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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Meu pedacinho de terra, meu pé de serra... - Intróito ao Cap. II

Sexta, 08 de dezembro de 2017

 

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“No Rancho Fundo
Bem p’ra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade...
No Rancho Fundo
De olhar triste e profundo
Um moreno canta as "mágoas"
Tendo os olhos rasos d'água...”

 

Lamartine Babo inspirou sua música em terras da Serra da Mantiqueira, mais precisamente no então longínquo e quase desconhecido município de São Bento do Sapucay.

Os dois primeiros versos retrataram a distância, a solidão que o município aparentava, principalmente ressaltado pelo segundo, “bem p’ra lá do fim do mundo”.

Rancho Fundo, entretanto, ainda não era o fim do mundo.

Bem além dele, muito além dele, em algum lugar incerto e mais distante ainda que até nem Deus sabe onde está, num cantinho quase inacessível ao pé da serra, morava o caboclo Tuniquin.

Nome do lugar?

Não tinha.

Mas haveria de ter, mesmo que anos depois, brotando inesperada e maravilhosamente de outra melodia cantada por dois violeiros.

 

 

I

O dia amanheceu frio e enevoado, apesar do inverno ainda não ter chegado.

Afinal, nada de se estranhar. Naquele longínquo pedaço de chão perdido, aparentemente isolado de tudo e de todos, as notícias de fora teimavam a chegar, como relutantes a serem divididas, conhecidas e partilhadas pelos poucos moradores. E uma destas notícias, talvez, fosse o fato do inverno já ter chegado ou não.

Indiferente, para quem por lá morava. Simplesmente porque, pela altitude que se erguia abrupta e azulada para quem via os contrafortes da serra à distância, o frio das madrugadas e manhãs era uma constante.

Depois o dia esquentava, e às vezes muito, mas só até o sol se por.

Pouco a pouco o anoitecer fresco muitas vezes se transformava na madrugada gelada que fustigava os desavisados ou os pouco protegidos.

Na mata exuberante havia poucas e isoladas casas, bem distantes uma das outras. O povoado mais próximo distava muitas léguas dali, muitas horas de dura caminhada por trilhas estreitas e irregulares abertas na mata fechada, cheias de raízes ávidas por pés descuidados ou inexperientes que muitas vezes enredavam os incautos e os arremessavam ao chão.

Uma légua, hoje, seria estimada em 6.600 metros. Mas naquele tempo o caipira que não tinha meios matemáticos de precisar isso simplesmente dizia que légua era a distância que poderia ser caminhada em uma hora.

Não me perguntem como eram capazes de calcular uma hora, mas o sabiam, bastava-lhes apenas olhar para o sol.

Muitas pequenas mas belas cachoeiras que acabavam se encontrando de alguma forma e constituindo o rio sem nome onde os moradores pescavam com facilidade os lambaris, os piracanjubas, as traíras, os mandis, os cascudos e tantos outros que hoje não existem mais.

Não havia pastagens porque não havia gado.

Cada casa tinha seu chiqueiro onde criavam dois ou três porquinhos, as galinhas eram criadas soltas e à noite se abrigavam num poleiro sob um telheirinho improvisado. Uma pequena horta, quando havia.

Talvez uma cabrinha que dava leite forte para as crianças depauperadas e raquíticas por algum pouco tempo, e era só, naquela vida preguiçosa assim chamada indevidamente por muitos que se jactavam do que estavam falando, segundo eles com pleno conhecimento de causa.

Um dia, sabe-se lá de onde, surgiu um rapaz no lugar. Caminhando pelas trilhas que interligavam inevitavelmente as poucas casas, trajando uma roupa simples, um palheiro na cabeça, botinas gastas e deformadas, trazia simplesmente um embornal no ombro e um pequeno saco com algumas ferramentas.

Chegava nas casas, bati palmas, tirava o palheiro em sinal de respeito e perguntava se sabiam de algum lugar livre onde pudesse fazer sua casinha. Às vezes pedia um pouco d’água que lhe era servida numa canequinha de lata. E a resposta era solidária, quase sempre a mesma:

- Va’ im frente. Quando não tivé mais casa, ‘ocê ‘stará no sertão, fique onde quisé lá. Tem família? Vem mais gente? – então perguntavam.

Não, não havia mais gente, ele era sozinho.

- I cumo si chama, minino?

Um sorriso lhe encheu o rosto e os olhos, parecia que só aquilo tinha realmente de seu.

- Tuniquin – respondeu simplesmente.

Assim se nominou, assim ficou.

Andou muito, naquele dia.

Até que a noite chegou e uma família, condoída, lhe concedeu pernoite sob um telhadinho que o protegeria do sereno, mas não do frio.

No outro dia caminhou até que a trilha na floresta se fechou de vez, a mata se tornou quase impenetrável, obrigando-o a tirar as botinas e palmilhar um riacho límpido e gelado.

Ouviu, então, o suave murmurar de uma pequena cachoeira, quase um filete d’água que se precipitava alegremente de uma pedra. Parou, olhou em torno. Um pequeno outeiro dourado pelos raios de sol que ali chegavam, bem próximo do contraforte que a seus olhos se erguia a pino, desafiando-o a subir. Teve que sorrir.

- P’rá que, papudo? – perguntou ao contraforte, que não teve o que lhe responder.

Gostou do que viu. Se de um lado o contraforte selvagem constituía uma verdadeira barreira, do outro o Vale do Parahyba se descortinava quase que por inteiro, à sua vista deslumbrada .

Sua busca terminara.

Havia chegado.

Procurou e encontrou uma pequena furna, uma gruta, que poderia lhe servir de morada até construir sua casa. Acomodou o embornal onde havia um pouco de farinha de mandioca e carne seca sobre uma vara, de modo a deixa-lo fora do alcance dos animais. Para que as formigas não subissem colocou a ponta da vara dentro de uma canequinha com água.

Então foi até a última casa pela qual passara, conseguiu emprestado uma enxada e uma foice, voltou, mastigou alguma coisa mesmo fria, e então começou a limpar uma pequena área onde construiria sua casa.

Madeira não faltava. Não havia prego, mas havia cipós. Com dificuldade assentou quatro troncos desgalhados para delimitar o perímetro de sua casa, cortou muitos galhos que foram sendo amarrados lado a lado fechando as paredes como bem podiam. Não havia janelas, construía um único cômodo onde os interstícios entre os galhos deixavam passar a claridade. E a frieza da noite, como depois a reencontrou, companheira costumeira de toda a sua vida.

Caminhando ao longo do pequeno rio encontrou um alagadiço onde brotavam as compridas folhas de taboas, que por enquanto substituiriam o sapê que ainda não encontrara.

Sozinho, levou alguns dias para construir seu abrigo, a caverna era muito fria à noite, ele não podia ficar doente.

De vez em quando tinha que interromper a construção e voltar às casas, oferecendo serviço de roçada ou o que precisassem em troca de alguma comida. E assim foi levando sua vida costumeira que lhe trazia tão poucas surpresas que, quando vinham, eram ruins em sua maioria.

Seu abrigo ficou pronto, mas faltavam tábuas para fazer a porta. Conseguiu, sabe-se lá onde, uns sacos de estopa velhos, abriu-os e os uniu como pode, o pano que tremulava como uma bandeira esburacada fechou sua casa. Lá fora improvisou uma pequena bica para pegar água com mais facilidade. Naquela tarde devolveu as ferramentas que emprestara, pegou seus parcos pertences na caverna e se mudou.

Mastigou alguma coisa, ficou por algum tempo vendo sem ver a lua nova que brilhava lá no céu, bebeu alguns goles de cachaça para espantar a fome que lhe roncava perpetuamente no estômago, pensou um pouco na vida e foi dormir.

Acordou ouvindo os trovões que se avizinhavam rapidamente ao longe. Logo em seguida veio a chuva, um violento temporal entremeado de estouros e relâmpagos que lhe pareciam anunciar o fim do mundo.

O vento forte empurrava a chuva gelada através dos galhos que eram as suas paredes, encharcando-o inapelavelmente.

Então o telhado foi  arrancado e ele se viu desprotegido sob o céu escuro que o castigava com tanta água, forçando-o a correr até a segurança e proteção da caverna que estava mais fria ainda.

Passou aquela noite tiritando de frio, não havia uma única acha de lenha seca para fazer uma fogueira que o aquecesse, e mesmo que houvesse, seus poucos fósforos não acenderiam.

Chegou a pensar que não sobreviveria àquela noite, mas aos poucos o temporal passou e ele finalmente conseguiu dormir, na mais pura exaustão.

 

No dia seguinte inventariou suas perdas. Teria que recomeçar tudo de novo.

Voltara à casa do amigo que lhe emprestara as ferramentas, explicou o que acontecera e as pediu novamente.

- ‘cê tem qui fazê taipa de pilão, Tuniquin – orientou. – Cumo ‘ocê fez, num tem casa que ‘guente.

- Qui qu’eisso, Josias? – perguntou, confuso.

- É cumo fiz minha casa – explicou. – ‘cê coloca duas talba, ench’elas com barro do rio, soca, vai subino as parede da casa. Vamo lá que’u t’insino.

Pegou um balde, um soquete de pilão e duas tábuas grossas que tinha num ranchinho, Tuniquin ajudou o bom Josias a carregá-los até o que fora sua casa.

Limparam o terreiro dos destroços que agora só serviriam para lenha, com o facão Josias cortou algumas estacas, colocou as tábuas espaçadas cerca de um palmo e as travou com cipó, tudo sob o olhar atento de Tuniquin.

Foram então à beira do rio, Josias encheu o balde com o barro bastante úmido da margem, ficaram num ir e vir até que o vão entre as tábuas ficasse cheio com uma camada até meia altura. Então pegou o soquete e começou a compactar, até que a terra parasse de responder aos golpes.

- Agora, Tuniquin, temo que travá uma camada n’outra, sinão num tem tanta sustança – explicou.

Josias cravou então pedaços de taquara mais ou menos cada dois palmos, separou pequenos pedaços de galhos de madeira dura, improvisou uns piquetes e envolveu-os com folha de bananeira. Colocou-os atravessados segundo a espessura da parede, revelando:

- Isso são us cabodás, Tuniquin. Cum eles podemos subí as talbas e continuá inchendo.

- Mas p’rá que as foia de bananera, Josias?

- P’rá podê tirá os cabodás despois, Tuniquin, sinão eles gruda na parede.

Repetiram o processo algumas vezes, depois Josias colocou as tábuas no chão, prendendo-as à primeira parte executada. Tudo se repetiu, até que os quatro lados estavam fechados, exceção à porta de entrada.

Trabalharam o dia inteiro construindo pacientemente a nova casa. Tendo compreendido como fazer, a partir da manhã seguinte trabalhou sozinho, Josias tinha que cuidar dos próprios problemas. Foi depois ajudar o amigo que não sabia como deixar os vãos das janelas.

Ensinou-o também a fabricar telhas com barro do rio, usando como forma um pedaço de tronco de palmito, as telhas eram deixadas a secar sob o sol forte e depois queimadas numa fogueira improvisada para adquirir a dureza e resistência necessárias.

Um dia a nova casa de Tuniquin ficou pronta, para seu orgulho e alegria.

Levou os poucos pertences para lá, mas manteve sempre limpa a gruta que o socorrera nos momentos de necessidade, nunca se sabe...

O compadre brincou, lhe entregando uma pá que trouxera:

- Tuniquin, agora ‘ocê tem qui fazê uma casinha, chega di usá as bananera...

Fazer a latrina foi rápido, o solo macio não apresentou problemas. Com o passar do tempo, entretanto, Tuniquin começou a matutar. A casinha, pela distância que tinha que ficar da casa face ao mau cheiro, trazia muitos inconvenientes, principalmente quando chovia ou era preciso ser usada à noite.

Pensou, pensou, matutou, então a solução óbvia lhe ocorreu: trazê-la para mais perto da casa. Facilitou, mas com isso o problema do mau cheiro aumentou. Uma tarde, desatinado, jogou um balde de cinzas do fogão na fossa, como por milagre o fedor sumiu. Isso acabou resolvendo outro problema: o que fazer com as cinzas do fogão.

Josias, numa de suas raras visitas, se encantou com a solução.

E, brincando, acabou deparando-se com a consequência natural: trazer a casinha para dentro de casa. A porta bem próxima do fogão, exatamente para facilitar o transporte das cinzas.

Por algumas décadas até construções em cidades adotaram este sistema que se expandiu, o banheiro acessado diretamente pela cozinha.

 

 

II

Aos poucos Tuniquin ficou conhecendo outros moradores mais próximos, se bem que esta proximidade era relativa, face a distância entre uma casa e outra.

Casa nova, restava agora cuidar da subsistência, já que dinheiro mesmo era praticamente nenhum.

Conseguiu com o compadre umas mudas de rama, plantou a mandioca perto da cachoeirinha, transplantou umas touceiras de bananeiras, alguns temperos.

Acabou ganhando duas galinhas poedeiras de outro vizinho, deixou que elas se criassem soltas em volta da casa, mas fez um telhadinho com um poleiro onde elas se recolhiam à noite.

Peixe, farofa e fritura não são alimentos geralmente associados a um bom café da manhã. Mas era o que os caipiras do pé da serra comiam. Quando tinham.

Peixe salgado, banana assada, mandioca cozida, farofa, caldo de cana, rapadura, era considerada uma mesa farta. Poucos a tinham, e mesmo assim, raramente.

Café da manhã que se repetia igualzinha no almoço, café da tarde e jantar.

Igualzinha? Nem sempre, porque refeição a refeição as quantidades iam diminuindo cada vez mais naquela vida pobre e sofrida.

Sabia onde encontrar as frutas silvestres que sempre completavam sua refeição, mas somente elas eram insuficientes. E as vezes em que saía com a vara de pesca sobre o ombro, muitas vezes voltava com menos que o insuficiente.

De vez em quando, quase raramente, emprestava uma cartucheira e saía para caçar, mas sabendo que teria que repartir tudo, já que o dono da arma era quem fornecia os cartuchos que ele mesmo carregava. Como no litoral que sequer sabia que existia, a arma ficava sempre pendurada sobre o fogãozinho, de modo que a gordura das frituras, vaporizada, a afastasse da ferrugem.

Tuniquim era um caçador sofrível. Culpa de seu bom coração e o respeito intuitivo que tinha pelos filhos da mãe natureza. Até que tinha uma boa pontaria, mas sempre fechava os olhos quando ia apertar o gatilho, já se sabendo arrependido de antemão. E sempre rezava uma oração depois, um mudo pedido de perdão, fosse um simples passarinho.

Sua carreira terminou numa tarde em que atirou no que pensara ser um porco-do-mato. Não era, era uma fêmea semioculta pelo mato, e ele se amaldiçoou quando só então viu o filhotinho junto à mãe.

Lágrimas nos olhos, recriminando-se e se culpando sem parar, colocou a cartucheira a tiracolo no ombro. Pegou o bichinho delicadamente e o levou para casa. Antes devolveu a espingarda para sempre, deixou a porca-do-mato com o vizinho para ser limpa e dividida.

Não se sabe como, o porquinho conseguiu sobreviver. Criado solto tornou-se, como sóe acontecer, uma espécie de cão. Seguia o dono para onde ele fosse, dormia aos pés da cama improvisada, tornou-se o companheirinho de Tuniquin que, de certa forma, deixou de se sentir tão solitário.

Mesmo que o bichinho que crescia cada vez mais dia a dia não pudesse responder, Tuniquim conversava o tempo todo com ele.

Mas um dia aziago Tuniquim caiu doente, já nem havia o que comer em casa. Bem que tentou, mas ficou na intenção. Pensou em matar as galinhas que estavam no choco, não teve coragem. Com dor no coração, não lhe restou outra alternativa, teria que vender seu porquinho para um vizinho.

Foi de casa em casa oferecendo-o, com lágrimas nos olhos, o porquinho caminhando a seu lado. Todos o queriam, mas não tinham dinheiro. Até que chegou ao rancho onde moravam dois irmãos que Tuniquin não gostava. Eles tinham dinheiro.

Licínio, o mais velho, agarrou o bichinho por uma das pernas enquanto o outro dava algum dinheiro que Tuniquim sequer conseguia ver. Começou a ir embora, o porquinho se contorceu e conseguiu escapar, disparando atrás do dono que se ajoelhou e o acariciou com ternura, numa muda despedida.

Licínio já veio com a faca na mão.

- Bicho disgraçaçado – rugiu. – Vai p’rá panela’gora...

Tuniquim se ergueu, o amiguinho no colo, estendeu a mão com o dinheiro, uma súplica lhe contorcendo o rosto.

- Descurpe, num quero vendê mais...

Licínio deu-lhe um trampaço, arrancou-lhe brutalmente o animalzinho das mãos.

- Nigócio é nigócio – encerrou o assunto.

- Licíno, pur favor... num mate ele inquanto eu ‘tiver aqui... – suplicou.

- Vai, iscafede...

Vendo tudo perdido, Tuniquim se afastou correndo. Já estava longe, ou assim pensava, quando os berros de desespero e agonia do porquinho o alcançaram. Chegou a voltar-se e ensaiou alguns passos, mas o silêncio de morte que se seguiu simplesmente significou que já era tarde demais.

Começou a chorar, jogou amargamente o dinheiro no chão de terra da trilha, as trinta moedas de prata com que Judas Iscariotes havia vendido Jesus Cristo. E ele havia vendido o amiguinho que a mãe natureza lhe confiara e o mandara para a morte.

Deu alguns passos, cônscio que não podia se dar àquele luxo. Então voltou, com mãos trêmulas pegou aquele dinheiro maldito e foi para o povoado comprar o que precisava.

- Disgracera – murmurou, inconsolável.

Dois dias depois Josias chegou à sua casa, colocou uma gaiola no chão e bateu palmas, chamando.

- Tuniquin... – gritou

Tuniquin assomou à porta, um grande sorriso iluminou seu rosto quando viu o amigo, chamou-o com um aceno.

- ‘dia, si achegue, cumpadre...

Josias pegou a gaiola onde estava um belo sabiá e foi até o banquinho que Tuniquin improvisara ao lado da porta quando a casa ficara pronta. Tirou o machado que ficava pendurado na parede por um prego e lá colocou a gaiola.

- Que qui é isso? – perguntou Toniquin.

O outro riu.

- Ué... num mi diga qui num conhece um sabiá...

Foi a vez de Tuniquin rir.

- Num mi arrelia, cumpadre... – protestou, brincando.

Josias colocou a mão no ombro do amigo, olho-o num misto de pena e carinho.

- Truxe procê.

Toniquin se surpreendeu.

- P’reu?

- Procê. Num somo amigo?

Por um momento Tuniquin ficou mesmo sem ter o que dizer, não estava afeito a demonstrações e lembranças de afeto.

- ‘brigado, Josias. Mas, pur que?

Josias sorriu diante do desconforto do compadre.

- Ara... i pricisa tê uma razão p’rá tudo, pricisa?

Seu tom de voz, entretanto, traiu que também estava comovido.

- Prá ti fazê companhia, meu amigo. ‘cê tá muito suzinho... I agora, dexa eu í imbora que tenho muito u qui fazê na minha roça.

Levantou-se, deu um meio abraço envergonhado em Tuniquin, entregou-lhe um pacotinho no qual havia um pouco de alpiste.

- Num si isqueça di dá água prele, Tuniquin.

E se foi. Lá adiante se voltou, Tuniquin ainda o acompanhava com o olhar, acenaram um para o outro.

Dias depois Josias se deparou com a gaiola vazia, portinhola aberta, pendurada no mesmo prego onde a colocara.

- Ué, cumpadre, u sabiá fugiu?

Envergonhado, Tuniquin tirou e retorceu o palheiro entre as mãos.

- Adescurpe, cumpadre, sei qui foi um presente dado di coração. Mas eu sortei...

Josias ficou pasmo.

- Sortô?

- Sortei, me adescurpe. Mas era uma judiera...

De incrédulo Josias passou a estarrecido, o amigo sempre o pegava de surpresa.

Achara que nada mais veria adiante dos motivos quando Tuniquin lhe devolvera a cartucheira com que matara a mãe do porquinho para nunca mais pedi-la, e lá estava o amigo o surpreendendo com seu bom coração mais uma vez.

- Judiera? Mas era prele cantá procê, Tuniquin.

Um gorjeio maravilhoso e inesperado foi a resposta.

Na laranjeira florida, como se engalanada para um ato divino, o sabiá pousara e trinava alegremente saudando os dois.

Um sorriso de felicidade arqueou os lábios de Tuniquin, que apontou o passarinho.

- Óia ele ali, Josias...

Josias se sentiu empalidecer, sua simplicidade de caboclo irmanado com a mãe natureza o fez, involuntariamente, tirar o chapéu e respeitosamente fazer o sinal da cruz. De alguma maneira inexplicável havia intuído a grandeza da atitude do amigo.

Foi a vez de Tuniquin colocar a mão afetuosamente no ombro  do compadre.

- Josias, ele vem toda tarde cantá p’rá mim. P’rá que deixá ele naquela gaiola, p’rá que?

Em algum lugar Gaya, nossa Mãe Terra, sorriu docemente e abençoou os três.

 

 (CONTINUA)

 



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