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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VI ao Cap. VII

Quarta, 20 de junho de 2018


 

VI

Meus dezoito anos chegaram depressa, naquela Araraquara que tentou mas não conseguiu me cativar.

Uma tarde, subindo a avenida São Paulo em direção ao centro, entre as ruas 1 e 2, descobri uma nova loja na calçada direita. Não que eu me interessasse por lojas, nunca me interessaram, sempre fui incapaz de parar diante de uma vitrine de roupas, para dizer só um exemplo.

No entanto, aquela chamou irreversivelmente minha atenção: A Esportiva era, sobretudo, uma loja de armas, a segunda da cidade. A outra era a Baldan, na rua 2, lá na longínqua praça de Santa Cruz, onde havia um jacaré empalhado pendurado na porta de entrada.

Como que hipnotizado, vi-me irresistivelmente atraído por armas de todos os tipos, tamanhos, calibres e formatos.

Eu, contrariando meu pai que queria que eu só estudasse, conseguira meu segundo emprego. O primeiro fora no Jornal O Imparcial, onde comecei como revisor e logo trabalhava cumulativamente como repórter policial.

Minha boa redação ficou conhecida, bem como minha idoneidade e lealdade, fui convidado pela Polícia Técnica a me tornar seu escriturário, naquele tempo não havia concursos.

Nunca, até então, havia uma visto uma só morte violenta. Para ser preciso, até aquela idade sequer havia ido a mais que dois velórios, e ainda assim de rápida passagem.

O dia a dia da perícia criminal não é enfadonho, para quem gosta. Nas primeiras semanas, só ocorreram acidentes de trânsito, sem vítimas fatais. E de repente, meu primeiro caso de óbito: uma pessoa havia sido atropelada e morta numa rodovia.

A equipe foi imediatamente convocada: perito, fotógrafo, motorista e eu, então para adquirir experiência.

Na viatura segui calado, imerso em reflexões, o coração batendo forte dentro do peito. O que eu sentiria ao me deparar com a morte?

Foram os trinta quilômetros mais longos e ao mesmo tempo mais rápidos de minha vida. Descemos da viatura, eu com as pernas estranhamente fracas. Surpreendi-me com a normalidade do dia, não parecia que alguém havia perdido tragicamente a vida ali. Lá na frente, um volume coberto por um lençol que alguém piedoso havia conseguido sabe-se lá onde.

Surpreendi-me com minha frieza. Além de curiosidade, não estava sentindo absolutamente nada.

Integrei-me aos trabalhos periciais. Pelas informações um homem seguia caminhando ao longo da rodovia quando fora colhido por um automóvel em alta velocidade. Lembro-me que era uma subida, um acentuado aclive, como se diz tecnicamente. Pesquisamos o ponto de impacto, o inicio da infeliz ocorrência. Não havia marcas de frenagem aparentes.

Com a violência do choque, a infeliz vítima fora arremessada quase cinquenta metros à frente. Ao longo da pista, de tanto em tanto, pequenos farrapos de roupas e fragmentos de pele e carne, assinalando os pontos em que o corpo resvalara no asfalto.

Tiraram o lençol que cobria o morto. Respirei fundo e me aproximei. Surpreendi-me com o que me deparei: a vítima estava tão machucada, tão dilacerada, que deixara de ser uma pessoa. Afigurou-se como o boi no açougue, que perde sua identidade de animal e se torna carne.

Realizada a vistoria, o perito pediu que eu pegasse e trouxesse para a viatura um pequeno saco de estopa que jazia ao lado da pista. Examinei-o com curiosidade, continha as compras que o morto havia feito perto da cidade. Encontrei um pequeno pedaço de papel, a relação de compras: meio quilo de feijão, um de arroz, uma caixa de fósforos,  óleo...

Senti então as lágrimas correndo pela face. Aquele pequeno pedaço de papel me havia atirado violentamente de encontro com a realidade. Aquele monte de carne dilacerado havia sido um ser humano. Naquela tarde, ele não chegaria mais à sua casa. Naquela tarde, os que lhe queriam bem não mais o teriam à mesa do jantar. Naquela tarde, uma mulher e possivelmente algumas crianças não teriam mais seus carinhos e seu olhar de afeto.

Naquela tarde, encontrei a morte de frente. A realidade crua da vida matou também em mim a ingenuidade e inocência que ainda trazia em mim. Naquela tarde deixei de ser criança que brincava de ser gente grande. O perito me confortou, ninguém riu de mim, respeitaram minha dor. Aprendi a me brutalizar e a aparentar uma insensibilidade falsa: nossa maneira de sofrer, nossa forma de chorar.

Da mesa do Posto Regional de Polícia Técnica para visitas fortuitas à sala dos investigadores, que se tornavam cada vez mais frequentes, costumeiras e necessárias, a distância foi muito curta.

Como não tinha “cara de Polícia”, comecei a ser convidado para fazer algumas investigações sigilosas e reservadas.

No início o fazia desarmado, mas depois de algum tempo isto se tornou necessário e indispensável. Tornou-se inevitável comprar um revólver, e agora ali estava eu diante do gerente d’A Esportiva escolhendo minha primeira arma.

- Que boniteza... – murmurou para mim meu avô, bem ao meu lado.

Senti-me desfalecer por um rápido momento quando esta lembrança aparentemente esquecida surgiu do nada. Vovô João de Deus continuava a ser o meu amigo, e o seria até o final de meus dias.

Seria? Ou continuaria dali para sempre, como eu sempre gostava e precisava acreditar?

Pálido, firmei os dedos no vidro do balcão e respirei fundo. O dono da loja me olhava, preocupado.

- Está se sentindo bem? – perguntou.

- Sim, deve ser este calor – respondi, evasivo.

Como lhe contar o que acontecera sem ele duvidar da minha verdade?

Continuei:

- Bem, já lhe expliquei o que preciso, o que sugere? Papai tinha um Ina .32, mas para o trabalho policial este calibre não é muito indicado.

Ele avaliou por um momento o que eu solicitava. Então abriu um armário de onde retirou uma caixa. Desembrulhou um revólver de cano curto e o apresentou:

- Taurus Special calibre .38, cano de duas polegadas, seis tiros, oxidado, cabo de ebonite. Uma excelente arma. Se ficar com ela sugiro que troque o cabo por um de madeira, dará mais firmeza de empunhadura. E use sempre um coldre de couro tipo saque rápido.

- Mas, e o alcance dele? E a precisão? Não é um cano muito curto?

- Já fui sargento armeiro do Exército – explicou. – Mais de noventa por cento do tiro de combate policial se dá a menos de três metros. Pode ter certeza que este é suficiente, é uma arma que impõe respeito. E é fácil de ser portada e dissimulada.

Estendi a mão

- Posso?...

Ele me entregou a arma, realmente ela se encaixava perfeitamente, como se fosse um prolongamento natural de meu braço.

- Menos de três metros, é? – murmurei, pensativo.

Ele sorriu.

- Isso. Conhece na Polícia Civil de São Paulo, a RUDI?

Retribui o sorriso.

- Rondas Unificadas do Departamento de Investigações.

- Também conhecido como Tempestade, pelos bandidos. Sabe por que?

- Não, isto eu não sei.

- Porque literalmente os policiais da RUDI desabam como uma tempestade imprevista sobre os bandidos. É como você terá que agir. Quanto mais rápido for, quanto mais surpreender, mais seguro estará. E nem sempre precisará disparar um só tiro.

Devolvi-lhe a contragosto a pesada arma.

- É fácil matar alguém? – perguntei.

Ele levou alguns segundos para responder, como se olhasse dentro de si mesmo. Então respondeu, a nuance em sua voz revelando que lembranças que não deviam ser lembradas haviam talvez aflorado.

- É fácil demais, basta apenas apontar e apertar o gatilho. Difícil é conviver com isso depois.

- Mesmo se for em legítima defesa?

Colocou inesperadamente a mão em meu ombro, como se confidenciasse.

- Filho, você passará o resto da vida se perguntando se foi mesmo necessário, se não havia uma outra forma de resolver senão atirando. Que você nunca precise saber isso.

Olhei-o com cautela e perguntei cuidadosamente:

- Já passou por isso, não é mesmo?

Ele não respondeu, nunca soube se acontecera com ele ou com um colega próximo. E então ele mudou de assunto.

- Bom, que achou da arma?

Foi minha vez de sorrir.

- Uma boniteza...

Ele estranhou.

- Como?...

- Era uma expressão de meu avô – expliquei. – Não é muito usada, não é mesmo?

- Realmente, nunca a havia ouvido. Lindeza, sim, boniteza é a primeira vez. Gostei.

- São coisas dos caiçaras lá de Ubatuba.

- Conheço, já estive lá uma vez. Eles colocam nomes nas canoas, não é mesmo? Como se fizessem parte da família.

- Elas fazem parte da família – assegurei. – E isso me faz pensar: deveria eu dar um nome a uma arma, como vi num livro policial?

Ele me olhou, ponderando o que iria falar. E como iria dizê-lo.

- Isso é você que terá de decidir. Muitos acham que é só um pedaço de ferro. Outros –  uma minoria –  acham que elas acabam adquirindo uma espécie de alma que tem que ser respeitada e, às vezes, benquista. Você terá que tratar sua arma com carinho, ela poderá ser a diferença entre muitas coisas.

- Principalmente continuar vivo – completei.

- E também manter muita gente viva, quando eles entenderem que é preferível se render que enfrentar.

- Um dissuasão, presumo.

Ele riu de minha colocação.

- Você é instruído... É também a primeira vez que ouço alguém dizer isso. Já havia visto esta palavra escrita, mas nunca falada. Pois use sua arma com sabedoria.

Sorri, agradecido.

- Obrigado pela lição, sabedoria tem o senhor. Posso passar aqui de vez em quando para continuarmos nossa conversa?

- Todas as vezes que quiser.

Comprei, aguardei os trâmites legais e a concessão de porte que foram agilizados por agora eu ser um policial. Peguei a documentação, fui na loja buscar a arma, troquei o cabo de ebonite por um de madeira como o dono me aconselhara, escureci-o com extrato de nogueira fosco para combinar com a oxidação do revólver, coloquei as seis balas no tambor, afivelei o coldre de couro na cinta.

Agora sim, agora eu me sentia um policial de verdade. Era 1967.

Meu batismo de fogo: eram quatro bandidos. Assaltantes à mão armada que um dia acabaram matando um comerciante e ferido outro gravemente. Como diziam os jornais locais, urgia tomar providências definitivas. Araraquara era uma cidade boa demais para ter este tipo de coisas. E começamos a agir. Inúmeras diligências, diversas informações seguidas, e nada. Os que sabiam preferiam se calar, tinha medo, a quadrilha era de fora e perigosa.

Começamos a pressionar. Os vagabundos locais, digamos que por uma questão de território e sossego, resolveram colaborar.

O rádio da viatura avisou e forneceu o provável endereço, tínhamos que fazer a averiguação. Eu e um colega, apenas. Deixamos a viatura escondida num matagal e seguimos a trilha indicada. No fim da picada, um barraco, um mocó, como dizíamos. Com cautela olhamos por uma fresta da janela: os quatro estavam ali, as armas em cima da mesa, perto das mãos. Felizmente não havia cachorro.

Afastamo-nos. O rádio de mão não tinha alcance com a Delegacia. O da viatura, mais potente, estava muito longe. Vimos que os bandidos logo iriam sair. Decidi prendê-los, o parceiro não quis se arriscar, ficou com medo de morrer. Com raiva, chamei-o de covarde. Tomei sua arma. Mandei-o ir para a viatura e pedir reforços. E que fosse rápido, porque se achasse que fosse preciso eu iria entrar, mesmo sozinho.

Ele disse para eu não fazer loucuras, que poderíamos pegá-los em outra ocasião. Tornei a chamá-lo de covarde, disse que não merecia o distintivo que usava. Ele se foi e eu fiquei novamente junto à fresta, o coração batendo forte dentro do peito, uma arma em cada mão. Não iria perder aquela oportunidade, desse no que desse.

Pela conversa, vi que os bandidos iriam sair. Olhei o relógio, tempo de menos até para que o colega chegasse na viatura. Nem pensei nas consequências do que poderia sair errado. Corri, tomei impulso e estourei a porta com o pé, caindo ajoelhado dentro do barraco, as armas engatilhadas.

Com o inesperado da surpresa, os bandidos não tiveram tempo de reagir. Cobrindo os quatro com as armas, avisei que era Polícia, que ninguém se mexesse, que eu atiraria se me dessem o menor pretexto.

Os quatro me olhavam estupefatos, a maldade brilhando perigosamente em seus olhos, avaliando as possibilidades de pegar as armas e acabar comigo. Para impor respeito, estourei com um tiro um garrafão de vinho que estava sobre a mesa. Foi fácil, daquela distância. Mas não podia me aproximar mais para afastar as armas pelas quais ansiavam tanto.

E fiquei ali, na espera mais angustiosa e sofrida de minha vida. Foi quase uma hora, até que o colega chegasse com mais policiais. E eu na agonia daquela ameaça que me fazia estremecer sob o reconhecimento que daquela vez exagerara. Se um deles tentasse pegar a arma e eu tivesse que atirar, não teria tempo nem condições para atirar nos outros três ao mesmo tempo, antes que acabassem comigo.

Foram algemados e colocados na viatura. Eu desabei no chão, vítima daquele violento desgaste nervoso que esperava nunca mais sentir na vida.

Não me chamaram de herói, chamaram-me de louco. Eu não queria ser mesmo, queria apenas fazer o meu trabalho, naqueles meus 20 anos. Como justificar que aquela fora a atitude por mim considerada como a mais certa para o momento? Escutei o diabo dos Delegados e dos policiais mais velhos. Não tinha importância, valera a pena, eu o faria de novo, se tivesse oportunidade. Coisa de Polícia, bom policial, como eu procurava ser.

Aprendi como ir ao inferno e voltar dele com vida.

 

VII

A viatura preta e branca da Polícia Civil rodava vagarosamente em segunda marcha, quase a 10 km/h, luzes apagadas. Naquela velocidade reduzida os poucos transeuntes e os prédios passavam lentamente, quase imobilizados, como se fosse o desenrolar de um antigo filme em câmara lenta.

A cidade estava calma nas horas tardias daquela madrugada fria, o rádio mais silencioso que funcionando com as mensagens da central de comunicações.

Éramos dois policiais, apenas dois, fazíamos a proteção da cidade aparentemente adormecida, ambos sabendo que era apenas uma questão de tempo e ocasião para que as lavas explodissem sob as tênues cinzas calmas numa erupção quase que incontrolável sem o uso da força.

A madrugada estava fria, nossos olhos esmiuçavam pacientemente os becos e cantos escuros onde o perigo se ocultava e espreitava mais pacientemente ainda.

Conversávamos baixinho, trocando ideias e experiências que pudessem tornar a ronda mais curta. Mais algumas horas e o turno estaria encerrado.

- O que eu penso da vida? – perguntou Silva, mais como se indagasse a si mesmo, ordenando seus próprios pensamentos numa resposta mais apropriada e, talvez, por isso mesmo, mais exata. – Sabe, um velho índio norte-americano certa vez descreveu seus conflitos internos da seguinte maneira: “Dentro de mim há dois cachorros. Um deles é cruel e mau. O outro é muito bom, e eles estão sempre brigando”. Quando lhe perguntaram qual cachorro ganhava a briga, o ancião parou, refletiu e respondeu: “Aquele que eu alimento mais frequentemente”.

Pesei por alguns momentos o alcance do que me fora dito.

- É... Com isso fico me perguntando se, de certa forma, não nos tornamos o alimento dos cachorros bons – completou.

Tive que sorrir com a observação.

- Não, acho que acabamos nos tornando o veneno dos cachorros ruins...

- Pode ser, é um caso para ser pensado. Nas reuniões da igreja temos debatido a existência do bem e do mal dentro de cada ser humano. Temos ambas estas essências dentro de nós. Qual prevalece?

- Não sei, acredito que temos as duas, mas o importante é a que fazemos uso.

O silêncio fez-se momentaneamente entre nós.

- Qual prevalece em você? No que você acredita? – perguntou.

- Acredito no bem que sou capaz de fazer. Ser Polícia, para mim, é mais que idealismo, é a minha maneira de tentar fazer a coisa certa, as coisas que acredito devam ser feitas. Gosto de crer que alimento mais o cachorro bom que o mau.

Silva riu.

- Como o cachorro bom poderia dar um tiro num vagabundo, como você deu ontem?

- Não, você sabe que as coisas não são bem assim. É fácil e necessário fazer isso quando alguém está atirando em nós, esta é uma situação que não serve de parâmetro.

Ajeitei a calibre 12 no colo, o cano frio tranquilizando e atenuando a aparente desigualdade de forças num confronto contra o Mal.

- Você mesmo, Silva, diga-me como é possível você frequentar grupos de igreja e não ter o menor escrúpulo em pendurar um bandido no pau-de-arara? Não é incongruente, para se dizer o mínimo?

- Pode ser, admito que aparente ser assim. Mas, ao mesmo tempo, isso é falso, é uma impressão errônea. Lamentavelmente temos que combater o mal com o mal, não há outra maneira. Conhece alguma outra forma?

- Não, realmente não conheço. Só que, às vezes, fico me perguntando se as coisas não deveriam ser diferentes. E pior: fico me perguntando se não gosto do que estou fazendo. De como estou fazendo.

- Mas você gosta de ser Polícia, acabou de dizê-lo.

- Não foi bem isso que eu quis dizer. Fico me perguntando se gosto de pendurar vagabundo, de dar tiro em bandido. E acho que sei a resposta, se bem que, às vezes, eu não goste de enfrentar isso. Nem de aceitar isso.

- Mas estamos enfrentando o mal. O dos outros.

- É aí que pode estar o problema. Será mesmo? Só o dos outros? Uma vez eu ouvi que uma pessoa estuda Psicanálise para resolver os próprios problemas. Às vezes me pergunto se não me tornei Polícia simplesmente para aflorar livremente o meu lado mau...

- Pode até ser. Lembra-se quando se tornou Polícia? Como agia?

- Fui católico, hoje não o sei mais... Mas, no início, lembro-o bem, recusava-me a dar um simples tapa num vagabundo, achava que isso não era certo.

- E?...

- E só começaram a me respeitar, a me levar a sério, quando comecei a bater também. Daí, para dar um tiro em alguém, tornou-se muito fácil. Fácil demais, por sinal. Você sabe... Matar é muito fácil, basta apertar o gatilho. Difícil é conviver com isso depois, como um dia me disseram.

Meu parceiro riu outra vez.

- Sei... Como quando os levamos para a salinha dos milagres para um interrogatório e, quando voltam para a cela, dizem com orgulho para os demais: “dei, mas dei no pau”. É... “contei tudo o que os homens queriam saber, mas sob tortura” – parodiou. – Mesmo quando não levaram um único tapa. É a justificativa deles por terem falado. E ainda são endeusados pelos companheiros de cela, por isso.

- Isso mesmo. Sabe o Delegado Sivuca, do Rio de Janeiro?

- Conheço de nome.

- Pois é, ele tem uma posição muito boa quanto a isso: “Por que interrogatório razoável? Razoável porque não temos uma Polícia científica, temos uma Polícia empírica. O interrogatório razoável é aquele em que você não utiliza meios científicos. Tratando-se de um marginal, de vez em quando tem-se que dar um cascudo, que é p’rá ele se lembrar que não ‘tá sendo tratado como uma pessoa decente. Tem que haver uma distinção entre o interrogatório de um trabalhador e o de um assaltante. Se os dois forem feitos da mesma maneira, nós estaremos sendo injustos com o trabalhado. Esta é a razão porque, em algumas ocasiões, o marginal necessita levar uns cascudos.”

- Concordo plenamente.

- Por outro lado, um policial tem que agir sempre com determinação. Deve ter consciência do que precisa ser feito, seja a que preço for.

- Como assim?

- Veja o pessoal da ROTA. O que eles propõem? Ou impõem, como preferir?

- Não sei, sei apenas que são conhecidos por serem muito violentos.

- Violentos? Questão de opinião e de conveniência de quem critica. Eles dizem, e agem assim: “No mudo há dois caminhos: o do Bem e o do Mal. E, se optar pelo lado do crime, um dia você vai cruzar com a ROTA. Não importa, para nós, como você vai vir em nossa viatura: sentado ou deitado. Mas você vai vir”.

- Deitado?

- É. Baleado. Ferido ou morto.

- Igualzinho a nós... Não é o que fazemos, também?

- Sim, é o que fazemos. E por que fazemos? Porque aprendemos que “mais vale um bom susto que mil conselhos”. E há a frase de Maquiavel: “Melhor ser temido que amado”. No início eu discordava, depois a vida me forçou a concordar.

- E o que o fez mudar de opinião, a aceitar?

- O triste fato de que, quem ama, perdoa. Eles sabem e se aproveitam disso. Esta frase não deve necessariamente ser lida sob a ótica policial, mas da vida em geral. Não temos que ser firmes com nossos filhos, para que um dia eles não estejam no chiqueirinho lá atrás?

- É... Sentado ou deitado, como diria o pessoal da ROTA.

- É. Mas não seriam bandidos. Pelo menos não os veríamos assim. São sangue de nosso sangue, como aceitar isso?

- Melhor que Deus nos dê a graça de nunca passarmos por isso e ter que descobrir isso.

- Por falar em Deus, conhece a Oração do Policial?

- Acho que não...

- “Dai-me, Senhor, a coragem de ser alicerce, quando tantos fazem questão de ser fachadas vistosas. Dai-me a prudência do silêncio, face aos que vivem no rumor insensato. Dai-me o clamor da justiça, diante da hipocrisia de quem não vê quem sofre. Dai-me as lágrimas que outros não derramam, pra que eu possa sorrir com os que só sabem chorar. Dai-me a coragem de morrer, para que outros tenham medo de matar”.

- Bonita... mas, cá ente nós, não gostei muito da parte “que eu tenha a coragem de morrer...”. Acho que prefiro aquele ditado que diz “melhor ser julgado por sete que carregado por seis”.

- Você é um debochado...

- Eu?... ora, ora, e que me diz da frase de Friedrich Nietzsche? Ainda neste último domingo foi nosso tema de reflexão na igreja: “Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares durante muito tempo, para um abismo, o abismo olhará também para dentro de ti”.

Fez-se algum tempo de silêncio enquanto o parceiro pensava a respeito.

- Se entendi bem, significa em síntese que a linha fronteiriça entre o bem e o Mal é muito tênue. Que é muito fácil transpô-la. Corre-se o risco sem volta de se deixar de ser do Bem para se tornar a ser do Mal. Seria isso?

Para ser franco o grupo não chegou a uma conclusão, mas estou inclinado a concordar consigo.

- Por falar em frases, lembrei-me de uma do Milton Le Cocq d’Oliveira, o detetive Le Cocq, do Rio de Janeiro: “Não importa a quem nós favoreçamos. Do favorecido com a morte do marginal não podemos aceitar nada, a não ser obrigado. Não podemos aceitar dinheiro para matar ninguém. No momento em que passarmos a aceitar dinheiro por termos eliminado marginais, deixaremos de ser Polícia, vamos ser mercenários”.

- ‘tá vendo? E depois dizem que a maioria dos policiais são medíocres. Viu quanta cultura diferente discutimos na última meia hora? Bom, vamos para a delegacia, nosso turno está acabando. A propósito, este Le Cocq não foi o criador do Esquadrão da Morte, do Rio de Janeiro?

- Não, ele foi o motivador. Le Cocq foi um Detetive exemplar, um líder que procurava orientar principalmente os companheiros. Ele tinha uma ótica própria do que era ser policial, e procurava transmitir isto para todos. Sabe como ele definia o bom policial?

- Confesso que nada sei da Polícia carioca...

- Ah, está perdendo muito... Le Cocq ensinava: “Nem sempre o bom policial é aquele que é bem visto aos olhos dos chefes. Às vezes ele é mal visto, mas cumpre sua obrigação. Não é permitido criticar a Polícia, mas ele faz crítica ao seu superior imediato, briga pelos companheiros, apresenta sempre um saldo positivo. O mal policial é aquele que nunca é processado. É o que não opera, que vem à Delegacia e fica sentado. Atende a todos com um sorriso, não resolve caso de ninguém. Em sua ficha não tem elogios. Também não tem punição. É um inútil”.

- Era um visionário. Mas, e quanto ao Esquadrão da Morte?

- Em 26 de Agosto de 1965 Le Cocq saiu com companheiros para efetuar a prisão de um marginal, Manoel Moreira, conhecido como Cara de Cavalo.

Foi morto covardemente pelo bandido, sem chance de reagir. Sua morte provocou o descontrole da Polícia carioca, que só sossegou quando mataram  Cara de Cavalo num tiroteio. Há muito folclore sobre esta morte, alguns da Mídia endeusaram o vagabundo, tentando transformá-lo numa vítima, num herói.

Os companheiros de Le Cocq criaram a Scuderie Detetive Le Cocq para homenageá-lo e tentar congregar todos os bons policiais, dando-lhes um apoio maior que na verdade não tinham.

O emblema está aí na internet para quem quiser ver: a caveira sobre duas tíbias cruzadas, representando o perigo da profissão policial. As iniciais “E.M.”, significando Esquadrão Motorizado, corporação policial a que Le Cocq pertencera antes de se tornar Detetive, o Esquadrão de Motociclistas.

No início, para se tornar associado, o policial passava por uma investigação sigilosa muito rigorosa, poucos eram admitidos. Com o passar dos anos, e mudanças nas diretorias, isto foi abrandado, infelizmente causou mais danos que benefícios. Agora qualquer um podia se associar mais facilmente, bastava apenas ser indicado por dois policiais pertencentes à Scuderie, que em tese se responsabilizariam pelo mesmo.

Muita gente que não devia foi admitida, o “E.M.” do emblema começou a ser desvirtuado pela Mídia como sendo Esquadrão da Morte. Então cometeram o segundo erro: não deram a devida importância ao fato porque, de início, isso veio de encontro aos interesses do grupo, tornaram-se mais temidos ainda.

Quando os policiais da Scuderie chegavam, era aquela orgia: corria até quem não devia. E um dia, quando se deram conta, não havia mais como reverter a situação, estavam todos rotulados como integrantes do Esquadrão da Morte. Sem distinção.

- Acho que posso entender – replicou.

- Além do silêncio que se fez sobre o assunto, poucas vozes tiveram a coragem de se levantar em defesa da Scuderie, não era saudável para a vida pessoal e principalmente profissional de ninguém. A qualidade de ser policial se tornou um fator agravante, já chegavam ao Forum prejulgados.

- Silêncio inconveniente, este...

- Infelizmente foi, e o preço a ser pago foi muito alto, altíssimo. Chegou-se a um ponto em que ninguém falava nada, tiveram que seguir a definição do Zen-Budismo: “Quem sabe não fala, quem fala não sabe”.

- Mas algumas vozes se levantaram em defesa da Scuderie. Sem sucesso?

- Sim, sem sucesso, como era de se esperar. Um destas defesas foi minha, publicada na antiga revista Fatos & Fotos, edição nº 467 de 15/01/1970:

“Tive oportunidade de me comover com o último exemplar de F&F o qual, à página 84, estampava o clichê de nossa Scuderie, sublinhando o título “O Esquadrão da Morte vai ser punido?”.

Realmente oportuna a providência do DD. Delegado Lísis Nogueira, tencionando em acabar de vez com o E.M.

Medida nada mais justa, se considerarmos que o Esquadrão executa pobres, indefesos e inofensivos anjinhos que não matam, não roubam, não violentam e não seviciam, e que muita falta fazem à sociedade.

Anjinhos estes que só portam um 45 nas mãos, porque hoje não é mais tão fácil como antigamente de se encontrar uma lira para entoar cânticos de glorificação. Anjinhos que matam pais de família e destroem lares.

Só quem teve a nada invejável oportunidade de ouvir o choro e ver o desespero e a dor estampada no rosto de quem perdeu um ente querido nas mãos destes anjinhos está credenciado a julgar a obra do E.M.

Quando ao sr. Leopoldo Heitor, como advogado deverá saber como relatar a quem de direito os responsáveis pelas execuções, ao invés de apenas insinuar. O que ele está procurando? Maior notoriedade que a conseguida com o caso Dana de Teffé? Qualquer um fala, até um papagaio. Vejamos provas, não palavras sensacionalistas.

A respeito das acusações velas à nossa Scuderie, nada vou dizer porque estamos muito acima destas mediocridades. Se alguns dos nossos companheiros policiais mataram, o fizeram para não morrer, o que é comumente conhecido como legítima defesa.

As palavras que nosso líder Le Cocq sempre nos repetia ainda estão bem vivas em nossa memória: “O bandido é covarde, não gosta de topar com o policial de frente, prefere atirar pelas costas. O bandido que atira num policial não merece viver, antes que mate, deve morrer. Eles têm que aprender que valente é a Polícia”.

E os anjinhos morrem para que não matem mais. Nossa Justiça é arcaica e ultrapassada. Qualquer advogado talentoso pode libertar o pior marginal para qu este continue sua série de crimes.

A pena de morte é válida em qualquer guerra, como deve ser de seu conhecimento. Pois informo-o que estamos em guerra permanente contra o submundo do crime, e se matamos, o fazemos para não morrer. Lugar de bandido é o cemitério.

É muito fácil sentar-se à uma máquina e criticar. É mais conveniente do que subir um morro à caça e um criminoso que não hesita em atirar, sem saber se estaremos vivos para descer. Estes que hoje acusam a Polícia, amanhã, por certo, ao precisarem dela, não deixarão de procurá-la. E serão atendidos, apesar de tudo, porque nem sempre pagamos o mal com o mal, única linguagem entendida por certos elementos.

Assim como diziam os gladiadores na arena, Morituri te salutamus (Nós que vamos morrer te saudamos).

No dia em que tombarmos no cumprimento do dever, nos sejam dedicadas duas ou três linhas num canto inferior de alguma página interna, ao contrário do que acontece quando morre um criminoso num combate conosco.

É quando explodem as manchetes sensacionalistas de nossa imprensa falida e sem perspectivas, mas que apesar de tudo ainda apresentam honrosas exceções.

Esclareço aos espíritos não esclarecidos que o E.M. existente em nosso símbolo significa “Esquadrão Motorizado”.”

Mas tem mais. Houve um segundo escrito, não necessariamente ligado à Scuderie, mas sobre ser Polícia: “Dou fé que é uma profissão difícil. Protagonista da história cotidiana de um povo, quando não a olham de soslaio, sabem criticá-la duramente. Seu esforço se resume nos filmes com uma frase lapidária: sempre chegam tarde. A relação interpessoal que estabelece sabe rotular-se, maliciosamente, com a palavra "medo".

Seus homens e mulheres são iguais a você e eu. Nem mais nem menos. Mas com uma diferença: eles aprenderam a morrer por você e por mim, sem reclamações. Se existem sábios no mundo, é fácil reconhecê-los pelos soberbos exemplos que diariamente contemplamos. Se existem mártires no mundo, podemos comprová-lo através da leitura de um obituário.

Porém, poderia se negar que os heróis vivem entre nós? Dobrar uma esquina, olhar distraidamente um homem ou uma mulher "de cinza" pode ser o princípio de um descobrimento. Porque ali mesmo, nestes seres, arde uma chama que se denomina "cumprimento do dever", e vibra uma onda potente, luminosa, que no momento final se articula assim: heroísmo. Você me diz: - Mas que estudos têm? Em geral, me parecem medíocres...

O contesto: - Esta gente que você mediocriza tem feito do sacrifício seu mais precioso apostolado. Temos que estudar muito o que lhes diz respeito. Porém, com uma característica inconfundível: a de tirar horas de seu sono, da atenção de sua própria família, de relegar muitas ilusões, passatempos e frivolidades, tendo em vista o que tanto comumente se esquece: o bem comum.

- Sim, mas para isto são pagos... – você me responde. E não posso deixar de ressaltar que a paga não é tão expressiva, como você acreditaria. Aposto que você ganha mais, muito mais que este homem que, a cada hora, está pondo a vida à sua disposição, à disposição de você, para substitui-lo, para colocar o peito no lugar do seu, no instante do perigo. Acaso ouviu você alguma vez falar do sacrifício pessoal? Num policial isto é um fato, aqui e em todo o mundo.

Ele, em função de sua autoridade, é uma ordem na sociedade a que serve, e símbolo da autoridade do Estado que o torna um braço armado em sua defesa e na defesa da coletividade. Cada passo que dá, pela rapidez de suas atividades e intervenções, impõem, em todos os casos, uma severa autocrítica, a qual anda muito escassa no mundo de hoje. E esta autocrítica pressupõe, com muitas razões, a existência de uma consciência moral, de um modo sincero e direto de corrigir o imperfeito, condicionando-o à verdade e à certeza.

Porém volto ao herói, e não posso deixar de recordar o imortal Rodo quando o define como a luz da razão. Muitas vezes outro autor, não menos sagaz, caracteriza o heroísmo como o triunfo deslumbrante da alma sobre a carne, isto é, sobre o medo, medo do sofrimento, da calúnia, do esquecimento e da morte. O herói, aqui e em todas as partes, destaca-se por sua fortaleza moral, por sua fé nas pessoas, ideais e ideias, que se demonstra na angústia, na dor e na própria morte.

- Você está me fazendo supor que entre os policiais há um saco cheio de virtudes...

Disto não tenho dúvidas. Há imperfeições, defeitos, fracassos, erros, como em todas as profissões e todos os trabalhos, até os mais nobres. Mas também há um compêndio de virtudes que são inegáveis. Poderia citá-los com nomes e sobrenomes, pois estas virtudes de que falo estão, em minhas lembranças, personificadas em homens e mulheres de honra, que foram e são policiais. Que estão entre nós, ainda que muitos deles estejam mortos. Eles são exemplos de amor a Deus, à Pátria, à família e ao próximo.

- Ora, vamos... A sua é uma simples opinião – você me diz.

- Eu o contesto: - Não se trata disso. Uma opinião não constitui centro no verdadeiro nem no falso. Por isso a minha não é uma opinião. É mais, muito mais, é uma experiência viva. Porque eu também fui Polícia.”

Mas vamos para a Delegacia, nosso plantão acabou por hoje.

(continua)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



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