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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Noites de Estrelas Intróito ao Cap. II

Quarta, 25 de abril de 2018

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INTRÓITO

 

Deparamo-nos com algum desconhecido - bem vestido - caído numa calçada.

Primeiro pensamento: - Deve estar passando mal, vou parar e socorrê-lo.

Deparamo-nos com algum desconhecido - maltrapilho - caído numa calçada.

Primeiro pensamento: - Mais um bêbado. Ou drogado.

E seguimos em frente, sem parar, e esquecendo completamente o assunto no momento seguinte.

Mas nem sempre é o caso.

Porque, no segundo, pode ser simplesmente um infeliz da vida (e são tantos, meu Deus) passado mal. Ou que sucumbiu à fraqueza. Do corpo e da mente.

Muitos anos atrás, na antiga Seleções do Reader’s Digest, li uma passagem de dois missionários que caminhavam alguns passos atrás de um mendigo.

- Só pela graça de Deus não sou eu que estou caminhando ali – disse um deles.

Assim é a vida. Para os que não o sabem ainda. Para os que não acreditam que as coisas podem mudar inesperada e brutalmente.

Enquanto estamos bem, todos estão sorrindo a nosso lado. Agora, balançou...

Nunca se esqueça: no dia em que você cair, ninguém estará a seu lado para lhe estender a mão.

Então, não caia.

Se conseguir, caminhe pela calçada, procurando não cair na sarjeta.

Você irá caminhar silencioso. Será o mínimo que poderá fazer. E também será tudo.

Sabe o que é se sentir sozinho bem no meio de uma multidão?

Pessoalmente eu até achava que sabia o que era solidão. Mas descobri que o que eu sentia (e sabia) não chegava nem perto do que é a verdadeira solidão.

É, são os detalhes que fazem e destroem a vida da gente.

Eu podia ser mais do que aparentava. Ou aparentar muito mais do que eu era.

- Eu atravesso as portas e as paredes como se elas não existissem... – um dia reconheci tristemente.

Mas, no fundo, sabia que quem não mais existia era eu.

 

 

I

 

Viagem mais longa.

Tantos quilômetros, para que? Mas agora, enfim, estava chegando, a última cidade vizinha há muito ficara para trás, ali estavam ainda os canaviais de sua infância e juventude.

O céu continuava azul como se lembrava, o sol muito grande e dourado matizando tudo de dourado, o dourado que deveria ter sido a sua vida.

E de tantos de nós, se não fosse querer muito.

Dez anos.

Tempo demais para passar. Tempo de menos para esquecer.

Vê a paisagem que pouco mudou, a despeito do tempo.

Caminhara muito. Um pé colocado diante do outro com dificuldade e cansaço, transformando-se em passos lentos que aos poucos, muito aos poucos, se transformavam em centenas de metros e depois, muito depois (ao que lhe parecia) se transformavam em quilômetros, os quilômetros que não tinham fim, que nunca chegavam ao fim.

Em seu andar lento e titubeante, ao menos tinha a liberdade de seus olhos livres no retorno ao passado, não os queria presos a uma estrada sem fim, sempre à frente mais que para os lados, caso estivesse dirigindo.

Riu um pequeno riso sem amargura. Amargura para que, naquela altura da vida e dos acontecimentos? Como dirigir um carro que nunca mais tivera? Que nunca mais viria a ter?

Mas podia olhar para dentro de si e submergir em suas lembranças.

E agora estava chegando. Há quantos dias estava andando? Seriam meses, naquela imensidão sem fim que percorrera metro a metro, passo a passo? Não o sabia dizer. Mesmo porque não importava, realmente.

Vê o primeiro trevo, alguns quilômetros adiante o segundo, depois o longo declive, a fábrica da qual não se recorda o nome agora com outro nome.

À direita, o longo paredão dos galpões da antiga ferrovia, aparentemente desativada, a escadaria da estação. O velho pontilhão que dá acesso ao outro lado da cidade dividida pelos trilhos. De uma forma estranha, pouca coisa mudou quando tantas mudaram.

Olha tristemente em torno, o coração pequenino. Não pode deixar de lembrar a música do Ataulfo Alves: era feliz e não sabia. E como era, meu Deus, como era. Seus lábios quase chegam a se arquear num sorriso amargo. E jogara tudo fora...

Atravessa o pontilhão. Imobiliza-se por uns momentos. A forte subida para o bairro é surpreendentemente um suave aclive. Estranho como as percepções mudam.

Covardemente, retorna em seus passos. Não tem coragem de ver, pelo menos naquele momento, a praça e a igreja, uma longa quadra acima.

Ouve a réplica do Big Ben tocar as horas. Automaticamente se vira procurando o relógio para conferir as horas. Claro, ele não está à vista. E mesmo que estivesse duvidava que conseguisse vê-lo com clareza, seus olhos já não são mais os mesmos da juventude.

Como seu corpo e sua alma, tudo foi devorado pelo tempo.

Vacila, ajeita mais uma vez a sacolinha no ombro, sacolinha que traz uma única muda de roupa e alguns parcos objetos que ainda têm, deixa para depois a visita à casa onde foi criado, o número 222 da casa da juventude.

É, lembra-se ainda daquele número.  

Só não sabe o número de sua saudade, o número do tamanho de sua saudade.

Sente um cansaço imenso. Cansaço? Recusa-se a pensar no assunto, teme se defrontar com a dolorosa verdade: a covardia, o medo de enfrentar o que tem que ser enfrentado.

Ao menos, de longe.

Enfrentar de perto era pedir muito.

Enfim, como poderia ser diferente? A vida não o ensinara a dizer adeus às pessoas que amara, mas sem tirá-las de seu coração?

Amara?

Amava!

Amava tanto, tanto, ainda amava tanto, que mesmo passados dez anos, mesmo apesar de toda a distância que tivera que palmilhar, ali estava ele.

Porque amor não é uma coisa que se esquece.

Mesmo quando não o merecemos.

Mas, principalmente, quando se sente.

Apesar de tudo, mesmo diante da culpabilidade e reconhecimento de seus erros, vez ou outra uma dolorosa amargura emergia incontida, transformando-se numa saudade avassaladora e cruel.

É, só ficam as lembranças...

E as culpas.

E o castigo.

Volta em seus passos, recomeça a andar agora sem destino, à procura de

um lugar para passar a noite que se avizinha. Um lugar. Qualquer um. Qualquer buraco, não importa, ele já se acostumara, ele que, no início, ainda tentara andar na calçada sem cair na sarjeta da vida.

E caíra, claro, como poderia ser diferente? A gente só descobre o que é realmente importante quando deixa tudo para trás, quando se perde tudo para sempre. Até onde chegaria, com seus remorsos?

O problema, o grande e indiscutível problema, é que não pagamos nossos erros sozinhos. Nós arrastamos pessoas com a gente, com nossos erros.

Caminha errático e lentamente ao longo do alambrado da ferrovia.

Lá adiante, enfim, encontra uma obra de drenagem em andamento, os grandes tubos de concreto podem servir como abrigo, já tem onde se acomodar.

Pelo menos, por aquela noite.

Isso não o preocupa, aprendera, como um alcoólico anônimo, passar um dia de cada vez. Ou uma noite. Afinal, como ainda se lembrava vagamente de suas aulas de catecismo quando criança (teria sido mesmo uma delas, algum dia? - questionava-se às vezes): já basta a cada dia o seu mal.

Procura o vigia da obra, explica que é só por uma noite (juro!), pede para dormir num dos tubos. Consegue autorização, mas tem que ir embora logo de manhã, antes que os trabalhos recomecem.

E luxo dos luxos: o vigia lhe permite usar a água de uma torneira.

É, ainda tem gente boa no mundo...

Gente boa que não se limita a apenas ser boa.

Gente boa que não se limita apenas a resolver os próprios problemas.

Gente boa que se empenha em conseguir tempo para estender uma mão a quem precisa.

Ou, simplesmente, uma palavra amiga de esperança, que nada custa mas às vezes é de um valor inestimável para quem a recebe.

Coloca a sacolinha num tubo, afastado da rua. Para ficar invisível.

Ri de uma maneira breve e insana. Ele, que raramente era visto, que raramente era notado, por imposição da vida aprendera a se tornar invisível. Pura questão de sobrevivência. As ruas eram más, muito más.

E, como testemunhara muitas vezes, às vezes se tornam mortais.

Pega na sacolinha uma garrafa e a enche de água. Não tem o que comer, a fraqueza incomoda, o estômago ronca, dói, mas a alegria de enfim ter chegado é maior que suas necessidades básicas.

Espera o movimento da rua acabar no adiantado da hora. Protegido pela escuridão despe-se e toma um banho na torneira, veste a única muda que tem e lava a que acabara de tirar, aprendera nunca deixar para depois o que tinha que ser feito quando era possível ser feito. Poderia não haver um depois.

Bebeu o que conseguiu, a água pesou no estômago, tapeou a sensação de fome a que já estava habituado. Afinal, eram anos de prática...

Estirou-se no tubo, dobrou (insuficientemente) a sacolinha e improvisou um simulacro de travesseiro, ficou olhando embevecido o céu tão cheio de estrelas.

Como se fosse apropriadamente um mantra totalmente pessoal, como fazia todas as noites ao se deitar, murmurou para si mesmo a consoladora frase de Érico Veríssimo:

- Olha as estrelas e tem coragem.

Olhava apenas e tão somente as estrelas, há muito deixara de procurar a lua, desde que ela deixara de ser doce e passou, em sua vida, a ser apenas uma enorme esfera luminosa, deserta e triste.

É, amar, às vezes, nos custa algumas lágrimas.

Enxugou as suas.

Adormeceu no momento seguinte.

 

II

A distância é longa, seu destino é distante. Caminha lento, precisa de tempo para se habituar ainda mais à ideia do que vai fazer.

Sobe lentamente a av. S. Paulo até chegar à rua 2, a rua do comércio, a 9 de Julho. Estranhamente, parece mais estreita de como se lembrava.

Não conhece ninguém que passa a seu lado, tempo demais. Não conhece as lojas atuais, para onde foram as de antigamente? Será que só restam em suas lembranças que pensava ter bloqueado, e que ali estavam tão vívidas?

Segue pela rua 2 até chegar à praça de Santa Cruz, uma quadra antes da av. Barroso. Pelo menos a igreja é a mesma, a casa da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

"Socorro, minha Nossa Senhora, me ajude. O que fiz da minha vida?"- suplica triste e inutilmente.

Faz o caminho de volta, mas pela rua 3, a rua São Bento, a rua dos cinemas. O antigo prédio da Câmara Municipal. O do Teatro Municipal foi substituído pela Prefeitura. Chegou novamente à av. São Paulo, no Largo São Bento.

Sente que pulou alguma coisa e volta em meus passos. Para quem está mergulhando de volta no passado, tem que ter todo o tempo do mundo, como se fosse uma protelação, uma fuga inconsciente.

Sorvete.

Sente em sua boca os sabores de antigamente. Entre as ruas 2 e 3, a sorveteria do japonês, a Sorveteria Nosso Sorvete. Nome horrível, sorvete excelente, principalmente o de creme suíço. Não existe mais, acabou quando o velho japonês morreu. Lamentavelmente os filhos não se interessaram em aprender a receita. Que pena.

Mas, mesmo que existisse, como comprá-lo? E como optar entre um bom sorvete e um café com pão e manteiga, mais baratos e que alimentam mais? Ao menos, por algum tempo.

Fica olhando sem ver o trânsito intenso. Ouve ao longe o apito do trem e aquilo lhe dói na alma. Recorda-se inexplicavelmente que todas as ruas paralelas à ferrovia são denominadas ruas: rua Antônio Prado (0), Rua Gonçalves Dias (1), rua 9 de Julho (2), rua S. Bento (3), rua Padre Duarte (4)... Todas as transversais são avenidas, e não tem números: av. S. Paulo, av. Brasil, av. Barroso...

Segue seu caminho, passa o antigo prédio do Forum. A próxima rua é a 4, a rua do Colégio Progresso, a escola das moças onde suas irmãs estudaram. Lembra-se do uniforme branco, não tem mais certeza da gravata, seria azul? Como estarão as irmãs que nunca mais viu?

Mais uma quadra e vira à esquerda. Caminha lentamente pelo bairro onde morara após se casar. Sente o coração descompassado dentro do peito, agora que está chegando. Procura o cinema. Onde está o bar da esquina que servia o melhor suco de tamarindo do mundo?

A maioria das casas, mesmo passados dez anos, ainda são as mesmas. Pintadas de cores diferentes, que seja, mas todas com uma sombra de tristeza nas fachadas simples, como se estivessem sendo engolidas pelo tempo. Ou será que seu coração é que o fazia as ver e sentir assim, em sua amargura?

Tantos quilômetros. E agora a pouca coragem fraqueja. Surpreende-se andando mais lentamente que o de costume. O coração martela dentro do peito, sente a respiração ofegante, e não é pela longa caminhada. A coragem vacila e se esvai. Hesita. Agora que chegou, o que está fazendo ali?

Mas se força a ir em frente, precisa ver, precisa saber.

E do outro lado da rua, finalmente, está a casa que procurava em seu regresso ao doloroso passado. Uma casa simples, uma varandinha no lado direito, a árvore do jardim foi cortada, o jardim não existe mais.

A casinha branca de suas lembranças está pintada de azul, mas os mesmos algarismos niquelados indicam o número que traz gravado a fogo em suas recordações.

Senta-se a um degrau, olhando aquela casa que lhe traz tantas lembranças.

Fica ali, tempo demais, não o sabe dizer. O que está fazendo ali? O que está esperando? O que estavam fazendo os vizinhos que ainda não haviam chamado a Polícia para averiguar aquele maluco, aquele vagabundo, que há horas olhava melancolicamente aquela casa, trazendo uma tristeza infinita em seus olhos que há muito deixaram de ver a casa e se voltaram para o interior de sua alma mais escura que a própria noite sem estrelas, sem ver mais nada além de suas lembranças e sua solidão?

Dez anos. E parecia que acontecera ainda ontem. O que estava fazendo ali? O que esperava? Nem ao menos sabia se a mesma família morava ainda ali. A família que fora a sua. E se morasse? O que aquilo modificaria nele? Faria bem, ou faria mais mal ainda para o qual estava preparado?

E estava preparado, realmente?

Dez anos. Uma vida. Como estaria agora a primeira namorada com a qual se casara e que o marcara tanto? Dois anos, três meses e onze dias para lembrar, uma inútil e insuficiente eternidade para esquecer.

Reviu em suas lembranças cada dia daqueles dois anos, três meses e onze dias. E todo o bem e todo o mal que haviam provocado nele. Todas as alegrias e tristezas, todas as recordações boas e más.

Mal chegara, deparou-se com a inutilidade de sua vinda, já era mais do que hora de ir embora. Como sabia que ia ser, mesmo sem o admitir, sua viagem fora inútil. Ele simplesmente não tinha coragem para atravessar a rua e bater naquela porta. Tinha medo do que ia encontrar, tinha medo do que ia sentir, tinha medo do que ia sofrer. De repente em sua mente só havia a sua última lembrança, um olhar de adeus que nunca iria conseguir superar. Ou esquecer.

Ergueu-se, estremecendo. Chega a dar alguns passos, mas se força a voltar e ficar mais alguns minutos a olhar aquela parte de sua vida da qual se despedia, desta vez talvez para sempre.

Uma esperança insana, absurda, irrealizável, de que de repente alguém que esperava saísse daquela casa e fizesse sua busca ter um fim. Ele não devia ter voltado, admitiu tristemente. Só ficaram lembranças, e não se pode, ou não se deve, viver de lembranças.

Há muito deparara-se com a dolorosa verdade:  não devemos depositar todas nossas esperanças numa só pessoa, como se estivéssemos perdidos em alto-mar, agarrados a um pedaço de madeira. Um dia ela se vai, e a gente naufraga. Mas, como fazer isto nas coisas de amor? Viu seu pedaço de madeira escapar de seus dedos e se afastar. E se afogou em suas mágoas e desamparo, mesmo que por sua única e exclusiva culpa.

Sente-se desfalecer, e não é só pela fraqueza e pela fome que lhe corrói o estômago. Senta-se junto ao muro, sem parar de olhar aquela casa que fora sua, do outro lado da rua, inalcançável, inatingível.

Como se fosse num sonho, num delírio, vê uma menininha de seus nove anos caminhando pelo corredor externo lateral da casa. Ela traz, com cuidado, um copo e alguma coisa embrulhada nas mãos.

Abre com dificuldade o portãozinho de grade, atravessa a rua e, diante dele, estende-lhe o copo e o embrulho.

Com um sorriso lindo diz, simplesmente:

- Para o senhor. Por favor, aceite.

Mãos trêmulas, ele segura com cuidado o que lhe é ofertado. Por um rápido instante seus dedos se roçam, o mendigo se retrai diante do reconhecimento.

Os cabelos da menina são do louro mais claro que ele já vira, os olhos grandes, redondos e azuis e, quando olhou para eles, teve a impressão de estar se olhando num espelho: tinha os seus olhos.

Sente um aperto na garganta e fica quase sem poder respirar.

Olhos agora míopes e astigmáticos, sem óculos (como compra-los?), ainda assim a visão foi reveladora. E deslumbrante. Era sua filha. Filha que não sabia sequer que existia.

Tem a convicção singela de que quer morrer. E a terrível certeza de que seu desejo não se cumprirá.

Sente uma irresistível vontade de chorar, ajoelha-se, tem a vontade e necessidade absurda de abraçar a menina, mas sabe que jamais poderia fazê-lo. Ou deveria.

- Como sabia que adoro café com leite? – pergunta, até para ganhar tempo e se recompor.

Ela ri e coça a ponta do nariz, exatamente como a mãe sempre costumava fazer quando não sabia bem o que dizer em seguida.

Ele se lembraria deste gesto pelo resto de sua vida, o jeito de uma lembrança tremendamente distante mas que, no entanto, estava e estaria sempre presente, inesquecível, plena de significados e dores.

Sem saber de onde consegue retribuir o sorriso e esconder o que sente, sua voz falha quando ergue o copo e o embrulho e agradece:

- Obrigado, você é muito gentil. Poderia abrir o embrulho para mim, por favor?

Estendeu-o para a menina, fica olhando embevecido enquanto ela desembrulha um pão com manteiga e o devolve.

O vagabundo toma um gole do café com leite, morde com cuidado o pão (já lhe faltavam muitos dentes). O alimento quente, dado com tanto carinho, atinge-lhe o estômago com uma intensidade que lhe toca a alma.

Força-se a esconder algumas lágrimas teimosas que se revelam iminentes e incontroláveis. Obriga-se a sorrir, agradece outra vez:

- Obrigado, você é mesmo muito gentil. E generosa.

Ah, Deus, como ela é bonita. Olha-a com mais cuidado, constata que seus olhos azuis tendem para o esverdeado. Com cuidado, faz o cumprimento:

- Mocinha, você é linda... Mas, me diga, por que me trouxe este café?

Ela ri para ele, o amanhecer do homem se ilumina inconcebivelmente ainda mais.

- Achei que o senhor estava com fome.

- E eu estava... muita... Obrigado. Sua mãe sabe que você fez isso?

Ela continua sorrindo.

- Mamãe me ensinou que a mão esquerda não precisa saber o que a direita faz.

- Então nem ela precisa saber disso?

- Não, ninguém precisa saber. Nem ela. Foi o que ela me ensinou.

- Sua mãe é uma pessoa sábia, muito sábia. Tenha orgulho dela.

A garotinha estranha suas palavras.

- O senhor a conhece?

- Não, querida, mas ela deve ser uma pessoa muito especial para ter lhe ensinado isso.

Hesita, por um momento horrível. Mas tinha que fazer a pergunta fatídica:

- E seu pai?

Por um momento o sorriso desparece de seus lábios e uma nuvem escura parece toldar seus olhos.

- Ele é bom, eu gosto dele... mas não é meu pai de verdade... Meu papai de verdade morreu quando eu nem tinha nascido.

O homem sente-se aniquilar.

- Que pena, querida...

Ela volta a sorrir.

- Mamãe me ensinou que se fizermos coisas boas, com certeza Papai do Céu irá ver e talvez um dia faça acontecer as coisas que mais queremos na nossa vida.

Comovido com aquela espontaneidade tão repentina, profunda e inesperada, o mendigo pergunta:

- E você fez uma coisa muito boa para mim... E o que você gostaria que acontecesse, querida?

A resposta lhe dói mais ainda.

- Queria que meu papai não tivesse morrido antes que eu o tivesse conhecido.

Foi inevitável que lágrimas assomassem aos olhos do homem, a menina percebeu, incrédula.

- Mas... o senhor está chorando...

- É que sua história é muito triste, querida...

-Ah, mas eu sei que agora nem Papai do Céu poderá fazer isso para mim.

- Mas você não desiste, não é mesmo?

A garotinha o olha com firmeza.

- Não, não desisto. Se não pode ser para mim, rezo sempre para que possa ser para outras crianças. Mas não se preocupe, Papai do Céu mandou um outro homem bom para tomar conta de nós. Tenho um irmão, sabia? Ele é mais velho do que eu, tem dez anos. Eu tenho nove.

Uma mulher saiu na varandinha e chamou a garota, o infeliz baixou o rosto para não ser reconhecido. Como se aquele farrapo humano que havia se tornado o permitisse de alguma forma. Talvez, por seus olhos...

Volta-se para a menina.

- Vá, querida, mamãe está chamando. E obrigado pelo café, estava delicioso.

A garotinha sorri.

- Espero que ele o deixe sem fome por algum tempo.

- Com certeza, querida. Agora vá, cuidado para atravessar a rua.

O homem tem que se segurar para não estender a mão e afagar o rostinho lindo da filha. Acena um rápido agradecimento para a mulher do outro lado, que o olha com desconfiança perceptível.

De súbito, sua falha se torna reveladora, e ele grita:

- Querida, qual o seu nome?

- Belinha – responde ela com outro sorriso maravilhoso.

- E como é... – disse ele baixinho, para si mesmo.

A menina entra em casa, o mendigo percebe que ela estava levando uma reprimenda.

Ele ri, sem amargura, mas não deixa de doer.

Ah, a hipocrisia humana: fazei o bem, mas olhai a quem...

Terminou o café e o sanduiche, mesmo tendo deixado de sentir o sabor.

O fel em sua alma queimava mais que tudo. Colocou o copo plástico e o papel na lixeira do vizinho, recomeçou a andar lentamente, as pernas ainda mais trôpegas e vacilantes.

O olhar fora muito rápido, mas... Como a mulher com a qual se casara estava bonita...

Estava, não, corrigiu-se. Continuava. Era. É.

- O que fiz da minha vida, meu Deus? – questionou-se pela enésima vez.

E ele tinha uma filha linda.

Deus, como a vida é plena de surpresas...

E pródiga, mais pródiga ainda, em castigos.

Caminhou alguns metros, sentou-se lá na esquina de onde poderia continuar a ver a casa. Esperando o que? Nem ele o sabia. Como estaria o filho que – ao menos este – tivera nos braços, pequenino?

Alguns minutos se passaram, um lindo garoto uniformizado, uma bola de futebol sob o braço, abriu o portão da garagem para que o pai tirasse o carro.

O vagabundo sentiu-se morrer outra vez, ao ver o homem que tomara o seu lugar. Não, o homem que ELE colocara em seu lugar, só ele, ninguém mais. Viu o sorriso lindo e feliz do garoto, ocorreu-lhe que se não tivesse estragado tudo, seria para ele que o filho estaria sorrindo e indo jogar bola.

Acompanhou com os olhos marejados o veículo até que ele sumisse ao longe. Levantou-se com dificuldade, respirou fundo diversas vezes, e finalmente recomeçou a andar, afastando-se de sua volta ao passado que lhe fizera mais mal que bem. Mas que era necessária.

Então a vida é isso, pensou. Uma existência rápida, igual a um piscar de olhos, no qual a pessoa faz o que dá para fazer e colhe os resultados disso, bons ou ruins. Mas a gente colhe. E colhe é aqui, não lá em cima. Lá em cima a gente acerta as outras contas, as daqui a gente paga por aqui mesmo. Esta história que o inferno vem depois é conversa mole.

Vai ver seria como um momento final que Deus infligisse (?) a ele para que ele passasse por aquilo e entrasse limpo no reino dos céus.

Sofrimento, principalmente quando em demasia, tem que servir para alguma coisa mais, além de simplesmente acabar com a pessoa.

Caminhou sem rumo o dia todo pelas ruas que não eram dele e que não o queriam, pensando, lembrando, sofrendo, sabendo que ali não era seu lugar.

À noite suplicou novamente ao vigia para dormir pela última vez no tubo, prometendo ir embora de vez logo cedo.

Deitado, olhando sem ver as estelas, mergulhou num sono cheio de sonhos e recordações.

Decididamente, viver é como desenhar sem borracha.

(Continua)



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