assim mesmo – respondeu docemente. - Esta é a porta do coração humano, só se abre do lado de dentro. Se você tiver um coração puro, bastará apenas encostar seus dedos na porta que ela se abrirá.

Para sua inconcebível e inesperada surpresa ele assim fez, a porta se abriu suavemente.

Confuso, agradeceu mais uma vez.

Só quando se virou para sair viu o saxofone apoiado no suporte, em um canto junto à porta. Reconheceu, pelo tamanho, que era um sax alto. Foi até lá e o pegou. Parecia velho, mas bem cuidado, o latão brilhava, e ele viu o pano usado para o polimento na campânula do instrumento.

Ele nunca tocara saxofone, nunca nem tentara, mas o som daquele instrumento era a única música que realmente conseguira fazê-lo

se iluminar por dentro.

Viu-se estático, irresistivelmente atraído e paralisado diante do saxofone.

Incrédulo, viu (sentiu) sua mão se estender e se apoiar delicadamente no instrumento.

Ele, justamente ele, que nunca tocara instrumento nenhum. Sequer chegara próximo a um saxofone.

- Por que – perguntou-se – por que estava se sentindo tão inconcebivelmente atraído justamente por um saxofone que nunca vira antes?

Um saxofone velho, numa loja velha, numa cidade velha, em sua vida velha...

A cicatriz em sua mão se tornou mais pálida, consequência de um acidente de infância do qual decorreram muitas lágrimas. E dor.

Tocou com a ponta dos dedos o instrumento com delicadeza, intuiu mais lágrimas em sua alma, de repente ele sabia que naquele sax havia feridas mais profundas do que as que trazia em suas lembranças, um sentimento incompreensível - mas palpável - de intensa e incompreensível perda, como se fosse inconcebivelmente um ser vivo.

A lembrança surgiu fácil, necessária, imprescindível, compatível.

Em algum lugar impreciso e do qual não se lembrava mais reviu um desconhecido tocando sax, curvando o corpo, se endireitando e gingando como se bailasse com o instrumento, a música bela e viva, iluminando-o por dentro, tocando com sua alma.

O som mais puro do que qualquer coisa que já escutara. A maldita luz no fim de todos os seus túneis, reconheceu inquestionavelmente.

Soube, de repente, que um instrumento daqueles podia produzir

um som capaz de escoar toda a tristeza e esperança da humanidade, o que o deixou aturdido.

Apaixonou-se pelo som do sax naquele dia.

Era como se viesse de algum lugar nas profundezas de si próprio. Nunca mais foi o mesmo desde então.

Segurou-o desajeitadamente, virou-se para a dona da loja, com uma voz rouca que não reconheceu como a de si próprio perguntou:

- Este sax... está à venda?

A senhora imobilizou as agulhas de tricô com uns instantes, olhou-o profundamente como se desnudasse sua alma e minasse suas defesas, pareceu gostar do que viu (sentiu).

- Gostaria de comprá-lo? – retorquiu.

Por um momento quedou-se, pensativo, sem saber ao certo o que estava fazendo, sem saber o que responder.

- Não sei tocar... nem sei por que estou lhe perguntando isso...  – respondeu, mais para si próprio.

A senhora sorriu, embevecida, como se afinal houvesse encontrado alguém por quem esperara a vida inteira.  E que, finalmente, depois de tanto tempo, enfim chegara.

- Este sax não é para qualquer um – disse baixinho. – De certa maneira, é mágico. Não pode ser vendido a qualquer pessoa. Acredita em magia?

- Como?... – perguntou ele, confuso diante da pergunta.

- Perguntei se você acredita em magia.

- Magia? No sentido de coisas mágicas?

Ela riu outra vez.

- Não, em magia de verdade. Coisas mágicas fazem parte da magia. Uma pequena parte dela.

Ele pensou por alguns instantes, indeciso ao que responder. Lembrou-se da porta sem fechadura.

- Não sei. Por outro lado, num paradoxo que nem eu entendo, acredito que algumas coisas sem explicação podem ser possíveis...

- Como o nosso encontro de hoje? – perguntou ela com suavidade. – Nunca lhe disseram que nada na vida acontece por acaso? O acaso que nos traz coisas ruins de que sempre nos queixamos. Mas, também, nos traz coisas boas que nem sempre agradecemos, não é mesmo?

Hesitou por um rápido momento. Então a resposta surgiu, imutável.

- Sim, como o nosso encontro de hoje. Como parar nesta cidadezinha tão vazia da qual nem sei o nome. Como encontrar esta loja. Como encontrar este instrumento...

Afagou o sax com inexplicável carinho, devoção e incompreensível respeito. Então continuou:

- Diga-me... como ele veio parar aqui?

A senhora sorriu docemente.

- É uma história longa. Tomaria um chá comigo, enquanto eu a conto?

(continua)

 



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