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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Meu pedacinho de terra, meu pé de serra... (Continuação) Cap. III ao Cap. V

Quinta, 14 de dezembro de 2017


 

(Continuação)

 

III

E chegou o mês de Maio, se bem que Tuniquim não soubesse ao certo o que aquilo significava. Para ele o tempo era atemporal, era só um suceder de dias entremeados de noites frias como a vida que levava.

Era ainda um rapaz que se tornara homem forjado pelas circunstâncias.

Testa alta, olhos doces e expressivos, barba e bigode ralos, um sorriso sempre lhe arqueava os lábios e se lhe transbordava pelos olhos doces e expressivos, encantando a todos.

Quando lhe perguntaram quem era, de onde viera, essas coisas, não soube o que responder. Sequer sabia como chegara ali. Não sabia seu nome completo, não sabia se algum dia tivera uma família, nada.

A profunda cicatriz que lhe marcava a testa talvez explicasse este esquecimento, mas nem isso sabia dizer como acontecera.

O fato é que estava ali, tinha um cantinho, e isso, só isso, já lhe bastava para ser feliz.

Mas chegara o mês de Maio, e Tuniquim viu-se convidado para uma festa de casamento na casa de um dos vizinhos. Chegou a recusar a lembrança, por não ter o que levar. Mas quando soube que pouquíssimos teriam alguma coisas com que presentear os noivos, então aceitou alegremente.

Preparou a melhor roupa que tinha, passou-a cuidadosamente com o ferro de carvão em brasas que também ganhara, procurou tirar a poeira da botina que há muito tempo pedia outra, foi para a festa.

Apesar de tudo envergonhado por estar com as mãos vazias, não queria ficar moquiado num canto. No caminho colheu quantas flores encontrou, ao menos iria ajudar a deixar o casamento mais bonito.

Estava conversando com o compadre Josias quando a perdição aconteceu para ele. Ouviu um riso alto atrás de si, voltou-se e se sentiu petrificado diante da morena mais bonita que já havia visto.

Gaidinha (soube o nome depois) estava com as amigas, e riam de alguma coisa que conversavam em voz baixa e só elas sabiam o que era.

Pela primeira vez na vida Tuniquim se viu petrificado. Seu queixo caiu, o chapéu lhe escapou das mãos e foi ao chão. Gaidinha o olhou e ele ficou muito vermelho, querendo morrer, querendo que o chão se abrisse para que ele ali se atirasse. As moças perceberam, arreliaram a amiga, os risos se transformaram em gargalhadas maldosas. E se foram para outras bandas, deixando Tuniquim com a descoberta que nunca havia visto uma moça tão bonita quanto aquela.

Mas a vergonha que passara lhe tirou a alegria. Amoitou-se como pode, e quando achou que ninguém estava olhando, saiu de fininho.

A lua iluminava as trilhas que tinha que percorrer, matizando tudo de dourado, o dourado que doía tanto no que se transformara sua vida.

Queria e não queria ver Gaidinha outra vez, cônscio que era pobre demais, que nada tinha para lhe oferecer.

Chegou no seu cantinho, sentou-se na soleira da porta sem abri-la, encostado na folha rústica de madeira, o rosto tão lindo de Gaidinha flutuava diante de seus olhos.

A gargalhada com que as moças e Gaidinha o humilharam se fazia ouvir vezes e vezes seguidas, mas até aquilo não tinha importância. E pela primeira vez na vida Tuniquim se permitiu sonhar de olhos abertos que nada viam, mesmo sabendo de alguma forma inexplicável que era um sonho e nada mais seria que um sonho inatingível.

Por um momento pensou como seria bom encontrar aquela moça linda em casa todas as vezes que ali chegasse. Quá...

Abriu a porta, buscou a garrafa de pinga, voltou a sentar-se na soleira e começou a afogar suas mágoas.

No dia seguinte, ao acordar, deparou-se consigo mesmo caído de borco no terreiro defronte à porta. Bebera tanto, tanto, tudo o que havia na garrafa, e nem se lembrava de ter submergido lentamente em sua dor antes que a inconsciência benfazeja o afastasse de tudo.

Tentou se levantar, só o conseguiu na terceira tentativa.

Capengando, incapaz de andar numa linha reta, foi até a bica gelada onde mergulhou a cabeça, e lá ficou até que a mente lhe assentasse.

- Bunito, né seu Tuniquin?... – recriminou-se.

No final da tarde enfim se normalizou. Caminhou até o povoado, sempre pensando irresistivelmente em Gaidinha. Que, com certeza, esquecera aquele infeliz no momento seguinte.

No sábado Tuniquim foi novamente ao povoado, tinha algum dinheiro no bolso, mas tinha sobretudo aquele moça linda no pensamento e coração.

Na venda pediu uma pinga e um pão com mortadela. Mordiscou deu um trago, ficou olhando para o vazio.

Não viu, mas escutou o ganido de um cachorro quando alguém lhe deu um pontapé. Olhou com raiva quem fizera isso, mas o outro era mais forte, teve o bom senso de não dizer nem fazer nada. Mas não quis continuar ali no meio daquela gente má, pagou o que devia, emborcou o resto de pinga de uma só vez e saiu tentando mordiscar outra vez o sanduíche. O cachorro, talvez pelo cheiro da mortadela, começou a segui-lo.

Como no poema de Odilon Ramos (“Que diacho, eu gostava do meu cusco”) que desconhecia, era um cachorrinho amarelo, baixinho, já velho, de perna torta que o fazia mancar um pouco.

Tuniquim andava abichornado, bebendo mais que o costume, essas coisas de rabicho, de ciúme, sentindo uma falta inexplicável de alguma coisa que nunca tivera realmente. Vocês entendem? Pois o cachorrinho entendeu.

Passou o resto do dia bebendo em outra venda e o cachorrinho ali no costado, olhando para ele de atravessado, esperando por comida.

Tuniquim olhou com amargura o sanduíche, deu quase tudo para o animalzinho. Um pouco, por pena dele, e outro, que naquela noite, só bebida ele engolia por causa dos pensamentos.

Já pela entrada do sol, ainda pensando em Gaidinha e nas misérias da vida, tomou o caminho de casa. Viu que o cachorro magrinho vinha troteando pertinho, com um jeito encabulado.

- Vorta p’rá casa, ‘miguin’ – ralhou e ralhou com ele, que parava um pouco, fugia, farejava qualquer coisa e depois voltava.

Não teve jeito. Acompanhou-o até a casa que adotou como sua, e lá ficou. Com uma lágrima de saudade pelo amigo porquinho que se fora, Tuniquin constatou que acabara de ganhar outro.

‘miguin’ consolou Tuniquin quando ele soube que Gaidinha dera um mau passo, engravidara e o rapaz não quis casar. Ela se foi através de uma grande dose de formicida tatu, deixando sua vergonha e desdita para trás. E uma saudade imensa no coração e alma de quem se apaixonara daquela maneira por ela, mesmo que a tivesse visto uma única vez.

Mas seu amiguinho já estava velho. Alguns meses depois, o fiel ‘miguin”, já cego, não teve mais forças para reagir. Nos seus últimos dias de vida, enquanto seu dono  o alisava e falava com ele, o cão moribundo, para agradecer, tentava abanar o rabo, mas este abano, por ele estar deitado, não passava de um ploc-ploc no chão de terra batida.

Depois Tuniquin contou que, ao morrer, na hora derradeira, ‘miguin’ repuxou bem para cima, só de um lado, a sua bochecha sempre flácida, e num sorriso torto parecia querer se despedir como quem diz: “ –  É, companheiro! Pela idade natural dos cachorros, eu vou partir para a última viagem. Obrigado pelas horas boas que passamos juntos!

Então fechou os olhos para sempre.

Levou com ele uma lágrima de tristeza e saudade de seu dono, o mundo de Tuniquim ficou ainda mais triste.

Foi enterrado no terreiro, onde sempre ficavam juntos olhando o sol ir embora e a lua chegando, uma sepultura tosca com uma pequena cruz mais tosca ainda dizendo que ali estava o melhor cachorro do mundo.

Naquela noite Tuniquin bebeu desesperado tudo o que estava a seu alcance, desfazendo-se em lágrimas num sofrimento indizível.

Então sonhou (?) que um ser etéreo (seria um anjo?) veio até ele, tomou-o pela mão e o levou para um lugar maravilhoso, mais maravilhoso até que seu pedacinho de chão. Amparou-o, para que Tuniquin pudesse ver tudo. E então, com voz plena de bondade e carinho, começou a falar:

- Meu irmão terreno, eu quero que você saiba que estamos no que é chamada de Ponte do Arco Íris.  Aqui nós moramos com Deus, aqui não existe choro nem sofrimento, aqui só existe o amor eterno.

Primeiro, vamos falar de seu ‘miguin’. Quando os anjos de quatro patas – ou qualquer outra criatura que amamos – se despedem de nós, e com um suspiro deixam escapar o seu último adeus, eles atravessam a Ponte do Arco Íris. Do outro lado desta ponte há campos e colinas nos quais eles podem correr e brincar.

Ali existe espaço, comida e sol para que todos eles se sintam bem. E todos os que estiveram doentes, foram mutilados ou cruelmente machucados, têm a sua saúde restaurada e transbordam de alegria.

Nossos amigos estão contentes e felizes, mas sentem saudades de alguém especial que deixaram do outro lado. Por isso, de repente, enquanto todos correm e brincam, alguns deles se detém e cravam seu olhar brilhante no horizonte.

Seus corpos estremecem e com grande emoção se separam de seu grupo, correndo rapidamente através do campo, eles nos vêem na metade da ponte e vão correndo velozmente nos receber. Então, humanos e animais, amigos da alma, se reúnem e nunca jamais se separarão outra vez.

Não fique triste pelo seu ‘miguin’, por achar que ele não está mais a seu lado. Ele está, acredite, você apenas não pode vê-lo, mas pode senti-lo.

Você me entende, Tuniquin?

Ele apenas assentiu, nada podia dizer, mas inconcebivelmente compreendera e assimilara cada palavra daquele ser que falava o linguajar da cidade, não o seu dialeto caipira do dia a dia.

O ser consolador continuou:

- Em segundo, Tuniquin, vamos falar agora de Gaidinha e tantos que se já se foram para nosso Deus. Naquele dia em que ela o deixou, quando sua vida na Terra terminou, Deus a pegou no colo e lhe disse “ – Seja bem vinda, é bom ter você de volta, todos sentiram sua falta. Você fez uma coisa muito feia, mas eu a perdoo. Se você não fosse fraca e falha, não seria humana. Se Eu não fosse misericordioso, não seria seu Pai Eterno. Quanto a sua família, ela estará aqui também um dia.

Vou lhe dar uma lista de coisas que quero que você faça, e uma das mais importantes é tomar conta de outros para que não façam o que você fez.

E, quando estiverem deitados em suas camas, com as tarefas do dia terminadas, no meio da noite Eu e você estaremos perto de cada um deles.

Quando os que participaram de sua vida na Terra se lembrarem de você, e de todo o tempo que passaram junto, por ser humano provavelmente você irá chorar, filha Gaidinha.

Mas não tenha vergonha de chorar, é bom e alivia a dor. Eu gostaria de lhe dizer tudo o que planejei, mas se eu dissesse, você não entenderia.

De uma coisa eu tenho certeza, Gaidinha. Embora sua vida na terra tenha terminado, você está mais perto dos que lá ficaram do que já esteve um dia. Agora, compreendenda verdadeiramente cada um de seus irmãos e irmãs.

Existem pedras no caminho deles, e muitas montanhas para escalar, mas juntos nós poderemos fazer isso, um pouquinho a cada dia.

Isso foi sempre Minha filosofia, e eu gostaria que fosse a sua também: o que você dá ao mundo, o mundo lhe dá de volta.

E agora, sinta-se feliz, Gaidinha, pois a sua vida, apesar do que você fez, valeu a pena. Saiba que quando esteve na Terra você fez alguém sorrir.

Quando seus irmãos e irmãs estiverem andando, pensando em Mim, nós os estaremos acompanhando apenas um passo atrás. E quando chegar a hora deles irem, deixar o corpo para se sentirem livres de verdade, nós os ensinaremos que eles não estarão indo, mas estarão vindo a Meu encontro.

Uma menininha se aproximou a segurou a mão de Gaidinha, que em seus olhos se reconheceu nela, a filha que também matara quando deixara sua vida e desdita para trás.

- Tome conta dela, Gaidinha. E a ame como você também foi amada um dia.

Palavras do Senhor, Tuniquin, nosso Pai do Céu.

Creia. E console-se. A morte não é o fim de tudo, é só o começo.

No outro dia ao despertar, confuso com o sonho (?) que tivera, Tuniquin preparou e tomou o fraco café que dispunha. Então rodou em volta da casa até encontrar as duas achas de lenha que precisava e procurava.

Improvisou uma cruz tosca e a cravou no lugar onde sempre se sentava com Gaidinha em seus pensamentos para conversar e ver o sol indo embora.

Colheu uma grande braçada de flores silvestres e a depôs defronte a cruz.

- Procê, Gaidinha... – murmurou, uma lágrima a lhe escorrer pela face.

Então ajoelhou-se, rezou um Pai Nosso. Escapou-lhe um “disgracera”, pediu perdão a Deus, levantou-se e foi em busca da garrafa de pinga.

 

IV

Ficou sentado ao lado da cruz por todo o dia. Pensando. Lembrando. Bebendo. Sofrendo.

De vez em quando tinha longos cochilos provocados pelo álcool, bebeu até a garrafa ficar vazia, com um gesto de desencanto deixou que ela escapasse de sua mão e rolasse no terreiro.

O sol lá se foi na virada do mundo, ele o olhou distraidamente quase sem ver. E adormeceu.

Mais uma vez o anjo lhe apareceu em sonhos, consolador.

Diante daquela miséria humana, o anjo que já vira e via tantas, tantas, não se conteve e seus olhos se encheram de lágrimas, penalizado.

Ele, que deveria ser o forte.

Ele, que deveria estar acima destas demonstrações de sentimentos tão humanos.

No sonho (?) Tuniquin sentiu ser amparado por uma fonte de Luz. E então, vívida, indiscutivelmente real, ouviu a voz suave e celestial que lhe dizia meigamente:

- Tuniquin, sou feito de sentimentos, emoções, de luz, de amor. Sou a voz que te ouve quando pedes um conselho, sou eu quem te toma nos braços quando necessitas. Agora, enquanto escutas estas palavras, eu estou aqui, olhando dentro dos teus olhos, como quem quisesse ver o que teu coração demonstrará, mais tarde, à noite, quando te deitares.

Sou eu quem te protege os sonhos, sentado a teu lado esperando que adormeças, sussurrando que tudo vai ficar bem.

Se ao menos pudesse aperceber-te do que sinto...

Basta querer, basta, por alguns instantes, esquecer os teus problemas, fechar os olhos, como se nada mais existisse, e me deixar chegar perto de ti, abraçando-te.

Sente o meu coração batendo ao compasso do teu. Sente que não estás sozinho, nunca estiveste! Apenas te esqueceste de olhar-me com os olhos do coração! Abra os olhos e fixa os meus. Conhece-me.

Quem sou eu para pedir que dês por mim? Apenas um anjo que se deixa levar pelas emoções, que desconhece o que é errado e entrega-se, rende-se, enquanto deambula pelas estrelas, pelas nuvens, pelo céu escuro da noite, olhando pelos outros, despertando amores, anseios, paz, nas almas que fraquejam sentado ali em cima olhando. Observando.

Manifesto-me através de pequenas coisas, como num sorriso sincero nos lábios de alguém, no toque de uma criança, nas palavras escritas nas páginas de um livro que chamam a atenção, palavras que mexem e emocionam o coração como murmúrios ao ouvido. E, se um dia, uma brisa leve e suave tocar o teu rosto, não tenhas medo. É, apenas, minha saudade que te beija, em silêncio.

Os humanos têm um hábito muito peculiar de julgar os seus semelhantes pela aparência. De rotular pessoas as quais nunca viram.

Mas eu consigo ver dentro de cada um o que realmente são e assusto-me, algumas vezes. Como podem os humanos deixar-se levar por embalagens, por invólucros e ignorar verdadeiros tesouros: amizade sincera, lealdade, companheirismo, simplesmente por não terem gostado do rosto de alguém? Imagina uma roseira cheia de espinhos, ninguém acreditaria que dela pudesse nascer uma rosa bela, sensível, delicada...

É do interior que nascem as flores.

Pude conhecer o teu interior e descobri uma flor linda, com muitas qualidades. Continua assim, é melhor sermos o que realmente somos a viver como as pessoas acham que deveríamos ser.

Não existe ninguém melhor ou pior, apenas diferentes uns dos outros e essas diferenças mostram quem realmente somos. Fico assim dizendo coisas que sinto dentro do peito, contando o que se passa comigo, como se estivesse desabafando. Deus fez-nos para cuidar dos outros, mas, quem cuidará de nós?

Continuarei aqui, meio que escondido mas ao teu lado, olhando-te, sentindo-te, esperando que, um dia, deixes o teu coração olhar e ver-me. Talvez, enfim, possa mostrar o quanto és especial para mim: um poema deixado no ar, palavras implorando para viver como uma estrela que o dia não vê e que espera a noite chegar para poder mostrar-se; a canção de amor que sai da tua boca, as coisas que sussurro ao teu coração, tentando traduzir emoções que nunca senti.

Fica com Deus, irmãozinho.

Abençoou Tuniquin que dormia, sabendo que ele jamais compreenderia palavras que simplesmente estavam fora do seu alcance iletrado. Mas, daquela forma, como se fosse um sonho (?) maravilhoso e especial, por mais incompreensível que fosse, naquelas condições sabia que Tuniquin entenderia, intuiria. E, talvez, se consolasse.

Desvaneceu-se lentamente, deixando o solitário e sofrido Tuniquin acompanhado e embalado por sua solidão.

‘miguin’, que dormitava aos pés do dono, ergueu a cabeça como se visse (sentisse?) o anjo, começou a abanar a cauda.

- Deixa comigo... – pareceu dizer ao anjo, através de alguma linguagem inconcebível somente possível entre eles.

Noite já fechada, Tuniquin arrastou-se cambaleante para dentro de casa e desabou em sua cama.

 

V

Os dias foram passando modorrentos e tristes. Mas era preciso tocar a vida em frente.

Quem sabe, talvez esta mesma vida que trazia e trouxera tantas coisas ruins, um dia será que poderia trazer alguma coisa boa?

Tuniquin ouviu uma voz lá fora, reconheceu com alegria que era a de Josias.

- Ô di casa...

Saiu com um sorriso para receber o amigo, o abraçou meio envergonhado, como se buscasse nele um pouco do apoio e amparo emocional que precisava tanto.

- Qui o traz tum cedo’qui, cumpadre?– perguntou.

- Vim vê si ocê ‘tá bem – respondeu. – E vim ti cunvidá p’rá festa di minha fia ‘sabelinha. Vai fazê niversaro‘manhã.

Tuniquin sorriu.

- É... já ‘tá u’a moçinha...

Josias se emocionou.

- Qinz’ano, Tuniquin... Inda onte ‘tava nos meu braço, piquinina.

- É a marvada vida, cumpadre. Si console.

- Entonce... ‘tô chegano. Aminhã a tardi, ‘tá bom?

Tuniquin não tinha relógio, baseava-se pela altura do sol no céu sempre azul. Foi para a casa do compadre quando ouviu no silêncio da mata, apesar da distância, os primeiros ruídos da festa.

Deu um beijo na mocinha. Isabelinha trajava um vestido branco, simples, bonito, costurado principalmente com amor, pela mãe. Estava amuada, apesar da festa. Ou, talvez, por isso mesmo.

- Que qui foi? – perguntou Tuniquim com carinho, estreitando-a num abraço pleno de afeto. Secretamente, em seu coração,  Isabelinha era a filha que ele nunca iria ter.

- Nada não... – murmurou a menina, olhos baixos. A mãe interveio.

- Ah, Tuniquim, ela qué u’a rosa vermeia p’rá colocá no vestido. Dond’é qui eu vô conseguí u’a rosa vermeia aqui, onde?

Tuniquin riu, deu outro beijo na mocinha e a soltou.

- ‘ocê num pricisa dessa rosa vermeia p’rá ficá mais bunita, ‘sabelinha.

Foi a vez dele ganhar um beijo agradecido.

Isabelinha foi receber alguns conhecidos que chegavam, Tuniquin ficou conversando com a comadre.

- ‘sabelinha ‘tá mió, cumadre?

A aniversariante estava muito magra, a mãe atribuía isso à pouca alimentação de que dispunham. Pegara uma gripe forte, melhorara, mas ainda tossia bastante, ficava com falta de ar.

- Levei ela p’rá benzedera, Tuniquin, si Deus quisé ela vai meiorá logo.

- Tumara, cumadre, tumara...

Josias, abraçado à filha, começou a chamar lá do outro lado do terreiro.

- Vamo, muié, vamo começá esta festa...

Alguns vizinhos haviam levado seus instrumentos, começaram a tocar uma música bonita. Apesar dos fracos protestos da filha, Josias a enlaçou e começaram a dançar.

Isabelinha rodopiava, o vestido branco esvoaçando alegremente, marcando e acentuando o ritmo da música.

De repente ficou muito pálida, começou a tossir sem parar, sufocada.

Josias, preocupado, amparava a filha que desfalecia em seus braços.

Então a mocinha estremeceu, uma golfada de sangue subiu à sua boca e escorreu incontido para o peito do vestido branco. Era uma hemoptise, ninguém sabia, mas Isabelinha estava irremediavelmente tuberculosa.

Suas pernas fraquejaram e Josias atenuou a queda, depondo a filha com carinho no chão de terra batida. A menina olhou o vestido manchado de sangue e sorriu feliz.

- Papai – conseguiu murmurar – ganhei mia rosa vermeia...

Fechou os olhos quando uma segunda golfada de sangue a sufocou.

No momento seguinte Deus estendeu Suas mãos e tomou Isabelinha nos braços.

Naquela noite, sob a luz triste da lua, um Tuniquin com os olhos cheios de lágrimas e o coração apertado cravava uma terceira cruz em seu terreiro.

 

(Continua)



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