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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. XIV ao Cap. XVI

Quarta, 18 de julho de 2018


(continuação)

 

XIV

Dilma Rousseff, a “perigosa e atuante terrorista”. Segundo ela.

Dilma Vana Rousseff. A “pé-de-chinelo”. Segundo a verdade dos fatos.

Nascida em família de classe média alta e educada de modo tradicional, Dilma interessou-se pelos ideais socialistas durante a juventude, logo após ochamado Golpe Militar de 1964.

Iniciando na militância, passou a participar de organizações que executavam atividades ilícitas de táticas terroristas, o que a levou para a clandestinidade. É controverso seu grau de participação nas ações das organizações clandestinas que integrou, o Comando de Libertação Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR Palmares).

Após um ano de clandestinidade, saindo de Belo Horizonte em Janeiro de 1969, passando pelo Rio de Janeiro e mais tarde São Paul, Dilma foi presa na rua Augusta em Janeiro de 1970.

Uma série de prisões de militantes conseguiu capturar seu companheiro José Olavo Leite Ribeiro, que se encontrava três vezes por semana com Dilma. Conforme o relato de Ribeiro, após ter sido torturado revelou o lugar onde se encontraria com outro militante procurado, em um bar na rua Augusta, em São Paulo.

E, 16 de Janeiro de 1970, obrigado a ir ao local acompanhado de policiais disfarçados, seu colega também foi capturado e, quando já se preparavam para deixar o local, Dilma, que não estava sendo esperada, chegou.

Percebendo que alguma coisa stava errada, Dilma tentou sair do local sem ser notada. Desconfiados os policiais a abordaram e encontraram-na com uma arma na bolsa. Se não fosse a arma é possível que tivesse escapado.

Foi levada para a OBAN – Operação Bandeirantes onde, segundo ela, teria sido torturada por vinte e dois dias com palmatória, socos, pau de arara e choques elétricos.

Nos meios da Repressão e do Jornalismo, há quem veja o relato de Dilma com ironia e descrédito, especialmente quanto a possibilidade de alguém sobreviver a vinte e dois dias de tortura.

“- Ela não é a mulher maravilha” – debochavam suas declarações.

Uma companheira de cela, Maria Luisa Belloque, assegurou na época: “A Dilma levou choque até com fiação de carro. Fora cadeira do dragão.”

Como diria Apparício Fernand de Brinkerhoff Torelly, o Barão de Itararé, “fato sobejamente conhecido por todos que não o ignoram”, a cadeira de dragão seria uma cadeira extremamente pesada, cujo assento é de zinco.

Teria uma travessa de madeira que empurraria as pernas da pessoa para trás, de modo que a cada espasmo de descarga elétrica aplicada suas pernas batessem na travessa, provocando ferimentos profundos. Que deixariam marcas permanentes, verificáveis e constatáveis em qualquer exame médico de corpo de delito. Marcas permanentes que jamais foram constatadas, haja imaginação por parte dela. E ingenuidadde de quem acredita nesta possibilidade.

Já os choques elétricos seriam aplicados com uma maquininha que seria chamada “pimentinha”, na linguagem dos torturadores. Essa máquina daria uma voltagem em torno de 100 Volts e de grande corrente, ou seja, em torno de 10 Amperes, o que significaria um choque de 1000 Watts. Que seria imensamente aumentado quando a pessoa fosse molhada com água.

É bom saber que nos frigoríficos porcos são abatidos com choques de 60 Volts. E o porco é o animal cuja carne mais se assemelha anatomicamene à carne humana. Ou seja, uma pessoa dificilmente sobreviveria a um choque dessa intensidade.

Estas peculiaridades técnicas justificam e fundamentam os que vêem os relatos de Dilma com ironia e descrédito, especialmente quanto a possibilidade de alguém sobreviver a vinte e dois dias de torturas, como por ela alegado.

Posteriormente Dilma denunciou as torturas em processos judiciais, inclusive fornecendo nomes de militares e policiais que teriam participado dos atos.

Ainda que tenha revelado o nome de alguns militantes, conseguiu preservar Caros Araújo (que viria a ser preso vários meses depois) e sua ajudante no recolhimento de armas, Maria Celeste Martins.

Uma lista de nomes de presos encontrada na casa de Carlos Lamarca relacionava prioridades para serem trocados por pessoas sequestradas pelo terrorismo.

Dilma, dada sua inexpressividade e mediocridade – apesar do que sempre se pavoneou e divulgou indevidamente – nunca foi lembrada, cogitada ou trocada, cumpriu sua pena regularmente.

 

XV

Voltando um pouco no tempo. Meados dos anos sessenta.

Nossa casa estava em festa, pela primeira vez papai conseguia reunir a maior parte da família paterna em Araraquara, num Natal.

Havíamos mudado do 222 da Leite de Mores para nossa casa nova na avenida Ipiranga, 475. Depois corrigido pela prefeitura para 325. Hoje tem o número 329, sabe-se lá por que.

Nossa, enfim. Papai a construiu com dificuldade, sempre tivera que ajudar financeiramente os dois lados da família. O que nos afetou diretamente, como não poderia deixar de ser.

Naquele domingo o almoço seria na garagem da casa, onde fora montada com tábuas corridas uma grande mesa de banquete, a maior que eu já vira em minha vida. Não lembro quantos parentes estavam presentes, mas era muita gente.

Por volta das dez horas da manhã papai estava fazendo a barba quando saiu do banheiro muito pálido.

- O que foi, João? – perguntou mamãe.

Papai hesitou por um momento, como se indeciso ao que responder.

- Foi uma coisa muito estranha... Estava fazendo a barba, de repente meu rosto desapareceu do espelho e ali estava o rosto de meu pai, sorrindo para mim... depois desapareceu...

Faziam pelo menos dez anos que vovô Joaquim havia partido para o outro lado da vida.

Mamãe o olhou com apreensão.

- Tem certeza? – perguntou, até com certa descrença, sem coragem de perguntar se ele havia bebido alguma coisa àquela hora da manhã.

- Tenho. Lembro-me direitinho do rosto de meu pai, era ele. Não me pergunte como nem porquê, mas era ele...

Mamãe deu-lhe um copo com água e açúcar. Papai ficou por algum tempo se recompondo, olhando longe, muito longe, para dentro de si mesmo, imerso em suas lembranças. Depois foi terminar a barba e não se tocou mais no assunto.

A grande mesa da garagem foi ocupada, a alegria era geral. Quem mais estava feliz aparentemente era papai, congraçar toda a família pelo menos numa data festiva era um sonho que ele acalentava há anos.

De pé, demo-nos as mãos e juntos rezamos um Padre-Nosso, agradecendo nosso Deus. E então sentamos.

Mal o almoço começara, inesperadamente, para nossa total surpresa, papai deu um grito, ergueu e nos mostrou a mão esquerda onde o dedo anular esquerdo sangrava sob a aliança que estava inexplicavelmente deformada e cravada.

Foram precisos dois alicates para cortar e remover a aliança, libertando o dedo ferido de papai.

- Mas o que foi, como aconteceu isso? – perguntava mamãe, alarmada, diante do inexplicável. Mesmo porque, quando acontecera, sua mão esquerda não segurava sequer um copo.

- Não sei... – murmurou papai, muito pálido – não sei...

Foi quando, também inesperada e inexplicavelmente, uma das convidadas, dona Antonieta, mãe do tio Hivarth, teve uns estrimiliques (perdoem o termo), entrou no que poderia ser um transe, colocou-se de pé e com uma voz que não era dela começou a dizer pausadamente:

- Em nome de Jesus Cristo, eu abençoo a todos.

Fez uma pequena pausa enquanto se dirigia especificamente a papai.

- Meu filho, peço-lhe perdão pela brincadeira boba que fiz e que acabou machucando, perdoe seu velho pai.

Diante do profundo silêncio que se seguiu, disse mais algumas palavras que não lembro mais, tornou a nos abençoar em nome de Jesus Cristo e se foi. Dona Antonieta, então, desabou na cadeira e voltou a si, sem a menor ideia do que acontecera.

Estávamos atônitos. Afinal, toda a família era essencialmente católica. Particularmente dona Antonieta, esta jamais se envolvera com qualquer coisa do chamado Espiritismo, tinha verdadeiro pavor até de falar no assunto. Quando lhe contaram o que sucedera, simplesmente recusou-se a acreditar.

Nunca tivemos uma explicação razoável para o ocorrido, mas o conjunto de acontecimentos nos obrigou e obriga ainda hoje a, pelo menos, admitir que existem muitas coisas que escapam de nosso entendimento.

Alguns anos depois, mudamos para Taubaté. Eu queria estudar Direito e me tornar um Delegado de Polícia. Até que um dia, sem saber do meu,  papai me disse que o sonho dele seria eu me formar também Engenheiro para que tivéssemos uma empresa juntos. Não pude dizer não, ele merecia. Aquilo, e muito mais, o que fosse. E lá fui eu passar no vestibular em Mogi das Cruzes e ingressar no curso de Engenharia Civil em 1970.

De repente, final de 1971, a canoa que sempre trazia papai começou a dar sinais que um dia voltaria vazia.

De repente, abatido pela vida, papai foi consumido em três meses por um irreversível câncer fatal. Dias de melhora se intercalavam horrendamente com dias de piora, nada dava resultado.

Naqueles tempos, o câncer era praticamente invencível, nada o combatia com sucesso.

A imprensa, principalmente a televisão, começou a veicular que chá da casca do ipê roxo era um poderoso anticancerígeno, o que praticamente dizimou com estas árvores no Estado de São Paulo. Elas perdiam suas cascas tiradas à força, morriam pouco a pouco triste e lentamente, como se ao menos solidárias com os doentes que deveriam e não podiam salvar.

Comecei a viajar muito com papai, dirigindo para ele à procura da casca do ipê roxo. Tornei-me, apesar da diferença de idades, a ser seu confessor, confidente, passei a escutar suas confidências, a ouvir seus problemas, a sofrer com seus desencantos, a partilhar esperanças.

A saúde precária lhe impôs um rigoroso regime, que lhe impossibilitava comer a maioria das coisas. Uma das poucas a que se viu reduzido, e que apreciava, era o pão de glúten.

Eu ia ao supermercado duas vezes por semana lhe comprar o pão, ele merecia aquela alegria que era uma das muitos poucas que lhe restara.

Doutor João, como era chamado carinhosamente pelos filhos, o ‘tor J’ão, como era especialmente chamado pela filha mais velha.

Um dia o câncer se complicou. Nas oscilações de apenas três meses, desesperei-me na contingência de deixar de rezar a Deus pelo seu restabelecimento, e suplicar que acontecesse o que fosse melhor para ele. E dois dias depois, doutor João se foi.

Somos cinco irmãos: dois homens e três mulheres. As idades eram muito poucas, nunca se é velho o suficiente para se perder irremediavelmente alguém que se ama.

O filho mais velho de repente se viu convertido na mão firme, no apoio que sustentaria toda a família. Consolar a mãe foi mais fácil. O outro irmão pareceu aceitar resignadamente a morte do pai. Difícil foram as três meninas.

O filho mais velho não pôde chorar, alguém tinha que ser a fortaleza. Abraçava um a um, consolando um de cada vez, dizendo palavras que não sentia e não sabia que tinha dentro de si.

A irmã mais velha, quase com desespero, lhe falou que não conseguia mais dizer "’tor J’ão". A filha do meio só sabia chorar inconsolável. A filha mais moça lhe disse que não conseguia mais se lembrar do rosto amado do pai. E eu simplesmente não tinha o que responder, tentando com um abraço forte e sentido dizer tudo o que as palavras não podiam mais expressar.

Não pude chorar, alguém tinha que ser a fortaleza que os mais fracos precisavam. Ninguém se deu conta que talvez eu fosse o mais fraco de todos. Mas não pude chorar. E não chorei.

Foi a primeira vez que senti na alma a incompreensão e incongruência do mundo: a vida continuava igualzinha lá fora, como se nada tivesse acontecido. E dentro de mim, tudo estava destroçado.

Papai estava internado no hospital, eu havia saído para fazer alguma coisa que não sei mais o que fosse, despedi-me dele com um beijo na testa, ele sorriu seu sorriso lindo para mim.

Quando voltei, cerca de meia hora depois, na entrada do hospital deparei-me com meu irmão que vinha em minha direção. Ele não conseguiu dizer nada, nem era preciso, apenas balançava incredulamente a cabeça como se em nada mais pudesse acreditar ou dizer. A compreensão me atingiu dura, imediata, implacável.

Com passos trôpegos fui até seu quarto, dois enfermeiros ali estavam.

Papai estava de olhos fechados, como se dormisse. Minha forma de sofrer, minha maneira de chorar, que eu havia desenvolvido na Polícia, se fez presente. Aproximei-me lentamente, acariciei com suavidade seu rosto que finalmente estava em paz.

Um dos enfermeiros pediu delicadamente que eu saísse, eles tinham que preparar o corpo.

Dei um último beijo na testa de papai, e me focei a sair e ir em frente, tinha que contar o fato à família e simplesmente não sabia como fazê-lo.

Depois veio a missa de corpo presente, a igreja cheia daqueles que quiseram e ainda queriam bem nosso amado pai. Pedi ao padre que lesse o Sermão da Montanha, no livro de São Mateus, ficamos ouvindo e chorando aquelas verdades que nortearam a vida de papai e que ele sempre procurou nos transmitir.

Depois, a ida horrenda para o cemitério ao lado da via Dutra. Um instante de incompreensão e conflito, para nós, os filhos, até de desrespeito: papai sempre reclamara daquele carrinho de transportar o caixão, tinha verdadeira ojeriza pelo mesmo. Um dia nos pediu que nunca deixássemos fazerem aquilo com ele.

Seu pedido nos ocorreu forte quando do carro funerário estacionou e depuseram o malfadado carrinho no asfalto. Agarramo-nos ao caixão, dizendo que ninguém iria colocar papai naquilo. Os tios ficaram coléricos, brigaram ao gritos conosco, dizendo que se fosse assim então nós – os filhos – que levássemos o caixão.

Forças vieram do nada para quatro pares de braços que não teriam nunca forças para aquilo, mas levamos papai como ele sempre quisera que fosse.

O túmulo da família paterna encerrou apenas seu corpo físico e seus sonhos, um dos quais ter uma empresa com o filho também Engenheiro. Desabei num pranto violento e inconsolável em 1974 quando me formei e tive meu diploma na mão. Ah, como eu queria poder entrega-lo a papai...

Fui até seu túmulo contar-lhe que me formara, túmulo onde ele estaria sempre olhando a Via Dutra, uma das estradas que aprendera a amar em sua vida profissional de Engenheiro Civil, o melhor deles. E de onde sempre estaria olhando cada um de nós.

Consegui manter unidas a mãe e as irmãs. O outro irmão não quis ficar mais em casa e se mudou para a casa de um parente.

Os dias foram passando. Um dia tive que ir ao supermercado. Lista na mão, comecei a pegar o que a família precisava. De súbito me dei conta que estava parado tempo demais diante de uma das gôndolas, sem o perceber. De súbito me deu conta que as lágrimas me corriam silenciosas pelas faces. De súbito me deu conta que meu coração se partia mais uma vez em uma agonia absurda e indescritível e que as comportas de minha dor se haviam rompido. De súbito me dei conta que meus dedos, de uma maneira desapercebida e inconsciente, numa saudade e falta infinitas, acariciavam suave e dolorosamente, como se fosse o rosto de meu  querido pai, um pacote de pão de glúten.

Poucos anos se passaram quando Armando, casado com a prima Irene, também ficou doente e foi hospitalizado. Estava em coma quando outro fato inexplicável aconteceu.

Familiares que estavam em visita em seu quarto contam que, de repente, fez-se um frio inconcebível na manhã calorenta. A temperatura desabou em segundos, como se todos tivessem sido transportados de repente para uma câmara fria.

Foi quando ouviu-se a voz de Armando, acalmando:

- Não tenham medo, é minha mãe que veio me buscar.

Logo no momento seguinte ele expirou com suavidade, desfez-se o frio, o dia voltou à sua normalidade.

A mãe de Armando havia falecido anos antes. Como explicar?

 

XVI

Havia sido aprovado no vestibular de engenharia civil da então OMEC – Organização Mogiana de Educação e Cultura, hoje UMC – Universidade de Mogi das Cruzes.

Papai estava indo para Taubaté, fui junto até Guarulhos, onde pegaria um ônibus para Mogi, meu irmão Renato nos acompanhava.

Já era noite, hora de minha despedida difícil, papai parou o carro na via Dutra ao lado de uma fábrica abandonada onde eu aguardaria o ônibus.

Beijei-o e o abracei, abracei meu irmão, e com os olhos cheio de lágrimas e coração apertado fiquei vendo nosso Volks desaparecer lentamente na distância.

Só anos depois soube por meu irmão que papai, quilômetros à frente, teve que parar o carro, tanto que também chorava. Preocupado com o filho mais velho que a vida estava levando cada vez mais para longe dele.

A escuridão do local não me perturbou, eu tinha a presença de meu .38 na cintura, bem ao alcance da mão. E não me incomodaria de usá-lo, caso fosse preciso. Coloquei a malinha no ombro e comecei a caminhar até um ponto de ônibus.

A viagem foi longa, não me importei. Em Mogi fui para uma pensão próxima à estação do trem, no dia seguinte, logo cedo, fui à faculdade, então em pleno centro da cidade.

Era um prédio grande, do outro lado ficava o diretório acadêmico, procurei o responsável, apresentei-me como policial e novo aluno. E lhe disse que não aceitaria ser submetido ao trote.

O então terceiro anista Ademar ficou visivelmente pálido. O diretor e dono da escola, Padre Melo, na tarde anterior havia sido preso pelo DOPS.

- Não se preocupe – disse-me. – Vou lhe dar um crachá dizendo que você está isento do trote por ser casado. Só lhe recomendo que não revele a mais ninguém que é policial, isso não é bem vindo aqui, desculpe a franqueza.

Preencheu a mão o crachá com o timbre do diretório, fui à secretaria fazer minha matrícula. Procurei então uma lojinha e comprei uma imitação de aliança, pois eu era solteiro. Lembro-me que a aliança era muito larga e meu dedo muito fino, eu era bastante magro na época, coloquei um enchimento de esparadrapo para que ela não caísse.

Uma vez por mês eu ia de tem até a Estação da Luz me encontrar com papai, que vinha me ver e me trazer algum dinheiro, sempre muito pouco, mas era o que estava a seu alcance. Se por algum motivo ele não viesse, eu não teria dinheiro nem para pagar a passagem de volta para Mogi.

Eu o tapeava, dizendo que fazia minhas refeições na cantina da faculdade que cobrava um preço mais simbólico. Ele nunca me contestou, mesmo que – talvez – não acreditasse completamente em mim.

Um almoço frugal na pensão, nada de jantar, mas aquele ano passou depressa.

Foi fácil sobreviver à falta de comida, difícil para mim foi sobreviver à saudade de papai e minha família que deixara tão longe.

Minha condição de policial acabou transpirando, mas fui respeitado e relativamente aceito pelos colegas.

Isto acabou quando me transferi para Taubaté, para onde minha família acabara de se mudar, as aulas começariam dali a uma semana.

Apresentei-me na Delegacia, Doutor Maurício consultou Araraquara, fui integrado ao Setor de Investigações Gerais.

No dia seguinte a praça principal da cidade estava um verdadeiro cenário de guerra. Estudantes haviam iniciado uma manifestação relâmpago quando um sargento PM que por lá passava acidentalmente se viu cercado pelos manifestantes.

Foi arrancado de sua moto e dominado antes mesmo que pudesse sacar sua arma, que foi tomada por um dos estudantes.

Caminhei até eles, saquei meu revólver e disparei um tiro para o gramado, tudo se imobilizou por um instante. Então estiquei minha mão esquerda para o estudante que segurava a arma do PM e disse com determinação indiscutível:

- Polícia. Me dê a arma. Agora.

Ele titubeou, mas eu apontava a minha para sua cara, cuidando para também não ser dominado e rendido.

- Ande, me dê a arma – repeti. – Ninguém precisa morrer hoje aqui.

Ele a entregou para mim.

- Dê o fora daqui – completei. – Rápido.

Ele desapareceu em meio aos outros estudantes.

- Agora soltem o sargento – determinei aos que o seguravam, guardando meu revólver. – Muita calma. O senhor também, sargento, por favor, com muita calma.

Soltaram o indignado PM que queria dar uns murros em alguém.

- Calma, sargento – pedi, devolvendo-lhe a arma. – E vamos sair aqui enquanto podemos. Nosso troco vem depois.

Ele concordou, ergueu a moto caída no chão, peguei uma carona com ele e saímos da praça, os manifestantes abrindo passagem para nós.

No primeiro dia de aula cheguei atrasado. Ao pedir licença para entrar na sala, fui imediatamente reconhecido, um murmúrio abafado tomou conta da classe. Procurei um lugar vago e me sentei, ninguém falou comigo.

Os quatro anos que se seguiram foram muito difíceis. Fui tolerado por ser aluno, mas não fui aceito por eles, o que dificultou minha vida acadêmica principalmente nos chamados trabalhos de grupo.

Eu era do grupo do “eu sozinho”, muitos professores se recusavam a aceitar meu trabalho individual, os zeros se sucediam e comprometiam minhas notas, mas consegui sobreviver a isso também.

Só não acabaram comigo porque sabiam que eu estava constantemente armado. E naquela cidadezinha do interior, logo todos estavam sabendo o que eu havia feito como policial na noite anterior.

O que não impedia, entretanto, que procurassem me prejudicar de todas as formas possíveis e imagináveis. Vezes sem conta esvaziaram o pneu de meu carro no estacionamento da escola, comecei a ir e voltar a pé, tive que pedir aos colegas que me pegassem com a viatura na saída.

A lista de presença corria livre na sala. Muitas vezes, no local de minha assinatura, lá estava um palavrão. Tive que ir à diretoria solicitar que o bedel fizesse seu trabalho como devia ser, coletando pessoalmente as assinaturas. Isso me deixou ainda mais mal visto, como se fosse possível. Porque, muitas vezes, assinavam por colegas faltosos, o que a partir daquela data deixou de ser feito. E, aparentemente, me odiavam cada vez mais.

Meus problemas com os professores não se limitaram a não aceitarem os meus trabalhos individuais quando deveriam ser de grupo.

Naqueles tempos concursos eram raríssimos e as delegacias se viam na contingência de ter que pedir apoio às prefeituras, que eventualmente forneciam um ou mais fuincionários que pudessem trabalhar nelas.

Em Taubaté havia dois deles: o Manoel, que respondia por plantões no setor de rádio comunicações, e o Vanderlei, que, por ser muito forte, dava apoio à Investigação. Este último, apesar dos pesares, era uma ótima pessoa, de boa paz, que inclusive lhe justificava o apelido de “Barra Limpa”. Também ajudava todos os que podia.

Na rua Dona Chiquinha de Mattos, bem ao lado da antiga rodoviária, havia um barzinho cuja especialidade era servir sardinha frita. Uma tarde Vanderlei chegou na Delegacia bastante abatido e desgostoso. Duas noites antes tivera um problema com um desordeiro e estava suspenso pelo então prefeito Milton de Alvarenga Peixoto.

E ele nos contou, em sua simplicidade:

- Eu estava esperando dar o horário para pegar o ônibus para ir para casa, fui até o bar comer algumas sardinhas. Foi quando chegou o Nelson da Luz bêbado e começou a encrencar comigo. Cheguei a mudar de lugar, mas ele foi atrás. Então pedi: “-Oh, Nelson, vê se me deixa em paz, deixa eu comer meus peixinhos em paz”. Ele pegou meu prato e jogou tudo no chão. Eu lhe dei um tapa, paguei e fui embora, deixei barato.

Na manhã seguinte Nelson foi se queixar ao prefeito, que imediatamente mandou darem uma suspensão ao Vanderlei.

À noite eu estava na faculdade. Milton Peixoto também era professor lá.

E havia sido amigo pessoal e colega de meu pai na antiga ENE – Escola Nacional de Engenharia.

Inesperadamente interrompeu o que tinha a ousadia de chamar de aula, colocou as mãos sobre minha carteira e me disse gratuitamente, para que toda a sala ouvisse:

- Não admito que funcionário meu seja violento, seu amigo Vanderlei está suspenso e vai levar o que merece.

Senti-me estarrecido, mesmo porque nada tinha a ver com o sucedido. Meu mal estar piorou quando toda a classe caiu na risada e começou a bater palmas, aplaudindo-o.

Não sei se fiquei com o rosto pálido ou muito vermelho, mas me levantei e também alto para que a classe ouvisse lhe disse, cara a cara:

- Aqui o senhor é professor. Como deveria ser prefeito lá na prefeitura, não deveria misturar as coisas. Se o senhor saísse mais de seu gabinete, talvez passasse a saber o que realmente acontece nesta cidade. Não tenho nada a ver com o assunto.

Peguei meu material, olhei-o firme e comecei a me retirar da sala. Ainda não chegara à porta quando ele elevou a voz e me disse:

- Não é porque fui amigo de seu pai que vou aturar você.

Voltei-me lentamente.

- Não lhe devo satisfações, não sou seu funcionário. Se tem alguma queixa com meu trabalho, vá falar com o Dr. Maurício. Ou pode ir se queixar ao bispo, como preferir.

A sala, completamente silenciosa, acompanhava tudo atentamente, nosso mestre e prefeito ficou apoplético, tentou dizer mais alguma coisa mas minha reação o pegara desprevenido, não conseguiu.

Caminhei até a porta, de onde me voltei mais uma vez.

- E mais uma coisa, Doutor. Nunca mais fale em meu pai. Ele jamais aceitou uma injustiça, o senhor não é digno sequer de dizer seu nome, quanto mais de dizer que foram amigos. E não me envolva em suas demagogias.

Desci a escadaria e fui caminhar na noite fria. Nunca mais nos falamos.

Enfim chegou Dezembro de 1974, a formatura seria no dia 22.

Durante o transcorrer do ano os que deveriam ser colegas começaram a se preparar para as solenidades, continuei a ser ignorado, não fui convidado.

Na véspera da formatura, talvez fragilizados pela data, uma comissão veio enfim me procurar.

- Você não colaborou com os custos – explicaram – mas gostaríamos que você participasse conosco da formatura.

Olhei-os com amargura.

- Não, obrigado, é um pouco tarde demais para isso.

E voltei-lhes as costas para sempre. Até hoje fui o único aluno da história da faculdade a receber o diploma na secretaria da escola.

Quando fui para meu carro, saí sem olhar para trás. Quatrocentos e vinte formandos, quatro anos que se me afiguravam nunca ter existido, nem um único amigo deixado para trás.

Atravessei lentamente a cidade, olhos enevoados, atravessei o viaduto da Dutra e subi lentamente o aclive do cemitério. Caminhei lentamente entre os túmulos até chegar ao que eu precisava. Comovido, lágrimas incontidas escorrendo por minha alma e face. E então disse, com voz embargada:

- Oi, papai...

Coloquei com delicadeza meu diploma sobre o túmulo, como se o estivesse colocando nas mãos de meu amado pai que me fazia e faz tanta falta.

- Vim lhe trazer meu diploma, papai...

Não consegui dizer mais nada, comecei a chorar incontrolável e inconsolavelmente no cemitério vazio.

(continua)

 

 

 

Leia:

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. I ao Cap. II

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. III ao Cap. V

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VI ao Cap. VII 

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VIII ao Cap. IV 

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. X ao Cap. XI

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. XII ao Cap. XIII

 

 



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