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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Tardes de chuva - Cap. II ao Cap. III

Quarta, 17 de janeiro de 2018


(continuação)

II

Foi inevitável para muitos lembrarem que, alguns meses antes, Maravilha não era nenhuma maravilha mas, apesar de tudo, viviam bem ali.

As pessoas eram mais solidárias, mais cristãs, mesmo que o fossem mais por medo de ir para o inferno, como padre Vitor sempre os ameaçava nas improvisadas missas que rezava nas manhãs dos domingos defronte a capelinha.

Padre Vitor estava velho, cansado e desiludido. A paciência que lhe restara era muito pouca, quase nenhuma.

Talvez a consciência de que estava cada vez mais velho, mais próximo da hora de partir, o tornara ainda mais intolerante, nem ele mesmo o sabia.

Sabia que aquele povo, o seu povo, iria ficar sozinho e mais abandonado ainda quando ele se fosse. Sabia que talvez nunca fosse substituído, a Cúria talvez não mandasse mais ninguém para aquele fim de mundo que não retornava um único centavo para seus cofres.

O que, talvez, aumentasse a ranzinzice de padre Vitor dia a dia. Porque, no fundo, a despeito das aparências, era muito bom. E sofria com seu povo.

Com o passar do tempo, aprendera e vivenciara uma coisa interessante: as pessoas se impressionam muito com a aparência.

Muitos, a imensa maioria, não sabiam e nunca iriam saber que as mais belas coisas do mundo só podem ser percebidas com um coração sensível. Um coração sensível e ternura para com eles como o que ele tinha e procurava esconder.

Por isso, em seus sermões, pintava o inferno com as cores mais quentes e ameaçadoras de que era capaz, rugindo que inapelavelmente todos ali seriam nele arremessados sem a menor possibilidade de salvação.

Infelizmente aprendera que, para o chamado ser humano, era preferível e mais adequado mais um bom susto que mil conselhos.

E coagia inquestionavelmente e com severidade os incautos, mesmo quando se deparava com algum deles agindo ou fazendo o que não devia.

- Vou rezar para que Deus jogue sobre você as setenta pragas do Egito, infeliz – ameaçava.

Inquestionavelmente? Nem sempre. Porque, às vezes, raras vezes, algum mais abusado o enfrentava, disfarçando um risinho:

- Setenta? Mas não são só sete pragas, padre Vitor?

Padre Vitor, também chamado pelas costas de padre Vinagre, ficava de olhos esbugalhados, colérico, ameaçador, às portas de ter uma síncope fulminante. Mais um meio passo, um simples meio passo e...

- Deveriam ser setecentas, seu fariseu. Vai, vai rezar trezentas Aves Marias e trezentos Padre Nossos como penitência, vai – e apontava incontestável para a capelinha que, naqueles tempos, ainda era bem conservada.

Poucos, muitos poucos, raríssimos, tinham compreensão suficiente para entender e aceitar as boas intenções daquele velhinho que vivia e seria até capaz de morrer por eles.

E um dia, para alívio de muitos, da imensa maioria, Deus tomou as mãos de padre Vitor nas Suas e o levou docemente.

Encontraram-no deitado como se simplesmente dormisse no único banco da capelinha, um sorriso feliz, indescritivelmente feliz, em seus lábios, o que faria muitos se perguntarem o que ele estaria vendo do outro lado da vida.

Os dias choraram tanto, tanto, que as lágrimas se acabaram. Não choveu mais.

Sem padre Vitor, a capelinha também começou a morrer de saudade.

O povo de Maravilha não se deu conta que, a cada dia, a capelinha estava mais abandonada, mais esquecida, mais ignorada, mais vazia.

Mesmo porque, em suas vidas pobres aparentemente sem tesouros, não compreendiam exatamente o que padre Vitor lhes repetia vezes sem conta quando dizia com doçura, tentando fazê-los entender:

- Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem tudo, e onde os ladrões minam e roubam. Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam e não roubam. Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.

Fazia uma pausa para que suas palavras tentassem entrar naquelas cabeças duras, como afetuosamente as chamava, e continuava:

- Por isso, vos digo: não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber. Nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo, mais do que a vestimenta? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? 

E literalmente falava grego quando começava a caminhar entre seus fiéis que o seguiam com os olhos tentando inutilmente compreender o que ele dizia:

- E quanto ao vestuário, porque andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam.  E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pequena fé?  

Palavras realmente incompreensíveis e até relativamente desconhecidas pelo povo de Maravilha que mal tinha o que vestir e com o que se alimentar. Palavras julgadas por eles até descabidas, quando o padre encerrava:

- Não andeis, pois, inquietos, dizendo: que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos? Decerto, vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas essas coisas. Mas buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.

Então padre Vitor os exortava para a comunhão, seu povo simples se ajoelhava no chão de terra batida e comovidamente recebia Jesus Cristo transmutado numa simples hóstia.

E iam para suas pobres casas, cada um achando inconfessadamente no fundo do coração que padre Vitor já estava muito velhinho e, por certo, estava caducando quando lhes dizia tantas coisas, coisas que até achavam bonitas, mas que realmente não faziam parte de suas vidas.

 

III

E agora ali estava inconcebivelmente, inesperado, um desconhecido talvez milagreiro que lhes trouxera o milagre da chuva e da esperança em suas vidas.

Debaixo daquele chuvisco que tombava como se fosse água benta caída do céu – e o era, de certa forma mesmo que incompreensível – olhavam  agradecidos para aquele homem que lhes sorria mansamente.

E da mesma forma, mesmo que também incompreensível, de súbito a compreensão do que fora padre Vitor, as suas atitudes disfarçadas com uma falsa rispidez, atingiram suas mentes. Souberam então, só então, o que o religioso havia sido na vida de cada um deles. Sentiram a falta que não se haviam dado conta, a falta que padre Vitor lhes fazia em suas vidas.

E muitas lágrimas se confundiram e se mesclaram irmanadas com as gotas da chuva salvadora que lhes escorria pelos rostos.

Não haviam visto o desconhecido chegar àquele povoado perdido no tempo e nos desencantos da vida.

Poderia, talvez, estar trajando mais apropriadamente um simples manto com um capuz, grossas sandálias nos pés, um grande terço na cintura que lhe serviria de cinto, um crucifixo que balouçasse docemente sob seus passos lentos como se fosse a mão de Deus abençoando cada um de nós, talvez como se fosse um monge.

Mas não, vestia-se como qualquer um, roupas simples como a sua alma e coração, igual a qualquer um. Com um detalhe estranho: carregava de encontro ao peito, ternamente, cuidadosa, amorosa e inexplicavelmente, uma simples e feia bonequinha de pano.

Sempre com seu sorriso, foi em direção às pessoas que continuavam ajoelhadas e dava a mão a cada um deles, ajudando-os a se levantarem.

Alguns, agradecidos, tentavam beijar sua mão, ele o recusava, comovido.

- Nada fiz para merecer isso, obrigado. Apenas procuro ser, quando posso, o instrumento da paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sou quem chora as dores e humilhações do Senhor de todos nós. O que mais me faz chorar é que os homens, por quem Ele sofreu tanto, vivem esquecidos dele.

Um deles, o mais velho do povoado, falou o que todos sentiam e não podiam expressar em palavras, ainda de joelhos:

- Nunca poderemos lhe pagar o que fez...

O desconhecido riu, pleno de carinho. E então, com a voz que para muitos soou como se fosse a do saudoso padre Vitor, incompreensível:

- Nada fiz. Se a crosta de nosso mundo fosse toda formada de ouro e prata, os homens continuariam a se matar em guerras fraticidas se em alguns pontos do globo surgissem pequenos poços de lama que nos produzissem alfaces ou cenouras. E seria provável que a recolhêssemos em ânforas douradas, porque o lodo seria o padrão financeiro de nosso mundo, que ostentaríamos nos dedos ou nos pulsos.

Abaixou-se, pegou um pouco da lama que se formava a seus pés, marcou delicadamente o sinal da cruz na testa do velho.

- Você é filho de Deus, Nosso Pai não nos desampara nunca. Nada é impossível para aquele que crê.

E o ajudou a se levantar.

- Senhor... como é seu nome? – perguntou o velho.

Por um momento o desconhecido hesitou, como se não o soubesse, como se não o lembrasse. O que é um nome? Não amamos um nome, amamos uma pessoa pelo que ela tem na alma, tanto por seus defeitos, quanto por suas qualidades. Um nome, só um nome, pouco diz, muitas vezes não diz nada, nada significa, nada transmite. Mas...

E então, como se finalmente lhe ocorresse, respondeu sorrindo:

- Zé Luiz.

- E de onde vem, Zé Luiz?

Novamente hesitou. Pensou, como tantas vezes já fizera, nada lhe ocorreu.

- Não sei... – disse, com voz sumida, semblante fechado, cheio de tristeza.

- E essa bonequinha que você não larga para nada?

Voltou a sorrir, erguendo-a embevecido para o alto, voltou a protege-la contra o peito, como se a ninasse eternamente num acalanto que só ele entoava e só ele e a bonequinha ouvissem. Mas nada disse.

Talvez, se lhe perguntassem por que tantas vezes ficava tristemente imóvel balançando a bonequinha como se a acalentasse, olhando alguma coisa que só ele via e sentia dentro de si mesmo, talvez respondesse de uma forma enigmática que escaparia ao entendimento ou, às vezes, inconfessável:

- Estou apenas olhando para uma saudade...

Não, não o faria, não o diria. Porque, talvez, nem ele mesmo o soubesse.

Como nada tinha, uma família dividiu o pouco que tinha de alimento com ele.

A chuva continuou alegremente, sem sinais que iria parar tão cedo.

Como se isso de alguma forma inexplicável pudesse acontecer, Zé Luiz via flores que brotavam magicamente da terra seca e estéril.

Inexplicável? Como inexplicável? Ainda não dissera e provara há apenas algumas horas que nada é impossível para aquele que crê?

E ele acreditava, ah, como acreditava...

Fechou-se num mutismo incoerente, parecia ter deixado de ver as pessoas que o circundavam com curiosidade, querendo saber mais daquele homem misterioso.

A noite chegou. Zé Luiz abrigou-se num cantinho da capelinha onde o telhado que desabara acabara apoiado parcialmente na parede, formando um nicho seco que lhe permitiria repousar.

Estendeu um cobertor esfarrapado no chão de terra batida, cobriu-se com outro tão esfarrapado quanto, colocou com desvelo a bonequinha a seu lado, beijou-a com carinho, cobriu-a também com uma ponta de seu cobertor.

Elevou uma prece a Deus, agradeceu por ser um instrumento de Sua paz, por Deus ajuda-lo a ser um homem bom, por uns momentos olhou as estrelas que brilhavam como se sob um encantamento, mesmo a despeito da chuva que significava vida e esperança.

Adormeceu.

(Continua)

 

 



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