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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Melodia em tom menor (continuação) Cap. VII Final

Quarta, 18 de abril de 2018


 

VII

Como da outra vez, ele seguiu o impulso inexplicável e inesperado.

Desta vez saíra de um ônibus interestadual, que a seu pedido o deixou na beira da estrada, no trevo de acesso a outra cidadezinha que também havia gostado tanto de ver que também decidira descer para conhecê-la melhor.

Uma cidadezinha linda, com casas antigas (a maioria de pedra) mas de bom gosto, um rio que meandrava lentamente, suas margens cheias de flores e perfumes indefinidos. Como a outra que trazia indelével em suas lembranças mais doces.

Caminhou lentamente, à beira do rio que o encantara encontrou um hotelzinho aconchegante, como da outra vez. Pediu um quarto, saiu, deu um passeio pela margem ouvindo o suave marulhar das águas que fluíam lentamente como se fosse uma música indefinida e, no entanto, tão palpável.

Anoiteceu e ele jantou solitário no pequeno restaurante do hotel.

Depois, um anexo escuro atraiu sua atenção irresistivelmente.

Para sua surpresa, na penumbra, um piano solitário como ele mesmo, como se o aguardasse num encontro não marcado, mas inevitável.

Um anjo soa as cordas da lira e faz parar o tempo linear, o tempo divino marca o encontro e cria a epifania. A coincidência divina que une o tempo e o espaço está aqui para aproximar e unir os dois, como uma dádiva.

Quase sem se dar conta do que faz, levanta-se, vai até o piano, ergue delicadamente o tampo protetor do teclado, tira o feltro que o protege.

Senta-se na banqueta, seus dedos deslizam num afago quase que por todas as oitenta e oito teclas, sem pressionar qualquer uma delas.

Por um momento queda-se como que aturdido, parece que sua alma se esvazia e se vê ocupada por suas lembranças, por suas faltas, por suas saudades.

Por suas recordações que pensara ter bloqueado e que, no entanto, ali estavam tão presentes. Como sempre estiveram e sempre iriam estar, mesmo ele não se dando conta disso, dessa irreversibilidade, mesmo ele não o querendo, não o admitindo.

Como se involuntariamente, inconscientemente, posiciona suas mãos quase sem o perceber. Uma melodia se inicia lentamente, hesitante, como se pedindo sua permissão para continuar.

Melodia traiçoeira que, no entanto, é a que traz no coração, a que cantarola inaudível, ouvida apenas e tão somente por sua alma.

Angustiado, mesmo sabendo que aquilo iria lhe fazer mais mal que bem, deixa seus dedos livres para fazerem o que quiserem, para tocarem o que quiserem.

Vê-se interrompido por hóspedes inoportunos que começam a chegar para o jantar.

E por um garçom solícito, que adentra o anexo escuro para acender a luz.

Ele agradece, mas recusa a gentileza, prefere ficar na penumbra, como é inconfessadamente sua vida.

Afinal, a escuridão em sua alma e coração é maior, muito maior, incomensuravelmente maior, infinitamente maior.

E ele não precisa olhar para o teclado, normalmente toca de olhos fechados, como se olhasse para dentro de si mesmo. Enquanto, na verdade, olhava e olha para seu interior, para suas lembranças, para seus sentimentos em pedaços.

Seus dedos sabem exatamente onde estão cada uma das oitenta e oito teclas do piano, sabe onde mora exatamente o som de cada um deles.

Sons que se repetem em oitavas, de oito em oito teclas brancas, começando no Lá mais grave para terminar no Mi mais agudo.

Oitavas onde, na realidade, não existem apenas oito teclas, mas treze, as adicionais cinco teclas pretas que têm a cor da obscuridade de suas recordações mais doridas.

Estas benditas teclas pretas que, de certa forma, são as responsáveis pelos tons menores, os bemóis, que possibilitam uma melodia se expressar em tons menores.

A incongruência de um milagre impossível e que, no entanto, ali está, incompreensível, desconhecido.

Porque a mesma tecla eleva a nota básica em meio tom. Ou a rebaixa, conforme transmute apropriadamente o sentimento de quem a toca , dependendo por onde uma alma penada vague sem destino.

Não, não há por que falar em performance, não é o caso de um exibicionismo reduzido à sua expressão mais simples. Que ele nem ao menos quer.

Toca. Principalmente (e apenas) para si mesmo.

Mas, sobretudo (e principalmente), por ser sua razão de ser.

E Deus só criara sete notas.

Sete sons fundamentais que se repetem, se desdobram, interagem, se combinam em infinitos acordes que só engrandecem a melodia.

Começa (nem o sabe porque) a dedilhar qualquer coisa, nada de especial, quase sem se dar conta do que faz, tocando músicas que ninguém ouvia, como se ele fosse o ignorado pianista de um inconcebível piano bar.

Uma mulher aproximou-se, ele sequer levantou os olhos do teclado, mas sentiu sua presença, confuso, pressentido, intuitivo.

A lembrança dela emergiu sem aviso.

Virou-se para algum lugar indefinido e impreciso dentro dele mesmo, foi uma lembrança torturante, cruel, ao mesmo tempo suave e doce como um beijo soprado à distância.

A dor o atingiu dura, contundente, amarga. como se uma muralha de água o atropelasse, o puxasse para baixo e nunca mais o deixasse subir.

Ele, que fugia de suas lembranças.

Então, ouviu incrédulo, inesperadamente, o pedido feito com suavidade:

- Toque... toque aquela música que fez eu me apaixonar por você...

Houve uma vacilação quase imperceptível na melodia, por um instante o silêncio ente os dois continuou, como se ele pensasse o que dizer, o que responder, o que fazer.

Sentiu um medo invencível de olhar para ela e não ser ela. Como se isso de alguma forma inconcebível fosse possível.

Como, também, aquele reencontro inesperado e impossível...

Aquela voz, aquela presença, era dela, só dela, de ninguém mais.

Medo de se decepcionar, de estar se iludindo mais uma vez, e outra, e outra, e outra...

- Não me lembro... – murmurou.

O olhar dela por um momento se tornou magoado, mas ela compreendia. Insistiu, com delicadeza, suplicante:

- Por favor... toque...

Ele continuou a fugir na melodia que tocava sem se dar conta, relutante.

- Não me lembro... – repetiu.

Ela sorriu um sorriso doloroso que ele não via.

- Por favor...

E começou a cantarolar baixinho a melodia que queria, que estava sempre ecoando em sua alma em seu coração, em seus dias vazios mas tão cheios de lembranças. E esperanças.

E ele começou a tocar.

De início como se forçado, um ritmo vacilante e titubeante, quase irreal.

Aos poucos, entretanto, a música que também trazia em sua alma e coração, em seus olhos, como se fosse uma lágrima há muito guardada e que finalmente escapasse livre, correu lentamente por sua face, se transmutou em sons e escorreu pelo teclado.

Um arranjo, um improviso, com tal carga de desalento que ela jamais escutara e que ele jamais se julgara capaz de atingir num piano.

Tocou-a duas, três vezes, poderia passar a noite inteira tocando sem repetir uma única vez a melodia, como se fosse uma catarse, como se fossem os gritos silenciosos que gritava e ninguém ouvia.

Mas, então, como se arrependido, ou talvez como se não o suportasse mais, parou, voltou a tocar uma melodia qualquer, inexpressiva, irrelevante.

A moça levantou-se, olhos marejados, hesitou, enfim o abraçou e disse sinceramente e com doçura:

- Obrigada, você é o melhor instrumentista que existe no mundo inteiro.

Ele conseguiu sorrir, apesar de tudo, e respondeu:

- Como você sabe disso? Você não conhece cada músico que existe no mundo inteiro.

O abraço se tornou ainda mais forte, mais apertado, quase desesperado.

- Sim, eu sei. Você é o meu mundo. Você se tornou o meu mundo. Perdoe-me.

E se foi, deixando-o petrificado numa explosão de dor alucinante.

 

VIII

Voltou a arrastar-se no que sobrara de vida, agarrado ferreamente à sua música, única forma de se manter vivo e seguir em frente, mesmo não o querendo.

Sua música, muito amada (como a lembrança da mulher que estava por trás dela), como de coração para coração, como de alma para alma, fala suavemente de encontros e desencontros.

Os seus encontros e desencontros.

Sempre tocando em tom menor.

Nunca repetitivo.

Sempre inimitável.

Sempre lento.

Sempre delicado.

Sempre suave.

Sempre doloroso.

Sempre maravilhoso.

Como alguém consegue encontrar a linha que separa a imaginação da realidade? E ficar se equilibrando sobre ela?

Como alguém consegue agarrar-se à linha que separa as doces lembranças da crueldade de suas saudades?

Quanto mais fundo (aparentemente) estiver enterrada a angústia, mais fundo ela adentra sua alma e coração. E sua mente.

Todas as coisas começam no pensamento.

Onde terminam?

Não o sabia, jamais saberia.

Às vezes a música triste o afundava ainda mais, sempre o levava para onde ele não queria ir, para onde ele não deveria ir.

A música, sua música, o fazia ver as coisas como ele queria que fossem (ou como queria que tivessem sido), não como elas realmente eram.

Ele tornara-se como um navio fantasma em seu espírito, vagando eternamente por um mar desconhecido onde jamais encontraria paz, onde era dividido por afetos, por sentimentos, não por distâncias.

Seu mar desconhecido era um fosso sombrio, quando não estava tocando seu piano ele ouvia uma série de sons quase inaudíveis, berros e gritos de agonia, risos ensandecidos e roucos, uivos de loucura. Uma melancolia infinita abria-se como se fosse um poço sem fundo.

Sua música alcançava sua alma. Ele não sabia onde iria chegar com aquela música. Ou, se sabia, o conhecimento estava enterrado profundamente, esquecido, perdido em sua mente.

Sabia que estava morrendo.

Era apenas e tão somente uma questão de tempo.

Simples, assim.

Sabia que estava morrendo, desejava ouvir em seus momentos finais os sons belos que conhecera em vida. O vento passando suavemente pelas folhas das árvores, a água do rio marulhando de maneira quase imperceptível, mas maravilhosa, os acordes das ondas quebrando na praia...

É, as pessoas não são punidas por seus atos, são punidas pelos próprios atos.

Às vezes, raras vezes, pessoas especiais com alto grau de empatia o parabenizavam depois que ele tocava, tentavam conversar, nem sempre o conseguiam.

Porque ele se fechara ainda mais, como se isso ainda fosse possível.

Um dia, num momento de descuido, um momento que nunca mais se repetiria, deixou entrever que houvera alguém.

Quando falou nisso, brilhou fugazmente no fundo de seus olhos um brilho trágico que jamais havia sido percebido em outros olhos,

O brilho veio e se foi tão depressa que não deve ter durado mais que um clarão vacilante, mas que marcou para sempre quem o percebeu.

Uma noite lhe perguntaram:

- Por que música lenta?

Ele riu. E respondeu, zombeteiro, enigmático, mas compreensível por quem já sofrera, por quem ainda sofria:

- Porque as tartarugas conhecem melhor o caminho que os coelhos.

E voltou a tocar, mais para si que para a diminuta plateia que nunca via, que nunca conseguia ver.

Tocava para si.

Tocava para suas lembranças.

Tocava para seu próprio resgate.

Com sua música sente uma pequena sensação de conquista.

Ínfima. Diminuta. Quase imperceptível.

Sente, mas com a consciência de que ainda há um longo caminho a percorrer, quase interminável, quase intransponível.

Mas, nem sempre, é ele quem toca.

Às vezes, ele tem a necessidade de ouvir outros músicos, de flutuar em outros improvisos, de fluir num sofrimento conjunto, de sofrer em outros tons menores, não só os dele.

Como se assim não se sentisse só, como se assim soubesse que não era o único a tocar como tocava. Um olhar de apatia, aquela névoa cobrindo seus olhos e sua alma outra vez...

Mas era necessário, ele precisava disso.

Era uma questão de sobrevivência.

Não que valesse a pena.

Mas, e se?...

Sua música, a música, revelava e mostrava que se pode viver de esperança.

Ou morrer, por falta dela.

Uma noite, quando caminhava desolado por uma cidade da qual sequer se lembrava o nome, deparou-se com o som lamentoso que vinha de um piano bar.

Como um autômato, entrou. Sentou a uma mesa distante, pediu o vinho que tomara uma noite muito distante numa cidadezinha com a qual se encantara e que o fizera descer do trem.

Ergueu um rápido brinde à uma fugaz lembrança, não se permitiu pensar muito nela, ficou ouvindo simplesmente o músico que tocava com alta sensibilidade um saxofone.

E ficou toda a noite escutando e sofrendo com músicas que lhe falavam ao coração.

Volta algumas noites depois, o saxofonista olha a plateia e o vê sentado na mesma mesa de canto, ouvindo, com muita atenção, o olhar perdido em algum lugar perdido e indefinido que só ele sabe.

Às vezes, no intervalo, ia falar com ele, conversavam alguns minutos. Ele era quieto, não falava muito, mas era muito agradável, sempre perguntava, educado, se o saxofonista podia tocar “As Time Goes By”.

Depois de um tempo, foram se conhecendo um pouquinho.

Um dia contou ao outro que também era músico, que tocava piano.

Falava de música de uma maneira tão apaixonada, tão profunda, que revelava também que entendia de magia. Os músicos de jazz também entendem.

E se compreenderam.

Provavelmente, por isso, se deram bem, aos poucos, muito lentamente, com a desconfiança dos que sofrem, isso foi superado (ou os aproximou) e se tornaram amigos.

Ambos tinham a consciência que se está tocando uma música que já se tocou mil vezes e, de repente, sai um novo conjunto de ideias do instrumento, sem passar pela consciência.

Ele dizia que a música e a vida, em geral, também eram assim.

Então, acrescentou: — E assim também é, quando você faz amor com uma mulher que ama.

Nunca falou muito sobre sua vida.

O outro sabia que ele tinha viajado muito, sempre tocando piano, mas nada muito além disso.

Até um dia, o saxofonista perguntou sobre a música que ele sempre pedia:

- Alguma coisa especial nisso?

Por um tempo, ele não disse nada, só ficou olhando o vazio.

Então começou a falar. Foi como uma torneira aberta. Falou a tarde inteira e boa parte da noite. O outro teve a sensação acertada de que ele ficara com tudo aquilo guardado, por muito tempo.

Houvera uma mulher.

Claro, como não poderia deixar de ser.

Contou a história para o saxofonista que se tornara seu amigo e, agora, seu confidente.

Nunca mencionou o sobrenome da mulher, nunca disse onde aconteceu. Mas era um poeta, quando falava dela.

E chorou, quando falava.

Chorou um monte de lágrimas, do tipo que só um homem velho chora, do tipo que é preciso chorar para se poder tocar.

Depois o amigo entendeu por que ele sempre pedia “As Time Goes By”.

E começou a adorar aquele colega de profissão e de sofrimento.

Também sabia que qualquer um que consegue sentir aquilo por uma mulher, é digno de ser adorado.

Então, pensou a respeito, sobre o poder da paixão que ele e a mulher tiveram. 

E disse para si mesmo:

- Eu preciso tocar esse poder, esse caso de amor, fazer essa paixão aparecer pelo sax.

Porque havia alguma coisa bem lírica naquilo, intuiu

Então, compôs a melodia. Levou três meses.

Queria fazer simples, elegante. Coisas complexas são fáceis de fazer. A simplicidade é o verdadeiro desafio.

Trabalhava na música todos os dias, até acertar.

Finalmente, uma noite, o saxofonista a tocou.

Uma noite, como sempre, ele estava lá, na plateia.

Ele estava lá sentado, quieto, ouvindo com atenção, como sempre fazia. Então, falou ao microfone:

- Eu vou tocar uma música que compus para um amigo meu.

O pianista estava olhando para o nada, mas, quando o saxofonista disse isso, ele lentamente o olhou e prestou toda a atenção do mundo.

Ele fez seu sax tocar um som como nunca.

Fez o saxofone chorar por toda a distância e anos que separaram os dois. Tinha um tom melódico na primeira parte, como se pronunciasse o nome dela, nome que nunca soube.

Quando terminou, ele levantou da mesa, sorriu e acenou com a cabeça, agradecendo.

Depois disso, o saxofonista sempre tocava quando ele aparecia.

Ficara assombrado pela história que ele lhe contara, dele e da mulher.

Às vezes, mesmo quando o pianista não está lá, e a plateia vazia, o saxofonista fica ali, em pé, quando escurece, fazendo seu sax chorar, tocando a música para o amigo e uma mulher especial.

Como, talvez, a que ele trazia na própria alma.

 

IX

Uma noite, quando chegou para ouvir o saxofonista, ele surpreendeu-se com a presença de um inesperado piano no palco.

Como se cambaleando, como se hipnotizado, relutante, viu-se vencido quando finalmente se encaminhou tropegamente para o instrumento.

O saxofonista, respeitoso, ansioso, apenas olhava.

Por um momento, incongruentemente, lembrou-se de seu passado.

Os nomes dos antigos companheiros surgem sem dificuldade, completos, o instrumento de cada um, abandonados.

Por um instante muito fugaz sua alma se torna dolorosamente nostálgica, saudosa, mas como seus instrumentos ilusoriamente abandonados e silenciosos, este instante é muito curto, a aparente dor das lembranças é rapidamente substituída pela alegria das recordações revividas e partilhadas.

Os amigos de ontem estão bem ali a seu lado, cada um com seu instrumento, e a música que tocam em seu coração é maravilhosa.

As lembranças se desvanecem, agora se vê diante do pianista que se encaminha para um instrumento silencioso.

Vê quando ele ergue o tampo, tira com respeito e devoção o feltro que protege o teclado, vê quando ele se debruça sobre o teclado, vê suas mãos afagando as teclas como se afagasse o rosto da mulher que ainda ama, vê quando ele, enfim, se senta na banqueta.

O vazio piano bar, de repente, enche-se de uma luz dourada.

De repente, está plena de sentimentos, de possibilidades.

- Está pronto? – pergunta o saxofonista, parando a seu lado.

O outro apenas aquiesce com um aceno de cabeça.

Sim, estava.

Por uma vida inteira.

Como se tivesse vivido apenas por aquele momento.

Não dizem mais nada, as palavras são desnecessárias, ambos intuem o que se seguirá, mesmo que nada tenha sido conversado, mesmo que nada tenha sido previamente combinado.

O saxofonista sorri. Então coloca a paleta do sax na boca e improvisa, arranja, uma maravilhosa introdução para “As Time Goes By”.

E o sopro de seus sentimentos que se transmuta pelo instrumento se mescla para as lágrimas sentidas que começam a serem percutidas nas teclas do piano.

Tocam a mesma música duas, três vezes, variando as variações, sempre acrescentando alguma coisa que lhes vêm da alma e do coração, tocando apenas para si mesmos, para suas lembranças, para suas recordações.

Param finalmente, sem nada dizer um ao outro.

Não é preciso.

Desta vez, inesperadamente, mas numa decorrência natural e previsível, é o pianista que começa a tocar.

Olhos fechados, seus dedos simplesmente encontram as teclas certas que seu coração determina.

Lembra-se, comovido, sorri um sorriso que só ele sabe o motivo, recorda que quando ganhara o seu piano vira o pai – que nada sabia tocar – sentar-se diante do instrumento, fechar os olhos e tentar infrutiferamente que seus dedos desajeitados e ignorantes do que fazia encontrassem de alguma forma inconcebivelmente maravilhosa a possibilidade de uma musica qualquer.

Como se recorda da frase que o pai dissera muito antes, e que a mãe lhe contara: “- Nosso filho, um dia, será um grande pianista.”

Seu sorriso falha por um rápido momento, quando murmura para si próprio:

- É, papai... seu filho se tornou um grande pianista... grande no sofrimento...

De algum lugar a resposta impossível do pai atingiu sua mente e coração:

- Graças a Deus... Graças a Deus você sofreu...

O entendimento também o atingiu inquestionável. Ele jamais poderia tocar a alegria com aquela sensibilidade, com aquele sentimento todo, só a tristeza, só ela, nada mais.

E seus dedos continuam a encontrar as teclas certas nos tons menores, preparando o terreno dos desesperados para a música que o saxofonista compôs para ele e suas lembranças.

Talvez, também para as próprias.

O saxofonista começa a tocar, como da primeira vez faz seu instrumento chorar por toda a distância e anos que separam almas e corações.

E o piano, intercalado, chora junto.

Depois, no que pareceu ser muito depois, como a mulher de seus sonhos um dia pediu, ouviu incrédulo, inesperadamente, o pedido feito com suavidade pelo saxofonista:

- Toque... toque aquela música que fez ela se apaixonar por você...

Houve uma vacilação quase imperceptível, por um instante o silêncio ente os dois se fez, como se ele pensasse o que dizer, o que responder, o que fazer.

- Não me lembro... – murmurou.

O olhar dele, por um momento se tornou magoado, mas ele compreendia. Insistiu, com delicadeza, quase suplicante:

- Por favor... toque... você me deve isso... você nos deve isso... por ela...

Ele continuou a fugir, relutante, hesitando.

- Não me lembro... – repetiu.

Cabisbaixo, fitando as teclas, sorriu um sorriso doloroso que o outro não via.

- Por favor...

E então ele começou a tocar.

De início como se forçado, um ritmo vacilante e titubeante, quase irreal.

Aos poucos, entretanto, a música que também trazia em sua alma e coração, em seus olhos, como se fosse uma lágrima há muito guardada e que finalmente escapasse livre, correu lentamente por sua face, se transmutou em sons e escorreu pelo teclado.

FIM

 

 

Dedicatória

 

Dedico este livro a todos os músicos que sabem tocar um instrumento como ele deve ser tocado.

Com a alma.

E pagam o alto preço que isso impõe.

F.

 

[Se este livro tocou seu coração, e quiser recebe-lo gratuitamente (e-book), envie-me seu e-mail].

 



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