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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Melodia em tom menor (continuação) Cap. V

Terça, 10 de abril de 2018


 

V

Agora ele fala pouco, quase nada, como se estivesse fugindo de alguma coisa.

Talvez de si mesmo.

Constantemente calado, ninguém sabe a razão disso.

Às vezes, nem ele próprio.

Quando alguém eventualmente, raramente, lhe perguntava o porquê, ele às vezes, só às vezes, respondia:

- Não preciso falar. Minha música estende meus pensamentos para as pessoas a quem quero dizer alguma coisa. Ou só para mim mesmo... Entretanto, a música que você está ouvindo não é minha, mas de meu coração.

E completava avaramente, só para si mesmo, inaudível:

- A música me deu uma vida inteira em universo, e tem o poder de transformar minhas partes fracionadas num todo.

Ele se expressa ao mundo através de seu piano, de sua música.

Quando toca, instrumento e ele se ligam lindamente numa simbiose profunda que remete diretamente ao inconsciente, dividido entre o mundo da luz e o da escuridão, incompreensível ou imperceptível para muitos.

Vivia (?) em dois mundos.

Ou num só.

Só o dele.

Onde muita chuva, muita lama, muita tristeza, marcam a sua vida, no que se transformou sua vida.

Ele vinha, há muito tempo, tempo demais, se inclinando mais ao mundo inconsciente que ao consciente. Na medida em que, pouco falando, se mantinha de certa forma inacessível aos que o cercavam.

Poucos, muitos poucos, só conseguiam de uma certa forma ainda distante  muito limitada a se aproximar dele e mergulhar um pouco, raso demais, em seu mundo interior através de sua música.

Algumas vezes as pessoas a achavam estranha, como se ela não fosse apenas uma melodia.

Sim, não o era, era ele falando para o mundo de outras formas, em busca de um equilíbrio inexistente entre seu mundo interior e exterior.

Ele tocava com a mesma beleza que via nas flores e em algumas árvores mais frondosas. Flores e árvores que muitas pessoas passavam sem se dar conta da beleza que havia nelas.

Ele era músico, sentia o óbvio com outros olhos, com outras percepções, sentia de forma diferente as pessoas, a paisagem, o mundo em si, um brilho único que poucos conseguem enxergar. Por isso, justamente por isso, era mais sensível, sofria mais.

Nossa alma quer que a gente viva o que somos de verdade.

Para ele, música era uma ponte que ligava sentimentos.

Ponte é o que liga uma margem à outra, um rio é como nossa vida, vamos indo em frente levando conosco o que nos chega das margens, mas que um dia irá também desembocar num grande mar.

Ponte significa juntar o que está separado.

Na música, em sua música, juntar as duas margens, atravessar esta ponte, é estar pronto para viver o amor que cantava... a paixão... a entrega...

E conseguir se manter vivo.

E lembrar...

Foi por acaso.

Por acaso eles se encontraram naquele dia.

Por acaso eles se conheceram naquele dia.

Por acaso ele era um homem sensível do jeito que ela sonhava, e esperava.

Por acaso ela era tudo o que ele queria e precisava encontrar numa mulher.

Por acaso ele se apaixonara por aquela cidadezinha, e parara ali.

Sim, tudo isso aconteceu, mas se eles internamente não estivessem prontos para aquilo, nada teria acontecido. É nossa alma a grande manipuladora.

Como tudo começou?

Viajava, lembra-se indelevelmente de uma cidade que havia gostado tanto que havia deixado o trem só para conhecê-la melhor.

Como alguém pode ser sensível assim a ponto de sair de um trem, que já tem sua rota pré-determinada, para apenas conhecer uma cidade?

Parar um trem é como interferir no trajeto pré-estabelecido, é como mudar o próprio destino.

E não fora exatamente o que aconteceu?

Era um final de tarde duma sexta-feira, a noite estava chegando.

Pela janela do trem ele olhava o crepúsculo, quando o trem se aproximou de uma cidadezinha que não conhecia.

Encantou-se com os campos muito verdes, floridos, com as casas de pedra, com o rio que se tornara dourado com os últimos raios de sol.

Num impulso inexplicável, ergueu-se, pegou a pequena mala no bagageiro e desceu na rápida parada que o trem fizera.

Assim.

Do nada.

Sob a luz mortiça dos postes que começavam a acender, começou a caminhar sem destino, apenas apreciando e admirando o que se deparava, como se aquele findar de tarde tivesse sido há milênios reservado e dedicado para ele, só para ele.

Encontrou um hotelzinho encantador, em sua aparente rusticidade. Rústico para almas que não sabiam (ou não conseguiam, nunca conseguiriam) enxergar as belezas mais puras e aparentemente dissimuladas da vida.

Pediu um quarto, depois desceu para o jantar, servido numa aconchegante salinha iluminada discretamente, onde crepitava uma lareira que atenuava o frio da noite.

Comida simples, caseira, típica, deliciosa, conforme constatou depois. Servida em poucas mesas, para os poucos hóspedes que o hotelzinho comportava.

Tomava um copo de vinho, aguardando que lhe servissem o jantar, quando uma hóspede retardatária chegou. As quatro mesas estavam ocupadas, ele sozinho numa delas.

Num impulso quase que automático, confuso, ergueu-se, deu a volta à mesa, afastou a cadeira e olhou para ela, num convite mudo, um “por favor...” implícito indiscutivelmente em sua gentileza, irrecusável.

Ela sorriu, e a salinha se iluminou, sua noite se iluminou, sua alma se iluminou, sua vida se iluminou.

- Obrigada... espero não incomodar. Se estiver acompanhado, aguardando alguém, não me incomodo de esperar.

Ele retribuiu o sorriso com delicadeza.

- Por favor... não estou esperando ninguém...

Mentira.

Dentro de si, tumultuado, o coração falhara uma batida. Ou duas. Ou três.

Continuava a viver e vivia como o escafandrista desmemoriado que já não sabe mais por que desceu às profundezas.

Mas, quando seus maravilhosos e únicos olhos castanhos o miraram inexplicável e inconcebivelmente com incredulidade e enlevo, mais uma vez o escafandrista finalmente teve enfim certeza do por que havia descido às profundezas do mar.

E a alegria do descobrimento transformou-se em música em seu espírito.

- É você? – murmurou ele, olhando-a intensamente.

- Como?... – respondeu, desconcertada diante da intensidade do inesperado com que se deparou.

Ele sacudiu perceptivelmente a cabeça, como se procurasse afastar o torpor que o acometera.

Sua voz soou estranha, como se vinda de vidas passadas. Puxou mais um pouco a cadeira, reiterando o oferecimento.

- Por favor...

Mais um instante de desconcerto. E então ela aceitou.

Acomodou a cadeira para ela, voltou para seu lugar, sentou-se sem conseguir desviar os olhos dos dela. Então pareceu enfim se dar conta do que estava fazendo, desculpou-se, lhe estendeu o cardápio, infrutífera tentativa de se recompor, de entender seus sentimentos conflitantes.

Como dizer àquela desconhecida, que nunca vira, que ela tinha o rosto indefinível que ele vislumbrava em seus sonhos mais improváveis, irrealizáveis e secretos?

No entanto, alguma coisa acontecera.

Com os dois.

Porque, por um momento que pareceu se eternizar enquanto tudo o mais se paralisava como um antigo filme partido, seus olhares se procuraram, se sustentaram, incrédulos, perturbados, ela com o cardápio esquecido nas mãos.

Ela então sorriu, um pálido sorriso cujo simulacro desapareceu como se fosse uma náufraga que submerge irreversivelmente no oceano das lembranças e esperanças perdidas.

- Conhecemo-nos? – perguntou baixinho, como se temendo e ao mesmo tempo ansiando por uma resposta afirmativa.

- Creio que não... – murmurou ele. – Pelo menos, acredito que nunca nos vimos, alguma vez...

Mentira.

Ele a conhecia.

Fantasiara.

Mentalizara.

Idealizara.

Esperara.

Ansiara.

Uma vida inteira.

Sua vida inteira.

O garçom se aproximou solícito, atenuando aquela desconhecida situação insustentável que se formara entre os dois, que acontecera ente os dois.

Afigurava-se – para ambos – que cada um deles era um pássaro diante do olhar hipnótico de uma serpente, nenhum dos dois sabendo o que decorreria daquele encontro fortuito, inesperado, impensável, impossível, inconcebível.

Voltaram-se para os cardápios que seguravam sem o perceber, pediram qualquer coisa, quase até para se verem livres do garçom e voltarem a ficar sozinhos um com o outro, com o deslumbramento daquele encontro que parecia calcado num desencontro de milênios, ambos temendo que aquele enlevo mútuo se desfizesse inexplicavelmente como começara.

Dividiram uma pequena garrafa de vinho durante o jantar que transcorreu em magia, quase à luz de velas inexistentes que, no entanto, se faziam tão presentes.

Mais se olharam indisfarçadamente que conversaram.

Então, finalmente, ela chamou o garçom, pediu que colocasse a despesa na conta do quarto, o momento mágico havia chegado ao fim.

Ele levantou-se, contornou a mesa, afastou a cadeira para ela, num gesto de delicadeza, olhando-a nos olhos, ergueu sua mão e a beijou com delicadeza e respeito, agradeceu o privilégio de sua presença.

Ela se foi, ele ficou de pé olhando enquanto ela se afastava em passos lentos, como se não o querendo fazer, como se não querendo ir, como se não querendo partir.

Depois de um tempo que lhe pareceu longo demais, ele voltou a se sentar.

Tomou mecanicamente o resto do vinho ansiando para reencontrá-la logo cedo, no café.

Como uma fugaz e indesejada despedida, uma ligeira e discreta marca de batom havia ficado na taça que ela usara, como se lhe tivesse deixado o beijo que ele precisava tanto.

Bem típico dele. Uma migalha aqui, outra acolá, um punhado de possíveis romances ao acaso, arremedando amor. Só que, em sua vida, nada foi real, nada perdurou.

Estivera, sempre estivera, procurando coisas a que não podia se agarrar.

Foi um momento de aterrorizante ambivalência, é invadido por uma onda de nostalgia que o deixa vulnerável ao impacto do acontecido.

Como se seu passado, como um imenso fantasma, estivesse presente, além de qualquer possibilidade de exorcismo.

Não, não havia sido sua beleza. O que o tocara e conquistara fora a expressão de seu rosto, doce, suave, sincera expressão, franco e refinado.

Dizer que encontrara enfim a mulher de seus sonhos era uma descrição apropriada. Em que outro lugar ela poderia existir senão em seus sonhos?

Terminara sua longa e impossível busca?

- De que lugar você veio para mim? – perguntou-se, como se diante dela.

A resposta que não queria ouvir veio de seu frágil coração enfraquecido e partido:

- Não deixe que sua ansiedade em vê-la faça você enxergá-la onde ela não está – alertou. – Não se permita dominar por alucinações. Talvez quem você procura tanto não exista.

Foi para seu quarto, procurou uma poltrona na sacada sobre o rio sem vê-lo, estava absorto no próprio sofrimento, em seu infortúnio.

Sentou-se, ficou com a cabeça abaixada, mãos soltas, olhando para o chão (ou para o interior dele mesmo?), imóvel em seu desamparo. Olhava o próprio pensamento, uma expressão de melancolia retraída, a expressão perdida.

Começou a sentir o ar se tornar mais sólido, como se caminhasse no fundo de um mar profundo e sombrio, o encantamento se desfizera.

O pensamento mais ínfimo (lembranças?) o afetando, o derrubando.

Parecia que sua agonia estaria ali para sempre. E não haveria mais esperança para ele.

Uma melancolia vasta abriu-se como um fosso sem fundo e o engoliu.

Sentiu falta de seu piano, sua forma de amparo. Precisava de ajuda, mas não conseguiria se ajudar sozinho, só a música, sua música, seria capaz disso.

Em sua música estava em terreno seguro.

Infeliz, mas seguro.

Seus olhos miravam o vazio que se abrira outra vez, brilhando com suas lágrimas que não caíam mais.

Mas, e se?...

 

VI

Depois de uma noite insone, inconfessadamente aguardando-a, teve a felicidade de vê-la caminhar a seu encontro e se sentar diante dele, mesmo com todas as demais mesas vazias, sem esperar um convite.

Um sentimento de materialidade impossível começou a encher o ar.

O café da manhã estava delicioso. Conversaram enquanto o tomavam, ela pediu que ele falasse um pouco sobre sua vida na cidade grande.

Ele contou que era um caipira do interior, mas que sempre vivera na cidade, e que, de certa forma, sentia falta de alguma coisa que não sabia ao certo o que era, uma saudade indefinida e estranha de uma vida mais simples que nunca tivera e nem conhecera.

Então a convidou para um passeio à beira do rio que cantarolava uma melodia feliz a que se desacostumara totalmente. Contou-lhe que era músico, que, às vezes, compunha alguma coisa.

Ela pediu, ele negou, ela insistiu, ele teve que se dar por vencido, cantarolou uma de suas músicas. Teve que repeti-la outra vez, e outra, e outra... Sempre a seu pedido, ela embevecida.

Foi uma manhã maravilhosa, uma manhã de sonhos (perdidos?).

Marcaram outro passeio para o anoitecer. Inevitável. Irrecusável.

Enquanto a esperava, foi até o alpendre do hotelzinho.

Olhou a lua tímida em meio ao nevoeiro da noite muito clara, sinal que iria esfriar ainda mais. Colheu uma flor que achou bonita e retornou, ela o aguardava, impaciente, maravilhosa.

Deu-lhe a flor com um involuntário gesto de galanteza.

- Para você. Que o hotel me perdoe por tê-la colhido sem o consultar.

Ela o olhou calada e surpresa.

Então a pegou e protegeu contra seu coração, como se resguardasse das maldades da vida alguma coisa que lhe era muito preciosa.

- Nunca ganhei uma flor em minha vida... – murmurou, encantada e comovida.

Ficou penalizado com a realidade de sua sinceridade.

- Pois você merece ganha-las sempre.

Começaram a andar lentamente, sem se dar conta do que faziam deram-se os braços no encantamento que voltara a fluir entre os dois

- Sabe – disse-lhe ele, sem uma razão aparente – as palavras são estranhas... Dizer a mesma coisa em línguas diferentes têm sentimentos diferentes, transmitem intensidades diferentes.

- Às vezes não o entendo, moço da cidade grande...

- Caipira do interior – corrigiu, com outro sorriso. – Mas o que quis dizer (nem sei por que) foi o seguinte: façamos de conta que você é minha namorada, e quero lhe dar esta flor. Diria, em alemão: “für sie, liebe”.  Diria, em português: “para você, amor”. Ou, em inglês: “to you, my love”. Ou, em francês: “pour toi, mon amour”. Mas, em italiano...: “per te, amore”... Viu como em italiano tem muito mais sentimento, soa muito mais bonito?

Ela o olhou, pasma por uns instantes.

- Moço da cidade grande, caipira do interior, nunca conheci alguém como você... Você existe mesmo ou estou sonhando sem o saber?

Ele riu-se, diante daquele desfecho.

- Bobagens minhas, nem sei porquê... Mas vamos voltar que o jantar deve estar sendo servido.

Mais uma vez puxou-lhe a cadeira para que ela se acomodasse à mesa, passou-lhe as travessas, abriu e serviu o vinho, foi um cavalheiro de verdade, uma música linda ecoando em seu espírito.

Depois disse-lhe boa noite, num impulso deu-lhe um suave e rápido beijo no rosto, agradeceu os momentos maravilhoso que ela lhe proporcionara.

Foi para seu quarto, a lenha na lareira crepitava baixinho e iluminava um pouco, deixando-o numa penumbra acolhedora, matizando tudo de dourado, o dourado que deveria ser a vida de todos nós.

Nem acendeu a luz, vestiu o pijama, entrou debaixo do edredon.

Estava quase dormindo quando alguém bateu na porta.

Contrafeito por ter sido tirado de seus pensamentos, levantou-se e a entreabriu. Para sua doce surpresa, era ela.

- Posso entrar? – perguntou com um sorriso vacilante..

- Claro, moça.

Ela trazia uma garrafa de vinho e duas taças.

- Podemos tomar juntos uma última taça de vinho, moço da cidade grande, caipira do interior? – perguntou suavemente, brejeira.

Teve que rir de sua colocação repetitiva.

- Fico honrado com isso, mein frau (minha senhora)...

Abriu a garrafa, encheu as duas taças e lhe entregou um.

- Prosit (brinde) – murmurou.

- Prosit, liebe kind (queridinha) – retribuiu ele com sinceridade, sentindo-se estranhamente feliz.

Bateram levemente as taças e cada um tomou um gole para alicerçar a sinceridade de seus votos. Ficaram degustando lentamente o excelente vinho, olhos nos olhos, conversando sobre o pouco do lindo dia que haviam partilhado

- E a sua florzinha, como vai? – perguntou, então.

Ela o olhou e havia ternura em seu olhar.

- Linda. Foi a primeira que ganhei em minha vida.

Ela continuou a olhar para ele.

- O que está achando da vida desta cidadezinha? Muito parada?

- Ah, não sou só um moço da cidade grande, sou também o caipira do interior, lembra-se? Estou adorando. Nunca fiquei tão feliz... Acredita em destino?

- Não sei mais... sempre achei que as coisas são como tem que ser... azar o nosso...

Ele ficou momentaneamente sem saber o que dizer. Então a olhou firme e perguntou, mesmo adiantando a resposta que já intuíra:

- Você não é feliz, não é verdade?

Olhou para ela, penalizado com seu silêncio.

Depois de alguns momentos, fitou-o como se avaliasse sua alma e coração, e disse:

- Pensei que os homens fossem todos iguais, mas você é diferente.

Ergueu um pouco o edredon, oferecendo-lhe um lugar a seu lado. E com voz cheia de ternura, disse-lhe com toda a suavidade de que foi capaz:

- Venha cá, moça da cidadezinha encantada...

Ela colocou a taça sobre o criado mudo e depois de um segundo de indecisão deitou-se em seu ombro, aconchegada a ele.

Seus lábios se encontraram num beijo apaixonado, pleno de ternura.

E se amaram docemente por todo aquele fim de semana.

Na segunda-feira logo cedo ela tinha que seguir o seu caminho, e não sabia como e nem queria fazê-lo, mas tinha que ir.

Uma lágrima brilhava em seus olhos quando ela o abraçou e beijou naquela despedida que se revelou tão sofrida, tão desesperada, tão...

Ele deu-lhe o número do telefone que escrevera num papelzinho.

- Ligue-me sempre que quiser ou precisar – pediu.

- Será que iremos nos reencontrar um dia? – perguntou baixinho, segurando outra vez aquele papelzinho de encontro ao coração como se fosse um outro tesouro inestimável.

- Vamos, com certeza, nós precisamos...

- De verdade?

- De verdade.

Um soluço estremeceu seus lábios e uma lágrima escorreu por sua face.

- De verdade mesmo, meu moço da cidade grande?

- De verdade. Verdade verdadeira de seu caipira do interior, minha moça da cidade encantada...

Entrou no carro, deu partida, deixando-o com os olhos enevoados, saiu lentamente, deixando-o para trás, deixando aquela cidadezinha onde encontrara aquele homem que passara a lhe significar tanto e um inesperado final de semana pleno de romantismo, encantamento, despedida, saudade...

Sua última visão dele foi ele parado momentaneamente na esquina, acenando um derradeiro adeus. Pálido, sofrido, olhando-a com dor e desespero, como se estivesse diante de uma vitrine onde houvesse alguma coisa maravilhosa com a qual só pudesse sonhar.

Em seu coração quebrado e pequenininho ele sentia e sabia que em algumas noites o luar formaria um caminho sobre a noite, ligando a cidade ao céu estrelado, como se pudéssemos caminhar sobre ele. Aonde nos levaria? Aonde quiséssemos, era o que ele gostava de pensar. Aonde iriam? Não sabia. Mas, fosse onde fosse, ele gostaria que ela estivesse consigo.

Naquela tarde voltou para o trem.

Forçou-se a seguir em frente, seu mundo um pouco mais triste.

Mentira.

Seu mundo muito mais triste.

- Estou agindo como outro homem... – admitiu para si mesmo. -Contudo, nunca fui tanto eu mesmo quanto estou sendo agora.

Terminara a sua longa e impossível busca.

Recomeçara sua longa e impossível possibilidade de esquecimento.

Ele descobrira o significado de todas as pequenas e desconhecida pegadas em todas as praias desertas por onde algumas vezes caminhara, e de todas as cargas desconhecidas levadas por navios que jamais haviam navegado, de todos os rostos velados que o viam passar por ruas sinuosas de crepusculares cidades.

Voltou a murmurar para si mesmo, como se o dissesse para a moça que partira e que, no entanto, continuava à sua frente:

- É por isso que estou neste aqui, neste momento. Não é para viajar, nem tocar ou fazer música, mas para amar você. Agora eu o sei. Quando penso em porque toco ou faço música, a única razão que me vem à mente é que passei minha vida toda tentando chegar aqui, precisando chegar aqui. Tenho a impressão de que tudo o que fiz até hoje foi para chegar até você.

Reconheceu, entretanto, a dor que inevitavelmente voltava a explodir dentro de si.

- Sabe, moça, sou um tolo por perseguir uma possibilidade de sobrevivência em um milhão, enquanto fui eu mesmo que aceitei uma probabilidade de morrer de cem por cento.

Esta cidadezinha era um bom lugar para morrer. Como qualquer outro.

(Continua)

 

 

 

 

 

 

 



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