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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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ELEGIA POR MARIA ANTÔNIA

Quarta, 14 de março de 2018

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Morena, cabelos longos, olhos esverdeados, uma das moças mais lindas que cruzaram os meus caminhos.

Era um almoço de confraternização da empresa na qual minha mãe trabalhava. Fui apresentado, quando nossos olhares se encontraram, o calor de sua mão na minha se tornou mais palpável, mais perceptível. Maria Antônia tinha um raro magnetismo em seu olhar, uma maneira de olhar pela qual, quando me fitou, tudo o mais pareceu deixar de existir.

Não que tenha sido (ou talvez tivesse sido) um caso de amor à primeira vista.

Mas inegavelmente alguma coisa aconteceu naquele momento, uma espécie de ligação espiritual se firmou entre nós. Sentamo-nos em cantos opostos, mas de vez em quando nos surpreendíamos olhando um para o outro.

Lá pelas 22:00 horas eu a levei embora. A seu pedido, eu lhe contava um pouco de minha vida, o que era, um pouco do que fazia, estas coisas. Próximos de sua casa, um bando de cretinos esperava na esquina, importunando quem passasse.

Maria Antônia agarrou-se a meu braço, visivelmente temerosa. Contou-me que aquele bando sempre mexia com ela, verdadeiramente a aterrorizava, muitas vezes a obrigando a dar a volta mais longa pelo quarteirão só para evitá-los.

Disse-lhe que não se preocupasse, que eu iria resolver aquele problema.

- Não sei o que um estudante de Engenharia poderá fazer contra tantos – ponderou, preocupada.

- Este estudante pode – garanti, para tranquilizá-la. Ela não sabia que eu também era policial.

Passei um braço por sobre seus ombros, aproximamo-nos da corja, alguns já haviam até se levantado do chão.

Estavam bloqueando a calçada, quando me reconheceram, imediatamente o círculo se desfez. Passamos através deles, ninguém falou nada.

Deixei-a alguns metros adiante e voltei, abri ostensivamente o casaco, deixando o revólver ao alcance da mão.

Parei diante do chefe e o olhei fixamente. Como um relâmpago que cruza o céu escuro, minha mão o agarrou pela garganta, imobilizei-o contra a parede, avisando que atiraria no primeiro que bancasse o engraçadinho.

Disse que ela era alguém especial para mim, que dali para frente ninguém mais se metesse com ela, que eu não tivesse que voltar.

Ninguém falou nada, era mais prudente ficar calado.

Voltei, e como se nada demais houvesse acontecido, continuamos até sua casa. Pálida, ela me olhava de maneira diferente, diante do que achava bobamente ser um ato de heroísmo.

Só então lhe disse que também era policial.

Conversamos por algum tempo, convidou-me para encontrá-la no baile de sábado, na Associação. Beijou-me delicadamente no rosto, despedimo-nos, deixei-a na segurança da casa, não havia mais ninguém na esquina quando passei. O calor de seu beijo rápido continuava agradavelmente em minha face e em meu coração.

No sábado a ronda levou mais tempo que prevíamos, cheguei bastante atrasado, não a encontrei no clube lotado. Dois finais de semana após, finalmente, no finalzinho do baile, lá estava ela. Eu estava emocionado, ansioso, mesmo não o querendo admitir.

Dançamos a última música daquela noite: Ben, de Michael Jackson, os colegas de serviço me olhavam, divertidos, não me importei, eu que nunca fizera aquilo com ninguém.

Maria Antônia disse que iria passar alguns dias com a irmã, em Santos, que retornaria dali a quinze dias e então gostaria de me rever. Não pude acompanhá-la até em casa, eu estava de serviço. Certifiquei-me que a corja não mais a incomodava, ganhei outro beijo no rosto.

Na viatura os colegas brincavam comigo, dizendo que finalmente alguém derretera o coração do “homem de gelo”. Fechei a cara, mas lá dentro o coração batia de uma forma tumultuada.

Acendera-se enfim uma pequenina e trêmula luz no final do túnel, para mim? Poderia ela se tornar alguém especial, muito especial, em minha vida tão vazia? Seriam quinze longos dias, eu o sentia.

Quatro dias depois o telefone toca na Delegacia. Era sua irmã: Maria Antônia morrera naquela madrugada, vítima de um vagabundo.

Senti-me desfalecer, no momento. Meu coração parou de bater, uma dor violenta e surda explodiu em todo o meu ser, bloqueei (ou tentei bloquear) as lágrimas que teimosamente me chegavam aos olhos. Anotei o endereço, fiquei alucinado, larguei tudo e fui para Santos, onde cheguei de manhã.

Era uma casa simples na periferia de São Vicente, não havia campainha. Bati palmas, uma moça me atendeu, pelos traços reconheci a irmã da minha Maria Antônia. Disse-lhe quem eu era.

Ela contou-me, então, que em seu leito de morte Maria Antônia não parava de falar sobre mim, que ela gostara de mim. Perguntara à irmã, vezes sem conta, se poderia dar certo, se eu poderia querê-la como namorada...

Aquilo mexeu comigo, doeu ainda mais fundo, como se ainda fosse possível. O eu-policial se inteirava friamente dos detalhes sórdidos, o eu-humano chorava internamente aquela perda que acontecera mesmo antes de chegar a ser. Minha esperança de voltar a ser um ser humano morrera também com ela, e mais uma vez o Destino gargalhava de minhas tentativas.

Depois, tropegamente, como se não sentisse o chão, caminhei dolorosamente por entre as sepulturas do Cemitério Areia Branca, buscando a dela, precisando e não querendo encontrá-la, como se não a encontrando fosse uma forma de reconhecer que tudo aquilo nada mais era que um sonho horrendo, um pesadelo, mais um em minha vida tormentosa.

O jazigo de alvenaria tivera um dos nichos fechados à pouco. No cimentado tosco, escrito com traços mais toscos ainda, o nome de minha Maria Antônia.

Era real, era verdade, ali apodrecia a moça que poderia ter se tornado uma razão para a minha vida. A dor explodiu em mim, incontida, incontrolável, sufocante, aterradora.

Fiquei ali muito tempo, lembrando e chorando cada pequenino momento em que ela fizera parte de minha vida. Lamentando a inutilidade daquela perda, o fim de seus sonhos, sua vida tão breve, tão curta.

Que pena, Maria Antônia...

Num movimento desajeitado ergui meus dedos e afaguei delicadamente a parede de sua sepultura, endereçando um último carinho doloroso a seu rosto tão vívido em meus pensamentos.

Então tirei o revólver da cinta, abri o tambor, coloquei a sexta bala que deixava fora por segurança, recolocando-o no coldre. Minha caçada começara.

Preparei um simulacro de uma requisição de perícia para um inquérito,

fui até Santos onde me dirigi para o quartel da Polícia Militar. Pedi para falar com o oficial de dia, apresentei-me, contei uma história parcialmente mentirosa mas convincente, ele localizou o boletim de ocorrência que eu queria e precisava, permitiu-me examiná-lo.

Anotei o nome e endereço do indiciado, de quem matara Maria Antônia, saí dali fervendo de raiva e antecipação.

Que aumentaram quando desci do carro sem encontrar o número da casa: endereço e nomes falsos, ninguém conhecia, ninguém sabia de nada, ninguém tinha nada a informar.

Mas era um caso pessoal, tornara-se um caso pessoal. Mesmo que não fosse, eu não teria simplesmente virado as costas e ido embora.

Voltei à casa da irmã de Maria Antônia, fomos juntos ao local onde o vagabundo a vitimara. Trouxe-a de volta para casa e retornei ao local, comecei a investigar, ninguém sabia de nada.

Deparei-me inesperadamente com uma ambulância que ali passava, não custava perguntar se haviam ido ali dias atrás. Negaram. A médica então me disse:

- Pergunte para a city.

- Que é isso? – perguntei – Alguma empresa?

Ela riu.

- Não, city é como chamamos estas corjas de vagabundos que ficam se drogando aí pelas quebradas. Pergunte para eles que eles sabem.

Minha investigação iria se tornar perigosa, não me importei.

Comecei a entrar sozinho em favelas, perguntando para todo grupinho que encontrava, ninguém ousou me enfrentar, quando muito nada diziam.

Até que um deles foi até meu carro, debruçou-se e forneceu o nome e endereço verdadeiros que eu precisava, que eu tanto queria.

Era um barraco simples de madeira, também na periferia de São Vicente.

Desci, bati palmas, fui atendido por uma velhinha, convidou-me para entrar quando eu lhe disse que era da Polícia Técnica e ali estava para conversar com um de seus filhos.

Disse o nome, ela respondeu que ele não estava, mas que não iria demorar.

De repente, olhou bem para mim. De repente viu alguma coisa em mim que havia lhe passado despercebido antes.

De repente empalideceu terrivelmente, ajoelhou-se diante de mim, e de mão postas, lágrimas a lhe correr pelo rosto, suplicou-me:

- Por favor, não mate o meu filho.

Tentei desconversar, tentei convencê-la que ela estava errada, que nada de mal iria acontecer, que nada iria acontecer a ele.

- Não, você veio para matar o meu filho, estou vendo isso em seus olhos... Pelo amor de Deus, não faça isso, ele é um bom menino, apesar de tudo...

Como lhe dizer que aquele “apesar de tudo” havia levado embora uma moça que se tornara especial para mim? Isso justificaria? Isso a faria enfim aceitar o que eu estava real e inabalavelmente disposto a fazer?

Ouvi o portãozinho de madeira sendo aberto e bater em seguida. Estendi as mãos e a ajudei a se levantar. Foi um momento muito rápido, mas foi o suficiente para a única palavra que eu poderia lhe dizer. E que tanto ela queria e precisava ouvir.

- Prometo... – murmurei.

Alguma coisa se quebrara dentro de mim, minando inapelavelmente minha determinação.

Entrou. Um garoto de dezessete anos, olhos desconfiados característicos de todo maloqueiro ante alguém que não conhecia.

Procurei afastar dos meus toda e qualquer sombra de ameaça, cheguei a sorrir para ele enquanto me apresentava e lhe dizia que precisávamos ir ao local dos fatos para completar algumas informações.

Ele titubeou, voltou-se para a mãe em busca de socorro. Ela estava de mãos juntas, um terço entre os dedos, nem sei de onde o tirara. Olhei-a rapidamente.

- Eu prometi... não se preocupe... não vai acontecer nada de mais com ele... ele voltará logo... – procurei convencê-la.

Nem sei como, ela acreditou em mim. Colocou uma das mãos em meu ombro, virou-se para o filho e disse a ele que visse comigo.

Então, um imprevisto. Chegou um irmão dele.

O rosto abatido da velhinha se transfigurou. O rapaz também me olhou desconfiado, a mãe lhe contou o que eu era.

- Ele pode ir também com você? – perguntou-me, olhos brilhando pela expectativa, pela esperança absurda que a consumia.

Aquilo iria ser um problema.

- Claro que pode... eu lhe prometi...

Os dois saíram na minha frente enquanto eu me despedia da velhinha, acho que nunca senti tanta pena de alguém em minha vida.

- Não mate meu filho... – suplicou baixinho outra vez, olhos cheios de lágrimas onde se mesclavam o pavor, a esperança e a necessidade de acreditar no que eu lhe dizia.

- Eu prometi... não se preocupe... logo eles estarão de volta para a senhora...

Abri a porta esquerda do carro, pedi ao garoto que sentasse no banco de trás do Volkswagen. O irmão sentou-se a meu lado, olhando-me sempre com desconfiança.

Dei partida no carro e segui lentamente pela rua esburacada. Pensando no que iria fazer. No que teria que fazer. E como fazer.

Centenas de metros adiante, num local ermo, de repente, com a prática de saque que havia desenvolvido, empunhei o revólver e desferi um golpe violento no rosto do mais velho.

Abri sua porta com a mão esquerda, com o pé direito o empurrei para fora do carro, ele caiu e lá ficou, desacordado. Virei a arma para o rosto do garoto apavorado e a engatilhei, ele se petrificou.

- Vou ficar olhando você pelo espelhinho – preveni. – Faça uma gracinha e você morre aí mesmo.

Engatei a marcha e saí rapidamente, a inércia fechou a porta. Uns três quilômetros adiante parei, fui até o garoto no banco de trás, algemei-o com as mãos nas costas e repeti o que lhe prometera.

Então, na maior velocidade que podia, tomei o rumo da serra de Santos, verificando sempre se alguém me seguia.

Havia pouco movimento. Depois de algum tempo, antes do alto da serra, adentrei um caminho de terra para mim desconhecido.

Precisava tirar o Volks do asfalto, queria e precisava  sair da visão de alguma testemunha inoportuna. Ninguém e nada à vista.

- Como é fácil matar alguém – murmurei para mim mesmo, com um sorriso triste.

Parei o veículo, manobrei-o deixando-o pronto para uma fuga rápida se fosse preciso. Tirei o garoto que se debatia e chorava no banco de trás, implorando que eu não o matasse.

Dei-lhe uma bofetada, ele ficou olhando apavorado para mim, a boca temendo. Tirei minha algema e o empurrei contra o carro, colocando a arma entre seus olhos.

- Vagabundo... você matou a moça – disse-lhe.

Ele ficou mais pálido ainda, como se aquilo ainda fosse possível. E o que vi então em seus olhos me revelou outra terrível verdade: ele não o sabia.

Coloquei o revólver no coldre e comecei a esmurra-lo, até que senti minhas forças se esvaírem inexplicavelmente. Então parei com aquilo e o ajudei a se levantar, prensei-o novamente contra o automóvel.

- Prometi à sua mãe que não iria matá-lo, só por isso você irá continuar vivo. Você vai ficar devendo isso para ela até o fim de seus malditos dias.

Vá embora...

E lhe apontei a direção do asfalto.

- Tem dinheiro para pegar um ônibus? – perguntei, incredulamente até para mim próprio.

Ele negaceou com a cabeça. Dei-lhe algum dinheiro e o empurrei.

- Vá... vá antes que eu mude de ideia. E que isso entre nós fique nisso, não me faça voltar a vir atrás de você que você morre, com ou sem sua mãe implorando por você.

Deixei-o caminhar alguns metros, entrei no carro e dei partida. Parei  por um rápido momento a seu lado.

- Peça desculpas por mim a seu irmão, infelizmente ele não me deu escolha. Espero não tê-lo machucado muito. E aproveite sua chance, você poderá não ter outra em sua vida.

Logo estava no asfalto, fui rapidamente em frente, perdido em pensamentos desencontrados, perguntando-me confuso se fizera a coisa correta ou não.

Por um rápido momento a imagem de Maria Antônia me materializou em minha mente perturbada e ela sorriu docemente para mim.

***



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